Sunday, January 05, 2014

BALANÇO

Cada vez mais ouço gente a dizer que evita assinalar o aniversário por tal forçosamente lhe lembrar não só o muito que ficou por fazer do que sonhava ter feito como também o quanto mudou desde os seus anos mais tenros. E as responsabilidades lá vão sendo atiradas para os culpados do costume: a “sociedade”, a “família”, o “emprego”, a “crise”, o “governo”, o “país” a “rotina”, a/o companheiro que se veio a transformar num monstro sádico e insensível. Isto é: há muita gente (e cada vez mais pessoas da minha idade) que se começa a sentir numa encruzilhada difícil de ultrapassar. Não falo, naturalmente, de pessoas que tiveram vidas difíceis, sem amparos materiais ou afetivos, e que por isso se viram obrigadas a singrar sozinhas. Nada disso: refiro-me aos que gozaram da ventura de uma existência calma, organizada e convenientemente nutrida.
Ora, eu – que, é verdade, tenho um pouco o hábito de gostar de ser do contra – não partilho deste sentimento que ameaça generalizar-se como um vírus entre os rapazes e raparigas da minha geração. É óbvio que nem sequer me passa pela cabeça considerar por um segundo ter feito tudo o que podia (e devia) ao longo dos anos que passaram. Ou partir do princípio de que me mantenho exatamente igual ao que fui outrora. Felizmente! No entanto – suprema ironia para quem gosta tanto de história, ou resultado normal de desde sempre ter convivido com ela? – é raríssimo olhar melancolicamente para os anos transcorridos com vontade de regressar. Houve vários momentos da minha vida em que me senti particularmente bem e que por isso recordo com grande simpatia, mas nunca me passou pela cabeça desejar voltar atrás. Para quê? Sentir-me-ia decerto profundamente desenquadrado, graças a tudo o que sucedera depois. E é muito mais interessante planear o que virá.
Depois, a verdade é que, pensando um pouco sobre o assunto, não posso partilhar dessa tese de que com o correr dos anos nos convertemos forçosamente noutras pessoas. É certo que na casa dos trinta todos já cometemos um número significativo de deslizes e protagonizámos uma série de disparates que não só lamentamos mas dos quais não nos orgulhamos. Seria bom que assim não fosse, mas julgo ser essa uma das exigências do processo de “crescimento”. No entanto, tal determinará forçosamente uma alteração profunda do que somos?
No meu caso (pelo menos), penso que não.
Olho para o tipo que está presente nas duas fotos que acompanham este post e não posso deixar de pensar (e dizer-lhe mentalmente): lá no fundo, não me parece que tenhas mudado muito. Mesmo que tenhas querido fazê-lo, mesmo que se tenham esforçado nesse sentido, acho que estás bastante na mesma.
O rapaz de ar convencido que enfrenta a câmara de nariz empinado rodeado e escudado pela mãe e pelos tios continua o mesmo homem “mania” que mantém alguma tendência para a sobranceria e tem a sorte de ainda viver rodeado por uma grande família coesa. E que importância tem essa grande família para gozar um bocado com ele e fazê-lo saudavelmente descer das suas manias e peneiras!
O rapaz que desde que se lembra gosta de história e que a dada altura decidiu estudar direito hoje partilha boa parte dos seus dias entre esses dois interesses. Na verdade, nunca se afastou muito dessas praias.
O rapaz que desde sempre gostou de desenhar ainda se mantém fiel aos rabiscos, não raro com os lápis que o acompanham há uma trintena de anos: os Giotto Naturale.
O rapaz que adorava livros e BD persiste em manter esse culto com toda a intensidade possível e em viver entre pilhas e pilhas de papel impresso encadernado. Lendo sempre… e tendo sempre tanto para ler! E não há herói que substitua (pelo menos até aos 77 anos!) o Tintim.
O rapaz a quem os tios (cheios de boa vontade, mas sem grande sucesso) se esforçaram para que ao menos fosse um praticante medíocre de ténis ainda continua – sem grande talento, é verdade, mas com empenho – a bater bolas semanalmente com grande prazer. Ah! E a ser o pior jogador de futebol de todo o universo!
O rapaz dado a obsessões e sobretudo à obsessão de “ser o melhor” persiste ainda vergado sob o peso dessa cruz. Isso irrita-o um bocado em alguns momentos da vida, mas já se convenceu de que faz parte do seu ADN… e continua a sentir um profundo desprezo por segundos lugares.
O rapaz que odeia perder ainda está bem vivo: caso contrário, o treinador de ténis não lhe teria “ralhado” há uns meses por causa do seu “problema de atitude”.
O rapaz Mathias que – dizem ser uma herança do seu velho avoengo Mil Anjos – sofre, mas sofre mesmo quando tem de dar alguma coisa sua contra vontade ou quando perde algo goza de perfeita saúde. Esforça-se por disfarçar, mas continua a sentir a mesma dor lancinante que lhe perfura as entranhas sempre que se encontra numa dessas situações. E – ironia ou inevitabilidade? – agora dá aulas de direitos reais!
O rapaz intolerante, por vezes mesmo cruelmente insensível para quem não gosta, de paixões profundas e constantes e ódios viscerais e também permanentes resiste. De quem gosta, gosta muito. Quem detesta, detesta com fervor.
O rapaz um pouco snob ainda respira. Tal como o fanático pelas rotinas, pela imutabilidade de certas coisas, de certos espaços, de certos rituais. O que por vezes lhe traz dores de cabeça… mas ele não aprende!
O rapaz que adora praia ainda continua a ser um indefetível do mar e dos areais. E de Quiaios, da Figueira e da açoriana Silveira.
O rapaz que odeia o crepúsculo, fado e nostalgias meladas à luz da lua continua um irremediável amante da aurora, do sol forte, do calor ardente, do céu insolentemente azul, das luzes que quase encadeiam e das cores vibrantes. E sempre achou as serenatas secantes e nunca reconheceu qualquer toque especial de romantismo a um pôr-do-sol.
O rapaz que tanto gosta da Solum ainda hoje passa lá boa parte da sua vida. Não é de estranhar aliás que as duas fotos que acompanham este post tenham sido aí tiradas. E não há rua em Coimbra que bata a “sua” Humberto Delgado.
O rapaz que gosta de antiguidades ainda não tem uma leiloeira nem fez o estágio em Londres no qual gosta de pensar quando tem vontade de “fugir” para longe (longe, enfim…LOL). Mas continua a viver entre velharias e a frequentar antiquários (até já foi injustamente expulso de um, coitado!), a dar conselhos e a aprender sempre bastante!
O rapaz que gosta tanto de falar que até com uma pedra é capaz de conversar continua a tagarelar com tudo e com todos. E desconfio que será assim vida fora…e que vá morrer a meio de um animado diálogo.
Mas o rapaz por vezes depressivo e ansioso também resiste, e persiste em por vezes aparecer e encanecer-me um pouco mais os cabelos. Nem só as coisas boas se mantêm, infelizmente…
O rapaz que sempre gostou de oscilar entre o urbano e a ruralidade ainda continua a poder dar-se a esses luxos. Já se passaram décadas entre as avenidas novas lisboetas e a ruralidade beirã … Deus meu! Mas como sabe bem passear pelo Saldanha e pelos pinhais poiarenses!
O rapaz que adorava o jogo das famílias acabou por se tornar genealogista e amante de outras paragens.
O rapaz que vivia consumido por uma enorme curiosidade mantém-se padecente do mesmo “mal”: quando está interessado num tema, quer sempre saber mais, mais, mais, mais, mais… Por vezes, é bom; noutros casos, torna-se obsessão e irrita os que o rodeiam!
O rapaz que desde sempre conviveu com uma versão aportuguesada do oriente ainda continua a “viver” nesse mundo. Não serão as suas pesquisas e paixões goesas um fruto do já quase desaparecido ambiente achinesado que marcou parte da sua infância?
O rapaz… o rapaz tem tido bastante sorte, há que admitir.[1]








[1] Quando era miúdo quase todas as lojas estavam fechadas no meu dia de anos “para balanço”. A palavra pareceu-me ser assim um título duplamente adequado ao post.