Monday, December 17, 2012

UMA SUAVE BRISA DO MANDOVY


O dia 17 de dezembro é uma data em que – pelas mais diversas razões – todos nós que gostamos de Goa nos lembramos com particular intensidade daquele estado da União Indiana que tanta tinta e tantas paixões faz correr há tantos séculos. Lembramo-nos do que nos apraz e desagrada naquelas paragens, onde o caos urbanístico convive com recantos encantadores, onde a miséria (relativa, contudo, em comparação com outros pontos do gigantesco subcontinente) contrasta com o esplendor das talhas das igrejas da Velha Cidade, onde o português se ouve ainda quando se passa à frente de uma escola primária urdu. Eu, pessoalmente, lembro-me – sobretudo em tempos de rigorosa invernia, como os que vivemos na europa – do calor (para mim) vivificante, das gralhas que começam a crocitar, como que movidas por um incrível dispositivo coletivo, todas ao mesmo tempo, lá para as seis da manhã, do ferry que une as duas margens do Mandovy e do bem que me sabe um bhaji puri e uma coca-cola fresca no Café Tató. Vêm-me à mente, também, cheiros, alguns não especialmente agradáveis: o odor de peixe (típico das aldeias piscatórios) que me acompanhava no caminho à borda do rio, até chegar a Betim, do aroma agradável de calor, sol e papéis amarelecidos pelo tempo da sala dos reservados da velha Central Library, com a Maria de Lourdes a aparecer de vez em quando para dizer um “olá” amável, do cheiro da sala de estudo do Xavier Centre que (não sei como!) me lembrava tanto o da Venda do Porco! Lembro-me do ajudante do cartório arquiepiscopal escalar as estantes imensas, sem escadas nem apoios, em busca dos processos de ordenação que pedia, e que depois eu consultava na imensa mesa da Relação Eclesiástica, lembro-me da papelaria onde gosto de comprar os meus cadernos (mais compridos do que aqueles a que estamos habituados, com umas historietas e factos curiosos no final). Lembro-me dos passeios à noite nas Fontainhas, depois de jantar no “meu” Pangin Inn e antes de recolher aos Afonsos (e como me recordo bem das fantásticas saladas de batata que lá comi, na “mesa do português”!). Recordo-me das ventoinhas a não funcionarem em condições, dos cortes de electricidade, das camionetas desconfortáveis em que, ao chegar às vilas e cidades, os condutores e revisores vestem, “para não dar mau aspeto”, os casacos sebentos dos seus uniformes acastanhados, das vacas a deitarem-se, plácida e comodamente, ao meu lado na praia, olhando-me como que a dizer “oh, és o Luís, e não gostas de misturas? Too bad!”, dos enjoos terríveis quando não tomava o “neutralizador” dos efeitos secundários dos comprimidos contra a malária, da bruta gripe que apanhei (e como o Miguel Lume e a Patrícia Vieira me “salvaram”, esta informando-me de umas vitaminas que tinha de tomar, e não sabia; aquele levando-me a almoçar a um restaurante impecável, o que me soube particularmente bem). Lembro-me das missas em português, de muitos começarem a, devagarinho, falar nessa língua comigo, muitas vezes percebendo tudo o que eu dizia, mas fingindo, movidos pela bem característica prudência e reserva daquelas gentes, que não o faziam. Lembro-me de Velha Goa, meu refrigério para dias de mau humor, cenário para os de boa disposição e tema inesgotável para rabiscos, bem como das excursões, por vezes intrépidas, com a Giulia, minha super-afoita companheira de viagens. E lembro-me, claro está das pessoas. Não só das que estão lá, mas também das que, desde cá, tudo fizeram para que, naquela terra (onde os primeiros momentos foram de choque, por cair, ruidosamente, por terra o meu ideal de uma Lisboa oriental, toda dourados, contadores indo-portugueses e coqueiros dispostos à beira mar), me sentisse o mais em casa possível, ou seja, Maria de Jesus e Pedro (os apelidos são desnecessários; eles sabem quem são). Quando penso em Goa, penso em Percival, no Gustavo, em Maria de Lourdes, na Céuzinha e no Luís, em Maria de Lourdes Figueiredo, no Jason (que tenho o prazer de encontrar em Lisboa, demonstrando que, tal como sucede há séculos, um goês católico se sente tão à vontade na capital de Portugal como na de Goa), PVG e Patrícia, e Miguel Lume (e, mais para o final, o Delfim), entre muitos outros, mais ou menos importantes no meu quotidiano (o rapaz da fruta, o mainato, o taxista Chrisna, o rapaz do telefone, os funcionários dos cafés, da papelaria e do supermercado, o empregado do Clube Vasco da Gama, onde, por recomendação paterna, ia semanalmente comer um bife, o antiquário Ferrão, a funcionária dos correios que me odiava, os empregados do arquivo, o Luís Abreu dos pacotes e embrulhos, o pessoal da FO, etc, etc). E lembro-me, naturalmente, da família que me acolheu em Britona: a Anita, o Diogo e os seus três filhos – aos quais associo a Nati (que arrendava uma casinha no quintal deles, e que contratei como colaboradora na limpeza do meu apartamento depois de um “ataque” de baratas que me arrepiou bastante) e o filho desta, o pequeno Frassad.


Ontem recebi deles um pacote. Sim, ontem… domingo. Apareceu na caixa de correio um saco de papel de uma loja de Goa, com o meu nome e a inscrição, entre parêntesis “Por cortesia do sr. Bernardo”. Não sei quem é este Bernardo, que, simpaticamente e sem tarifas de correio, me trouxe recuerdos, fotos e novas das margens do Mandovy, dos portais de Britona. Fico-lhe grato por me fazer chegar a mãos, numa época que já cheira a Natal, lembranças de uma Goa que, embora distante fisicamente, continua a ser rememorada.
E penso, efetivamente, que (embora nunca os descartando, claro está!) mais do que os móveis de teca rendilhada e os Meninos Jesus Bons Pastores, mais do que os calvários em marfim e as colchas sumptuosas, mais do que as bebincas e os vindalhos, é nestes pequenos gestos – uma foto com uma dedicatória simpática, num português perfeito, por exemplo – que a relação entre Goa e Portugal se mantém e, creio, também se deverá manter. Já sem complexos nem prepotências, já sem dramas nem imperialismos: como dois velhos amigos, ainda aparentados, que mantêm uma longa relação repleta de altos e baixos (como sucede em muitas relações), mas que ainda sentem algo forte quando se miram mutuamente.
Saudosismo? Talvez. Idealismo tonto? Quiçá. Mas a verdade é que quando chegou o pacote de Goa a casa dos meus Pais, no centro de Coimbra, no dia chuvoso e feio de ontem (ainda que temperado pelos preparativos alegres das decorações de Natal em torno das quais nos entretínhamos) correu uma suave brisa tropical, trazendo boas memórias de outro ponto do mundo. Uma brisa do Mandovy, certamente. 

Monday, December 10, 2012

TACHOS E PANELAS


Provenho de uma família onde se cozinha muito bem, o que certamente se deve ao facto de quase todos nós termos genuíno prazer em enfrentarmos uma boa mesa. Ou seja, cozinha-se com um mínimo de qualidade e prazer (creio eu) principalmente porque se gosta de comer decentemente. Não posso, no entanto, dizer algo que, parecendo similar, nada tem, no fundo, a ver com a frase com que principiei este post: é-me impossível, como certas pessoas (e muitos testemunhos que, não sei se com verdade ou não, agora por aí abundam), afirmar que descendo de uma longa linhagem de eméritos cozinheiros e cozinheiras, isto é, que disponho no meu código genético de uma natural propensão para encarar corajosamente tachos, panelas e comestíveis e, depois de uma salutar lida, conseguir extrair dessa conjunção pratos inventivos, saborosos e tidos por excelentes. Na verdade, na minha família, nunca ouvi dizer que a bisavó X cozinhava primorosamente, ou que o trisavô Y fazia um fricassé extraordinário; as memórias dos talentos culinários são, apesar de muito dignas e merecedoras, assaz recentes: acho mesmo que não ultrapassam as minhas avós, e creio bem que, até aos seus trinta e poucos anos, nenhuma delas sabia cozinhar grande coisa (o que não impediu que, com os anos e a falta da abundância do pessoal doméstico de outrora que foi marcando o século, não começassem a ensaiar notáveis incursões em domínios antes bastante desconhecidos). Todavia, antes desta mudança – forçada, também, pelo saudável rolar das décadas – eu, que gosto de ouvir e fixar historietas da parentela passada, não me consigo recordar de nenhuma que se relacione diretamente com as prendas culinárias de qualquer avoengo. Assim de repente, lembro-me de se dizer que a minha trisavó lisboeta tinha uma excelente cozinheira, e que a minha trisavó senense tinha uma criada (cujo nome não se perdeu na voragem dos tempos: era a Maria do Valverde, sendo que o tal Valverde era uma quinta da família, onde presumo que a dita senhora deve ter nascido) apenas para fazer (porque tinha de o fazer verdadeiramente, da forma tradicional, porque não havia maneira de o obter doutra forma, como é natural) esparguete. Convém acrescentar que esta trisavó teve nove filhos – e, calculo, todos lá em casa deviam gostar muito de pratos com massa – pelo que se compreende ter bastante pessoal afeto exclusivamente à cozinha. Esta antepassada deixou a fama de ser muito bonita e de gostar de descansar ao sol retemperador da Figueira, alimentando-se certamente de iguarias confecionadas por mãos que não as suas. Da minha trisavó de Vila Nova de Tazem, acho que também nunca enfrentou um fogão: apenas se sabe que gostava imenso de comer doces. O mesmo se pode dizer da minha trisavó celoricense – ou das suas várias irmãs solteiras, todas tão pouco conhecedoras dos segredos da cozinha que consideravam algo de quase fantástico fazer-se uma simples açorda! E da minha trisavó de Poiares, senhora piedosa e austera, que não tolerava gastos nem roubos na sua cozinha mas que não se esquecia de distribuir víveres pelos mais carenciados da região. Víveres crus ou decerto cozinhados por outrem, calculo eu. Desta antepassada permaneceu a memória do seu amor pela escolaridade (não casou aos treze anos porque não queria deixar de andar “na mestra”) e a fama dos seus bordados. Quanto a talentos para doces e salgados, nunca ouvi dizer nada. Na geração anterior, sei que a minha tetravó brasileira se dedicava a ensinar as crianças e os adultos do engenho familiar a ler e a escrever – e calculo que (e bem, a meu ver) essas atividades lhe parecessem bem fascinantes do que assados e cozidos. E no engenho não faltariam decerto braços para ajudar na cozinha da casa grande. Já a tetravó Maria Carlota Joaquina, alma política e cacique eleitoral em Seia, fazia ocasionais incursões nas suas cozinhas… mas apenas durante os períodos das neurastenias que ciclicamente a fustigavam, alturas em que lançava tudo o que aí encontrava pelas janelas. Outra tetravó (cunhada da anterior – a minha família não é fácil, está cheia de parentescos cruzados, que por vezes desembocaram em gente mais ou menos tontinha) terá trazido da sua Viseu natal uma receita de umas ótimas filhós com que nos deliciamos no Natal, e às quais chamamos filhós Motta-Veiga. Bom, a tetravó terá trazido a receita, mas depressa confiou a sua execução a mãos mais experientes do que as suas. Na mesma época, em casa do Tio Joaquim Borges, também em Vila Nova de Tazem, as cozinhas estavam até separadas do edifício principal, que se desdobrava numa longa sequência de salas, saletas e salões e quartos. No quintal, erguia-se uma segunda casa, onde se instalava o pessoal doméstico e as cozinhas que deveriam produzir pratos em quantidade suficiente para alimentar os muitos parentes e afilhados daquele médico rico que substituía os filhos que não tinha por largo número de sobrinhos. As bisavós faziam bolinhos, pratos escolhidos, doces especiais e coisas assim, mas nada de mais. Isto porque havia sempre alguém especialmente contratado para cozinhar, e eram essas almas dedicadas quem se encarregava da alimentação da família. Na Risca-Silva, por exemplo, uma velha já cega, a senhora Carolina, cegava couves para o caldo verde e alface para saladas literalmente “às escuras”, e era essa a sua ocupação principal. E a minha bisavó, quando ali chegou, trouxe consigo, da casa materna, duas criadas, uma delas com bons dotes culinários. Por isso, quando, ainda hoje, nos referimos a iguarias que vêm sendo apreciadas geração após geração, e mesmo que falemos em receitas da família, estamos, na verdade, a perpetuar modos de confeção de alimentos que (mesmo que as receitas lhes tenham sido passadas por antepassadas pouco interessadas na prática mas herdeiras de alguns conhecimentos teóricos de culinária – o que não sei se é possível em cozinha) foram sobretudo mantidos, até há umas décadas atrás, por cozinheiras diligentes. Basta um par de exemplos: em minha casa faz-se uma empada de frango e ervilhas de que gosto muito – e que é uma simplificação (idealizada pela minha Avó materna) de uma receita que a cozinheira da sua Avó fazia. O mesmo se passa com o perú de Natal. Por outro lado, na família paterna corre a receita de uns bifes que o meu Pai cozinha primorosamente: são os bifes à Tidadinha, sendo que a dita Tidadinha (diminutivo carinhoso de Natividade, alegadamente dado pela minha bisavó quando era criança, portanto, há para aí um século atrás) foi a última das governantas dos Mello Motta-Veiga, antes que os ventos da história e a péssima gestão dos capitais familiares tornassem absolutamente inviável a continuidade da manutenção de tal lugar). E era também a Tidadinha quem conservava a receita das tetas de manjar – nome pouco próprio, é certo, para um doce fantástico (manjar branco em montículos), de que a minha família se ufana muito, mas do qual, se não fosse aquela senhora (que a deu à minha Avó), ninguém teria a receita. É certamente por isso que quase sempre nunca ouço dizer que alguém da família (repito, para trás da geração das minhas avós) cozinhava exemplarmente, ou que um prato está “igual ao que fazia a bisavó”: o que geralmente se exclama é “oh! É exactamente como em casa da bisavó Y”, ou “Este prato lembra-me Celorico” e coisas assim. A culinária associa-se a uma casa, quanto muito a uma cozinheira talentosa cuja memória permaneceu, não a uma avoenga.
Mas aonde quero eu chegar com tudo isto? Demonstrar que descendo de uma longa linhagem de gente inepta e ignorante na arte de bem cozinhar? Poderia ser esse o meu fito (mas, admitamos, tal não deixaria de constituir uma prova de mau gosto face aos meus maiores, sendo bem certo que eu prefiro de longe ter bisavós com amor pela educação e pela política do que por tachos e panelas), contudo, o propósito que persigo é bem diverso. É que, talvez recorrendo a este precedente histórico, consiga justificar a minha pouca habilidade culinária – ou, melhor ainda, a minha bem escassa vontade em testar os meus talentos na cozinha. Cozinhar não é coisa que, assim à partida, me atraia sobremaneira, pelo que me dedico pouco e com limitado entusiasmo a tal prática. O que, naturalmente, redunda em asneira, pois da falta de treino decorrem pequenas catástrofes na banca da cozinha. E não me refiro a exaustores queimados ou inundações dramáticas (felizmente, nada disso me aconteceu… ainda!), mas sim a banhos-maria frustrados, purés cheios de grumos, bifes tostados, e coisas do género. Isto é, banalidades para quem cozinha regularmente que se tornam problemas difíceis de resolver – desde logo por não possuirmos o tão útil saber de experiência feito – para novatos inexperientes.



Desta forma, talvez funcione se invocar, quando tiver de enfrentar mais uma maçã cozida que teime em permanecer meia dura, ou um esparguete que se recuse a passar ao estado ideal de al dente, uma espécie de precedente genético. Olhem… há gente que tem uma propensão genética para bem cozinhar…Outros, como eu, terão herdado alguns talentos dos seus maiores, mas noutros domínios. Assim, teremos de, enquanto pomos, gostosamente, esses mesmos talentos (que não culinários) em prática, e não nos rendemos (como Avós e Pais) às evidências (sim, é FUNDAMENTAL aprender a cozinhar, e aquilo até pode ser, em determinadas circunstâncias, interessante), nos contentar com umas banais sandochas de atum e sopa de legumes.
O que, afinal, também não é assim tão terrível, sobretudo para quem, como eu, adora sandes de atum e sopa! ;)

Saturday, December 08, 2012

Feriado



A manhã de hoje foi um bocado mais preguiçosa do que devia, pelo que há que voltar ao trabalho em força! ;) Mas os feriados também sabem bem por isso mesmo... se não nos dedicássemos ao ócio de vez em quando, a vida era francamente menos colorida!
Assim, e para comemorar o feriado, aqui fica uma velha foto cá de casa a que acho bastante graça: parte da família, noutros tempos (1901, 1902, por aí) e local (numa propriedade qualquer em Seia) a gozar as delícias do nada fazer sob o sol! Felizmente, os Mello Motta-Veiga Cabral dos tempos presentes já abdicaram dos colarinhos complicados, das gravatas apertadas e dos (hoje bastante caricatos) guarda-sóis em favor de sapatilhas confortáveis e mochilas práticas.
E - acreditamos, não sem alguma imodéstia - também ficámos um pouco mais bonitos com o passar dos séculos! ;)


Monday, December 03, 2012

QUERER


Creio já ter deixado escrito algures por estes Prazos que, certo dia, num momento de exasperação e aproveitando um jogo de palavras com o título de uma obra de que gosto bastante, alguém me descreveu como pride & prudence. A tentativa de ofensa não atingiu o resultado pretendido, pois eu revi-me perfeitamente no retrato feito: não sou, de forma alguma, uma pessoa pouco orgulhosa – creio mesmo que jamais me consideraram uma pessoa “chã” (o que pode até acabar por acarretar alguns entraves: por exemplo, recentemente tomei contacto, entre o divertido e o abismado, com uma série de clichés que me colavam também um bocadinho por essa razão) – e sou, a todos os títulos, uma pessoa prudente. No entanto (creio eu, e certificam-no o punhado dos que me conhecem bem), essa prudência não se deve a qualquer assomo de inércia ou vontade de protelar o que tem de ser feito, mas sim a uma ambição constante e latente de ir permanentemente mais além, chegar sempre mais longe, alcançar continuamente novos resultados que me move desde que me lembro (seja qual for a justificação deste traço predominante da minha maneira de ser: educacional, genético, de reação, provindo de um desconhecido sentimento de inferioridade, bla bla bla). Ou seja, o aludido prudence assemelha-se muito a uma perseverance que sustenta e mascara uma característica muito minha: obsession. Não falo – fiquem descansados, prezados passantes por estas veredas – de uma obsessão doentia e maníaca, que me faça perseguir por vielas escuras e avenidas ensolaradas (sejam elas físicas, sejam cibernéticas) quem ou o que me parece digno da minha atenção (e lá vem de novo o pride). Nada disso: a minha obsession reflete-se em regra no que a mim concerne, isto é, basicamente, em tentar colocar em prática a velha máxima ir mais além. O facto de ter passado parte da minha vida a ouvir incansavelmente se fizeres o que sempre fizeste, terás o que sempre tiveste: isso chega-te? – máxima velha mas cheia de significado – e o facto de uma das recordações da minha mais tenra infância ser a explicação de que mais vale ser o último dos melhores do que o primeiro dos piores, associados a constantes alusões a uma parábola cheia de significados (a dos talentos) fez-me perceber muito cedo a força do querer. Querer, contudo, não no sentido de se desejar vagamente uma coisa ou alcançar um objetivo (por exemplo, eu queria um T1 na av. de Roma, e era excelente que uma alma caritativa mo entregasse numa salva de prata; ou durante bastante tempo quis saber jogar minimamente futebol, caso não desse muito trabalho nem maçada aprender tal coisa), mas sim um querer no sentido de não largar o pé, de trabalhar afincadamente até alcançar o pretendido. Consciente do meu valor e do valor do esforço desenvolvido, acreditando que lá chegarei, por muito distante que pareça estar o tal fito almejado (e lá vêm inevitavelmente mesclados o pride e a perseverance), cavalgando nos resultados já obtidos e disposto a gozar os que vierem a ser conquistados. Ora, tudo isto traduz-se em obsession.
É por estes motivos que pequenas e grandes sucessos sabem sempre bem. Pequenos e grandes e, acrescento, singulares e coletivos. E é fascinante como, por vezes, vários factores aparentemente se entrelaçam para os alcançarmos (pois, não raro, o que parece ser disperso ou descontinuado está longe de o ser). Penso concretamente num desses pequeninos sucessos, ainda fresco:
I)                   No meu departamento, temos vindo a trabalhar, desde há algum tempo, no sentido de organizar um modesto ciclo de aulas abertas que espelhe uma vontade de colaboração Escola/município que desde há muito é manifesta. Empenhei-me a fundo no processo, e, já se sabe, há sempre alguns entraves (nomeadamente burocráticos) a ultrapassar. Uns não passam de coisa pouca, mas muitas “coisas poucas” emparceiradas acabam por incomodar. Há alturas em que apetece desistir, ou colocar o processo em stand by e juntarmo-nos ao coro dos que reclamam que, como no país nada funciona, nada conseguimos pôr a funcionar.
II)                Há uns dias, foram-me pedidos 5 minutos para se fazer uma intervenção pública na minha aula: 5 minutos esses que foram gostosamente cedidos, pois é sabido como gosto de ouvir opiniões diversas das que professo, nem que seja para as rebater e, assim, fortalecer as minhas convicções. Foi com espanto – para não dizer estupefação – que constatei que parte desse período, que devia ser orientado para a captação de interesses, foi empregado em afirmações em torno de uma única premissa (aliás, erradíssima): o nosso departamento praticamente não existia, ninguém na cidade nos conhecia e pouca representação tínhamos na associação de estudantes local (da qual, desde que eu me lembro, mais de 50% dos membros são nossos alunos – um erro de contagem, certamente…).
III)             Saio à rua e – filho e irmão de gente que sublima o poder local – impressiona-me ouvir o perpétuo chorrilho de queixumes do costume: tudo o que está mal (desde um prédio particular cujo telhado ruiu à existência de cães abandonados pelas ruas da cidade, passando pelas unhas partidas de uma transeunte que se enervou com a demora do sinal passar a verde) é culpa da câmara. As câmaras terão certamente muitos aspetos a melhorar: mas custa-me a crer que as vozes mais críticas do municipalismo conseguissem subsistir sem os serviços que as autarquias lhes vão (melhor ou pior, é verdade) prestando. Ninguém sabe o que a autarquia tem para oferecer, porque ninguém procura sabê-lo. Para a generalidade dos munícipes, a câmara mais não é do que um edifício – em regra grande e monumental, implantado em sítio de destaque – que serve para dar emprego a apaniguados e parasitas e perturbar a vida dos cidadãos. Este é um dos casos em que se pode com propriedade afirmar que a ignorância mata.
IV)             Outro dos poderes mal-amados – mas agora a um nível mais paroquial e académico – são as associações de estudantes. Muitos consideram-nas de duvidosa utilidade (e há-as fazendo pouco ou nada para contrariarem esta ideia, é verdade), repletas de gente que vai vivendo à conta dos recursos que lhe são atribuídos em vez de estudar (e existem inúmeros casos assim, não sou eu quem vai dizer o contrário) e que pura e simplesmente não se interessam pelo que se passa em prol da dinamização do departamento, da escola, etc.
V)                Há já cerca de uma dúzia de anos, num vale das cercanias de Leiria chamado Lapedo, um rapaz que estudava arqueologia e gostava do que fazia – para além de, acrescente-se, ser suficientemente obstinado e seguro para lutar pelo que acreditava – tentou convencer professores e autoridades de que descobrira indícios pré-históricos de grande interesse. Enfrentou indiferenças e desconfianças, mas perseverou. E em boa hora o fez, pois foi graças a isso que se descobriu o extraordinário menino de Lapedo, que revolucionou a arqueologia no espaço ibérico e atraiu a atenção do mundo. Há já uma dezena de anos que se luta pela classificação daquele vale, e o processo parece estar finalmente a chegar a bom porto. O jovem estudante – agora já não tão jovem – ainda acredita e combate em prol deste propósito.
Como se conjuga tudo isto? É simplicíssimo: basta querer, e querer a sério. Nós quisemos efetivamente que as nossas aulas abertas ocorressem. E para isso mexemo-nos: falámos com a câmara, que desde o primeiro momento (afinal, não são assim tão inúteis e inoperativos) se prontificou a colaborar, e, mais, o quis fazer verdadeiramente; e entabulámos conversações com a associação de estudantes, que se nos associou desde a primeira hora. E quem deu a aula de hoje? Um dos chefes de divisão do município – organismo que, apesar de tudo, não obstante a maledicência, parece saber aproveitar os recursos da terra – que mais não é do que o outrora jovem estudante que chamou, contra ventos e marés, a atenção para o Lapedo. Hoje, já profissional graduado, explicou, com o entusiasmo com que há mais de uma década procurou captar os olhares de professores e autoridades, aos nossos alunos (que compareceram todos) a importância de perseverar – isto é, o fundamental que é querer. Na aula, e apesar de ser cedo (enfim… depende das rotinas de cada um) e de muitos assegurarem que tal personagem não apareceria sequer, encontrei o presidente da associação de estudantes, prestável, interessado, querendo também que aquela iniciativa corresse bem.



O primeiro desafio correu, então, de feição: agora, é preciso perseverar para garantir o sucesso dos dois que se lhe seguem. Estou convicto – ou seja, tudo farei nesse sentido – que tal acontecerá. E que, assim, se matem vários coelhos com uma cajadada só: afinal, é possível fazer coisas (sejam elas iniciativas insignificantes como a nossa, sejam descobertas fantásticas como a do Lapedo, seja integrar na equipa municipal quem as fez, como aconteceu em Leiria), demonstrando que não raro os clichés estão errados (afinal, a câmara aderiu, entusiástica; afinal, a associação de estudantes está representada e bem representada; afinal, isto talvez seja um modestíssimo indício de que só não vê o nosso departamento quem não o quer ver) e, finalmente, que é bem verdade o que o meu Pai costuma dizer:
Quem quer, vai; quem não quer, telefona.
Queira Deus que nunca nenhum de nós ceda aos confortos de um telefone! A vida até poderia parecer, numa primeira fase, mais cómoda, mas não nos enganemos: acabaria por nos passar ao lado!