Uma, à partida, difícil
conjunção de três coordenadas da minha vida tem, desde já há algum tempo, tido
lugar no vetusto terreiro da capital de entre-Lis-e-Lena: bibliotecas (e papéis
velhos), Goa e Leiria conseguem amalgamar-se com algum sucesso na Biblioteca
Municipal local. Ora, como é isto possível? A resposta é fácil de dar: um dos
mais conhecidos núcleos daquele acervo é o constituído pelo fundo de uma das
glórias da urbe, Afonso Lopes Vieira; o poeta possuía, no seu espólio – ainda
não percebi muito bem, contudo, as razões para a existência de tal coleção (as
dedicatórias autógrafas são um tanto ou quanto vagas, mas propendo a acreditar
que os autores do ex-Estado da Índia enviavam os seus trabalhos para Lopes
Vieira sobretudo por uma questão de admiração pessoal) várias obras
compostas por goeses, de entre os quais algumas, de natureza jurídica,
difíceis de encontrar no nosso país; e vou a Leiria semanalmente, onde dou
aulas na ESTG.
Na passada semana,
estava eu em demanda de um exemplar das divertidíssimas “Jornadas” de Tomás
Ribeiro (das quais eu sabia haver um exemplar no fundo ALV), quando uma série
de incidentes bizarros me levou a conhecer um espaço extraordinário. Vamos por
partes:
a) por um lado, a net
da minha residência deixou de funcionar (já andava de saúde cambaleante, e terá
sucumbido de vez), para indignação dos moradores e desespero dos
administradores (com Éric S. à cabeça). Ora, sem net, não havia possibilidade
de, em casa, confirmar a cota das “Jornadas”. “Não há problema”, pensei, “trato
disso na biblioteca”;
b) no entanto, mal lá
cheguei – e tendo achado imediatamente suspeito um ajuntamento de grande parte
das funcionárias no hall de entrada, todas ostentando ar de grande inércia –
descobri que os servidores de net da CML estavam todos “em baixo”, e que os
engenheiros da Câmara (pela “celeridade” com que atalham os problemas que se
lhes colocam, talvez os mesmos da Residência! ) afirmavam ser problema “para
durar” (expressão vaga e, por isso mesmo, suscetível de gerar apreensão!)!
c) na verdade, todos os
que costumam frequentar com assiduidade bibliotecas não se assustam com estas
falhas informáticas. A pergunta que, em tais ocasiões, imediatamente se faz é
“ok, não há problema, eu sei o título e o autor, pelo que vou ver ao ficheiro
manual. Onde está?”. É então que se dá mais um momento insólito, quando a
funcionária retorque, sem hesitação nem rebuço: “Ah, mas nós não temos ficheiro
manual!”. Lá tentou o Luís rebater, argumentando da forma mais lógica possível
“Bom, terão certamente… é o ficheiro antigo, o que usaram como base do atual…
são umas fichas, está a ver… compreendo que não deva estar à vista, devem tê-lo
guardado numa sala menos usada…”. Não fiquei, porém, sem resposta pronta: “Não,
não! Já não o temos… deitámo-lo fora, mal se acabou a nova versão!”
(!!!!!!!!!!!!!!!). Nessa altura, quase explodi “QUEM deita fora um
ficheiro!!??” Por amor de Deus! Em todas as bibliotecas dignas desse nome,
mundo fora, os velhos ficheiros em papel são cuidadosamente conservados, e
revelam-se, por vezes, de grande utilidade. As respostas que obtive – quer da
funcionária, quer da bibliotecária, cuja presença invoquei – foram no mínimo
bizarras: “Deitámo-lo fora porque ocupava muito espaço” (um ficheiro?? e a
biblioteca, que não tem assim tantos livros, está instalada num solar
enormíssimo!); “Deitámo-lo fora porque, à medida que introduzíamos os dados das
fichas na base, lançávamo-las para o lixo” (porque diabo não voltaram a
arrumá-las??!!).
d) já desesperado,
lembrei-me de sugerir uma ida ao depósito, para ver se se encontravam as
malfadadas “Jornadas”. Eis quando a bibliotecária – senhora super solícita,
acrescente-se, que tomou (como não podia deixar de ser, depois da argolada do
ficheiro deitado fora, ainda que feita em tempos passados!) como sua a causa de
encontrar, entre os livros de Lopes Vieira, as impressões goesas de Tomás
Ribeiro – se recordou que, afinal, e como se tratava de uma obra que pertencera
ao poeta da Vieira, sempre podíamos consultar o ficheiro da sua biblioteca
particular, a tal que fora doada ao município, e cujo ficheiro, felizmente, o
município tivera por bem conservar!
e) foi neste
enquadramento que, a meu pedido – e talvez para me compensar de todos estes
desaires –a bibliotecária, muito gentilmente, me deixou acompanhá-la a um dos
espaços mais interessantes que já conheci em Leiria! Imagine-se uma grande sala
nua, na qual – exatamente como se se tratasse de um cenário, mas sem “abertura
para o público” se montaram as estantes (que na divisão original iam do chão
até ao teto, rodeando integralmente toda a divisão) que outrora pertenceram a
Lopes Vieira. Entramos, assim, pelo espaço reservado à porta na sala inicial.
Trata-se de uma reconstituição, o mais fiel possível, do espaço de trabalho
original do autor, com as mesmas estantes pintadas de verde, os mesmos livros,
dispostos na ordem que Lopes Vieira os mantinha, os retratos que pendiam nos
pontos mais altos. A um canto, a mesa de trabalho do poeta; noutro extremo, um
bufete de torcidos e tremidos que, não sendo embora o original, o substitui na
perfeição (eles também são todos mais ou menos parecidos, na verdade). A
diferença reside numa vitrina discreta, onde se exibem alguns objetos pessoais
do doador: coisas banais, mas curiosas por terem sido suas, como tinteiros,
facas de papel, relógio, retratos em miniatura, uma (bastante feia, como eram
naquela época quase todas!) pasta de curso forrada a veludo e com uns
arrebiques de prata.
Ou seja, naquela casa
conseguiu-se fazer o que de pior e melhor se pode fazer numa biblioteca
municipal: por um lado, deita-se fora o ficheiro em papel; por outro, mantém-se
aquele notável espaço. E, naquela velha sala inserta num espaço moderno,
sentindo em todos os cantos a presença do autor tão celebrado em Leiria (nem a
fotografia, em velha moldura, do seu admirado tio Rodrigues Cordeiro foi
esquecida), houve alguns aspetos que me deixaram uma impressão mais profunda.
Desde logo, a própria ambiência. Nenhum bisneto desse fanático do movimento
integralista que foi “Sílvio Luso” e nenhum filho do impenitente monárquico ACO
pode – mesmo que não partilhando de tais ideais – ficar indiferente a um espaço
onde se “cheira” integralismo lusitano e em todos os cantos se entoam loas à
monarquia.
Depois, a ideia – brilhante, brilhante! – de usar um pequeno
contador (banal, nada de peças indo-portuguesas de grande valor; uma coisa do século
XIX, com bom ar) como ficheiro do catálogo dos livros! J Eu já tinha
vontade de, um dia, quando tiver espaço para isso, aproveitar um para guardar
(para além dos clássicos para arrumação de papelada) peúgas e afins. Agora,
fiquei com vontade de afetar outro a este fim de móvel-catálogo! Bem pensado,
ALV!
Mas – odores integralistas e contadores à parte – o que me chamou mais a
atenção foi o candeeiro do poeta. É, claro, uma peça veneranda, pelo que já um
tanto estragada. Mas é TÃO excelente exemplo do orientalismo português do séc.
XIX e da forma, fantasista e colorida, como, então, eram entendidas as já tão pequenas Goa e Macau que
se torna notável! O corpo resulta da adaptação de uma velha jarra macaense. O
abajur – a minha parte preferida! – é constituído por uma estrutura metálica
que, adaptando-as a outro fim que não aquele para que foram concebidas,
encaixilha uma quinzena de velhas gravuras (no jeito das do Herédia) com vetustas
representações dos mais “lendários”… vice-reis da Índia! J
Um dos vice-reis já
caiu da armação, e a porcelana de Macau já não terá o brilho de outrora. Mas é
extraordinário encontrar, em plena Leiria, e dentro daquela sala/cenário
notável, num canto relativamente resguardado e obscuro, um objeto que de forma
tão veemente ilustra um Estado da Índia como talvez nunca tenha existido mas
como, por vezes, gostamos (ou caímos na tentação de) o imaginar.
No centro de Leiria,
senti uma brisa quente chegada diretamente dos solares das elites católicas
brâmanes de Loutolim… e atirei-me à análise das “Jornadas” com redobrado
fervor! ;)