Thursday, June 27, 2013

Estio

Gosto do verão. Gosto verdadeiramente – declaradamente, convictamente, mesmo apaixonadamente – deste tempo em que o calor começa a abrasar, os cheiros das plantas e das flores se intensificam e o céu permanece, durante uma larguíssima parte do dia, revestido por um azul forte e aberto. Mais ainda : vejo (e colho) vantagens de todos pretensos inconvenientes que, em regra, são associados a esta altura do ano. Por um lado, uns bramam:“Morre-se de calor” (estiola-se, podia dizer, para relacionar o corpo do texto com o título). No meu caso, sinto-me rejuvenescer. Outros clamam: “Sentimo-nos tontos, zonzos, apáticos, ensonados, com pouca vontade de trabalhar, moles”. Pois bem, eu sinto-me mais enérgico do que em qualquer outra altura do ano. Há ainda os que reclamam “Custa-nos horrores adormecer com esta temperatura. Acordamos de hora a hora ensopados em suor”. A minha pessoa, caros leitores destes Prazos, repousa placidamente enquanto os termómetros galgam os 35 graus. Nem Goa, nem Roma em agosto (obviamente, sem ar condicionado, que é sistema de que jamais senti falta), nem a doce torreira conimbricense depois do almoço, quando uma brisa discreta nos traz um calor que cheira a deserto (o que contribui, paradoxalmente, para aumentar a minha produtividade) beliscam este meu metabolismo que – se não fosse igual ao do meu pai e irmã – se poderia dizer que estava irremediavelmente danificado ou, pelo menos, descalibrado.
- Você tem sangue mulato?, perguntaram-me uma vez em Goa, quando me viram, placidamente embora provocando em redor uma lagoa de suor, em pé, às 2 da tarde, desenhando no moleskine pormenores das telas da capela-mor da igreja de S. Francisco. Não, que eu saiba, não tenho. No entanto, gerações e gerações de Mellos, Motta-Veigas e Cabrais oscilando entre Seia, Celorico e Coimbra, todas elas terras ardentes entre julho e setembro, devem ter produzido esta carapaça. Ao que importa juntar outra enfiada de avoengos Pedroso de Lima a repartir a vida entre a quente Lusa-Atenas e a quase árida (para a maioria; agradável, para mim) Poiares estival (o plateau da Risca-Silva, segundo recordava o meu Avô, sem cursos de água, era um teste à resistência de qualquer um – e há PLs por lá desde o séc. XVI) e, naturalmente, o sangue do Brasil nordestino, dos sertões do Ceará, onde quem sofre excessivamente com raios solares dardejantes… sucumbe! Por tudo isto, creio bem – eu, que em genética sou um autêntico zero – que esta apetência pela canícula resulta de uma (a meu ver, feliz) conjunção de cromossomos e alelos.
Acho, até, que é por me sentir tão bem quando imerso neste banho de ondas solares que, em regra, não sofro de qualquer inclinação pelos estratagemas habitualmente empregados para o combater, como sorvetes e bebidas geladas. Julho e agosto fora, bebo água à temperatura ambiente e quando me sinto um bocado encalorado, chá quente (como sempre me ensinaram a fazer). Duches frios também me parecem ser uma coisa um bocado tonta: se forem tépidos (todos os que moram em climas quentes o sabem), funciona melhor. Em compensação, o verão é a época de alguns dos meus pratos preferidos: eu sou positivamente capaz de viver, se tal não me acarretasse uma série de aborrecimentos físicos, seguindo uma dieta à base de gaspacho – gosto imensamente daquilo! – saladas frias e pudins frios. Mais ainda: é o tempo de duas das especialidades culinárias das minhas Avós: a lagosta fingida do lado paterno; o peixe-de-carne do materno! E é o tempo dos gins (esses sim, querendo-se bem gelados) à varanda e das sangrias.
Este ano, o estio chegou tarde, mas parece ter vindo com uma pujança da qual desesperadamente necessitávamos num país, onde, até há alguns dias atrás, o tempo dava mostras de estar conluiado com o clima de abatimento que se palpa em cada esquina. Sem a boa dose de energia solar a que estão acostumados, Portugal e os portugueses mais pareciam ir naufragando inelutavelmente num oceano juncado de pessimismo, sem esperança – nem euros na algibeira, para enfrentar uma despesa imprevista – de alcançarem qualquer ilhota onde pudessem voltar a acalentar expetativas mais risonhas.
Não se caia, contudo, na falácia fácil de acreditar que os raios de sol tingem tudo de esperança e otimismo. É verdade que ajudam a encarar o futuro com outro ânimo, mas nem mesmo um julho ofuscante consegue encobrir alguns sinais que nos preocupam a todos. Em Leiria – onde me acho de momento, a braços com a correção de frequências e, daqui a uns dias, exames (as larguíssimas dezenas de relatórios já estão despachados há uma semana, para meu grande alívio, que já não suportava ler com o necessário empenho e abertura de espírito muito mais linhas sobre o tratamento jurídico das minorias e casos no âmbito da relação direito e desporto) – as lojas “caem que nem tordos”, como costuma dizer o meu Pai. Tudo, mas literalmente tudo, está a ameaçar fechar portas. Na minha rua (perdão, avenida!), poucos são os resistentes: o café, o talho do sr. Hélder (que agora vende já mais artigos do que carne e seus derivados), o cabeleireiro Kika, uma frutaria e uma escola de condução. De novo, apenas abriu uma loja de venda de tabaco, com um ar um tanto suspeito devido às montras de vidros fumados e ao secretismo de que tudo aquilo se parece revestir. Por todo o centro da cidade, desde a Marquês de Pombal à Nova Leiria, multiplicam-se os cartazes repetindo, incessantemente, vende-se, arrenda-se, trespassa-se. Várias lojas apresentam dísticos informando os potenciais clientes estarem encerradas “para balanço”, advertindo que reabrirão “o mais rapidamente possível”. Até eu, distraído como sou, já percebi que é peta: o tal balanço mais não é do que um suave eufemismo para se desocupar o espaço. Infalivelmente, àqueles cartazes seguir-se-á um outro dizendo qualquer coisa do género: Arrenda-se. 300 m2. Boa exposição solar. Facilidades de financiamento.
Alguns destes estabelecimentos que vão sucessivamente desaparecendo fazem-me falta: é menos confortável, para mim, uma Leiria sem uma Pilar de Los Libros onde comprar o jornal e trocar meia dúzia de frases (e que hoje, a título de recuerdo, me ofereceu um dos livrinhos mais conservadores que eu folheei nos últimos tempos, uma velha seleção de escritos de D. Miguel Sotto-Mayor, feita pelo João Ameal), ou sem uma Leiripack para lavar os olhos em artigos de escritório e desenho. E custa ver lojas que não frequentava, mas que emprestavam um ar do cosmopolitismo possível à urbe, como a-da-rapariga-de-Fátima-que-nem-desenha-mal-mas-que-pede-preços-absurdos-pelos-retratos-que-pinta-(500 euros!), com as suas molduras caras e vistosas, encerrar portas e, quiçá, serem substituídas por um penhorista irritante que “quer comprar o meu ouro, sobretudo aquele que já não uso por ter passado de moda” (o que levanta três problemas, desde logo: (i) eu não uso ouro; (ii) eu não tenho nada de ouro; (iii) eu sei lá como é que se vê que o ouro passou de moda??!).
No entanto, o encerramento que mais me impressionou nos últimos tempos não ocorreu em nenhuma das cidades por onde costumo andar: Coimbra, Leiria e Lisboa, mas sim na remota e pacatíssima Quiaios onde gosto de passar férias, numa agradável vida de ócio à beira-mar. Lá, fechou a padaria – negócio que, confesso, pensava que jamais dava prejuízo! Far-me-á falta, admito, a vinda da carrinha do pão, todas as manhãs, desde Quiaios-vila até Quiaios-praia. Conheço a velhota que assegurava aquele serviço há anos infindos e – coisa extraordinária – ela persistia em falar comigo como se eu dominasse a complicada teia de parentescos da gente “da vila”. Eu, que apenas lá passo de bicicleta e paro para ir à farmácia, à papelaria ou à junta. Nem precisava de lhe dizer o que queria: “Ora já vieram? Bons olhos o vejam! Então a partir de agora são dois pães de sementes e mais dois de cada tipo, não é?”.
Diabo… onde irei, doravante, comprar os meus pães para o pequeno-almoço, sentindo o cheiro forte do mar na manhã?? E onde o irão fazer todos os outros que, tal como eu, se dirigiam à velha carrinha branca (estacionada sempre perto da peixaria – “para um migalho de conversa com a dona quando não há clientes, para trocar notas e para ir à casa-de-banho”, explicava a padeira, sempre desembaraçada) – a fim de se abastecerem para o dia que começava? Mesmo aquele velho sinistro e horrivelmente magro que, invariavelmente, na sua voz ciciante (com a qual tanto gozávamos) pedia (mas não os devia comer, pois continuava esquelético, ano após ano):

- Eu queria dois croissants. Dos de creme de ovos, por favor.

Monday, June 03, 2013

Em Londres, com poucas libras e muito que fazer

- Oh pah, ela está a dizer que não é preciso trocar muitos euros por libras… que aceitam euros em quase todas as lojas da cidade…
- Hummmm… olha que não foi nada disso que me disseram…
- Mas a taxa de câmbio é brutal! Eles são uns ladrões! Já viste: ficam-nos logo com 3 libras!
- E três libras dá mesmo quantos euros?
- Vê na máquina!...
- Não dá tempo!
- Olhem, vocês façam o que quiserem. EU disse que era melhor trazer já libras de Portugal.
- E EU digo que isso foi uma estupidez: sabes lá de quanto dinheiro vais precisar!
- Fiz um cálculo: se for necessário mais, troco.
- E se acontecer o contrário?
- Ora, fico com meia dúzia de libras em casa. Até dá jeito, para a próxima vez que cá vier.
- Mas QUEM é que faz isso? Depois, quando precisares efetivamente delas, não as vais achar!
- Claro que vou! Arruma-las num envelope!
- E perdes o envelope!
- Não, se tiveres vários envelopes com dinheiro de diferentes países, para quando precisares. Género rupias, para Goa.
- Tinha de ser… Goa!
- Olha, despachem-se mas é, que a paquistanesa está a olhar para nós com cara de seca!
- Paquistanesa? Como sabes que ela é paquistanesa, e não indiana?
- Sei lá… sei, pronto! Acho que é…
- Eu também acho que é…
- Eu acho que não…
- Ela nem sequer é muçulmana!
- Como sabes??
- Tem um símbolo hindu!
- “Símbolo hindu”? Que raio de coisa: nem sabes o nome do tal símbolo, como é que sabes que ele é hindu?
- E há montes de muçulmanos na Índia!
- Mas não são assim tantos em Goa!
- Mas a Índia não é só Goa!
- Pois não, também há Damão e Diu… e o bandel de Ugly e a ilha de Angediva!
- Mas ela não é goesa…
- Definitivamente não. Caso contrário seria mais amável e mais verdadeira: e dir-nos-ia que NINGUÉM vai aceitar euros!
- Sirs, please…
- Vá, vão lá trocar os euros. Daqui a um bocado ficamos sem dinheiro, sem bagagens, sem resto do grupo!

E assim começou o périplo!

É verdade: o nosso grupo jurídico-histórico (FDUNL/ICS) deslocou-se na passada semana a Londres, a antiga cabeça do imenso mundo britânico, para conferenciar e dissertar aos londrinos que nisso vissem algum interesse (poucos o fizeram, convenhamos…) sobre as maravilhas (e os aspetos menos maravilhosos, também) do antigo império ultramarino português e das soluções miméticas (Como se diz? Mimésis ou Mímesis??) que nele fomos detetando. Entre investigadores e bolseiros, éramos uma magra dezena – pequenos em número, é certo, mas grandes em craveira. Foram uns dias escassos e muitíssimo cheios, repletos de trabalho e, em cada minuto possível, de escapadelas para conhecermos um pouco melhor a cidade. E dias cheios de paradoxos, também. Pensemos em meia dúzia mal contada deles:

PARADOXO Nº 1: estivemos em Londres, e nunca comemos nada que se assemelhasse a comida inglesa! Nem uns banalíssimos e modestos fish and chips! Nós ainda tentámos, mas os esforços saíram sempre baldados! Tirando os dias em que nos apressámos a comer qualquer coisa em andamento (sandochas de atum não são apanágio da cozinha britânica!) ou em atacar um prato o mais velozmente possível (e o Pedro Ferreira revelou mais um dos seus talentos: descobrir restaurante bem localizados que não nos levassem mais libras do que as que tínhamos!) – o qual, guess!, foi a italianada rápida da praxe – alimentámo-nos de cozinha oriental. Sim! Comemos muito mais caril do que marmalade e indubitavelmente mais noodles do que roast beef na capital da Velha Aliada!

PARADOXO Nº 2: como é que um casaco da Zara e uma rapariga apavorada nos valem a descoberta de um bar? Parte de nós, desejosos de explorar a cidade e experimentar os célebres pints, aproveitou as cálidas (enfim, para os padrões locais!) noites londrinas para conhecer melhor as redondezas. Como estávamos instalados na Russel Square, tudo ficava muito próximo e urgia desentorpecer as pernas, a fim de digerir as solenes conversas e reflexões em torno de questões “imperiais” bem como o caril deglutido. No entanto, é bem sabido que o que, para nós, portugueses – raça latina degenerada, que não se deita a horas decentes – se pode considerar como “ainda muito cedo” equivale ao que para o londrino médio é “tardíssimo”! Por tal, enquanto percorríamos as ruas cheias de transeuntes que se passeavam entre portas fechadas e montras de ar sombrio, íamos pensando no que fazer para encontrar um bar interessante, relativamente perto de casa e que, acima de tudo, estivesse ainda aberto. Três coisas nos valeram nesta demanda: (1) o Please, do you have a lighter? repetido até à exaustão pelo Manel – que fuma ininterruptamente (embora o negue com veemência) – e que nos levou a uns bêbados que nos deram (bom, apenas um deles; o outro nem se mexeu) um par de indicações preciosas (e gabaram, incompreensivelmente, o casaco do fumador do grupo); (2) o facto de o Pedro ter um GPS instalado no cérebro (que capacidade prodigiosa de fixar itinerários!); e (3) o ter o nosso GPS humano (que é bom rapaz, e tem ar de não partir um prato) assustado uma pobre transeunte com a sua barba e a sua pele talvez não tão imaculadamente branca quanto devia. E a rapariga (“Que era pequena, mas não era anã”), desejando ver-se livre dele, lá nos apontou o caminho para o Onneil’s. No entanto, quando o GPS humano, o tipo-do-belo-casaco-que-parava-a-todo-o-momento-para-pedir-fumo, o indómito potencial explorador das Novas Conquistas e eu próprio nos aproximámos finalmente do Onneil’s, já era demasiado tarde! Fechava dali a 10 minutos… e não íamos gastar 6 precisas libras num pint que teríamos de beber a correr! Entretanto, o GPS humano ficou encantado com a sede da junta local (IGUALZINHA à da sua terra natal! :p), o rapaz-do-casaco com as casas de um crescent e eu próprio muito desapontado com a pobreza dos interiores que se divisava das janelas iluminadas. Tudo demasiado Ikea! Que capital de império esta!

PARADOXO Nº 3: como é que num colóquio sobre o império português se conseguiu falar constantemente no… Ceilão?! Bom, é certo que o Ceilão foi, durante algumas décadas, um território administrado pela coroa portuguesa, mas, por muito que eu goste do P.e José Vaz e dos oratorianos brâmanes de Goa (sendo que nenhum deles foi referido, a propósito!) bem como do episódio da conversão do moço Chingalá e do nome Jafanapatão, não me parece que tenha tido assim TANTA importância no nosso intermezzo oriental. No entanto, falou-se mais dele do que de Goa! É que nos surgiu, entre os participantes, uma alma britânica e oxfordiana vidrada no Ceilão. Literalmente vidrada! Carthago delenda est, repetia incessantemente o velho Catão!, And the case of Sry Lanka?, lembrava a todo o momento este fanático da ilha! E comparava-a com tudo: com Goa, com a América, com a europa, com o Congo! Abençoado Ceilão, que ali tens um defensor estrénuo e um admirador denodado!

PARADOXO Nº 4: onde é que cabiam tantos filipinos?? Ficámos num hotel imensíssimo (o lobby lembrava vagamente uma estação de comboios, tal era o trânsito de gente, muita dela desesperada por não achar sinal de internet em nenhum lugar), onde corredores de ar sinistro se afundavam em retas sem fim ladeadas por um número incompreensível de portas. Era impossível que todas aquelas portas representassem entradas para quartos: estavam demasiado juntas, algumas em péssimas condições, outras aferrolhadas de forma suspeita! O que esconderiam? Não obstante os nossos esforços, não lobrigámos uma resposta plenamente satisfatória. No entanto, algumas tinham de acomodar as hordas de filipinos que invadiam os longos corredores de manhã cedo! Talvez arrumados às postas, quiçá amontoados em espaços exíguos, os filipinos foram os nossos mais fiéis companheiros!

PARADOXO Nº 5: como um bando de pés rapados fez compras na Regent Street. Enfim, não fomos todos a fazer lá aquisições, mas somente o GPS humano. Nós, os demais, ajudámos acompanhando-o solidariamente à loja, onde o rapaz tinha de, forçosamente, adquirir um recuerdo para a sua cara-metade, para quem aquele estabelecimento tinha especialmente brotado em pleno coração do luxo da metrópole. Por isso, fica a nota: por menos libras que haja, o bem-querer faz sempre com que estiquem! Mesmo em Londres, mesmo em Regent Street, ao lado de Blake, Mortimer, Francis Albany e Olivia Sturgess! ;)