Wednesday, January 25, 2017

Bodo aos pobres



Hoje, corrigido o molho de exames de recurso que me esperava sobre a secretária – e em jeito de recompensa pelo trabalho despachado e (até) pelas relativamente boas notas dadas – decidi ir tomar café a um centro comercial em Celas que frequento apenas esporadicamente. Isto com o propósito paralelo de passear uma meia hora pelos corredores em busca de alguma promoção interessante.
Uma vez tratada a parte mais importante (o café, obviamente) lá me predispus a percorrer aquelas galerias bastante vazias e cada vez mais minadas pela gangrena de qualquer espaço comercial deste género – as lojecas de costureiras, em regra prenúncio de negra ruína. Palmilhei corredores, subi e desci escadas, inspecionei montras, mas nada encontrei que me tentasse minimamente. Até – aha! – me deparar com um tabuleiro numa vitrina isolada que me pareceu interessante. Alojaram-no na parte menos destacada do expositor, mas chamou-me logo a atenção. Latino como sou, gosto de (i) cores fortes e (ii) de citrinos. Ora, a bandeja tinha uma grossa banda azul intenso contornando um fundo amarelo sobre o qual se desenhavam, num estilo muito “pop” e 60’s a que achei graça, laranjas e limões em vias de se transformar em sumo. Para um amante do colorido que bebe litradas de sumo de laranja e uns bons jarros de limonada por semana, a peça fazia sentido.
Curioso em saber o preço do tabuleiro, comecei à procura da loja correspondente àquela vitrina. Por mera exclusão de partes, concluí que seria um enorme espaço do outro lado do corredor, no qual se vendiam o que me pareciam ser horríveis peças de artesanato. Tentei a minha sorte.
Dentro de portas, encontrei apenas duas pessoas, ambas sessentonas: empoleirada num escadote, a proprietária passava a uma velocidade impressionante esculturas bastante feias a uma senhora enrolada num sobretudo cor-de-camelo.
- Eu juro, juro por Deus – asseverava – que não tenho peças mais nenhumas. Só estas. Duas grandes, e as pequenas. Haveria uma outra, mas já a vendi, creio bem tê-la já vendido…
- Ai, que pena – respondia a outra, numa voz afetada – eu adoro o trabalho dela.
- Já se sabe – explicava a vendedora – que quando o artesão deixa a atividade tudo encarece. E todos começam a procurar as peças. Eu juro, juro por Deus que estou a dizer a verdade.
A outra assentia enquanto mirava os barros hediondos.
- Agora fica um pouco mais caro. É raro, já não há outras.
- Pois, compreendo.
- Foi o mesmo que sucedeu com a D. Luísa da Conceição.
- Ah, eu adooooro Luísa da Conceição! – retorquia a potencial compradora, de olhos em alvo – Tenho dezenas de peças dela.
- Raríssimas, desde que deixou.
E logo, cheia de sabedoria comercial:
- É como as do António Jorge.
A outra reagiu como pretendido.
- Quem é? Não conheço!
- Ahh, um graaande artesão.
- Não tenho nada dele, não o vi em nenhuma feira.
- É natural. O António Jorge é novo, um estreante. Mas virá a ser tão grande como a D. Luísa da Conceição. Quer ver obras dele? – explicava, enquanto as despejava sobre a mesa, sob a mirada ávida da senhora de sobretudo.
Eu neste momento já tinha passado por vários estados de espírito. Resignada paciência por ver que havia alguém a atender antes de mim; indignado aborrecimento ao constatar que não me ligavam nenhuma; genuína estupefação ao descobrir um amplíssimo panteão de artesãos para mim absolutamente desconhecidos (e, vá lá, irrelevantes), cujas obras são disputadas a preços escandalosos por sessentonas de vozes anasaladas.
Deixando a “cliente rica” perder-se entre as maravilhas saídas das mãos de António Jorge, a vendedora lá se dignou a reservar uma fração do seu tempo ao “cliente pobre” – como de imediato me senti rotulado. Simpática, confirmou ser a dona da vitrina. E quando lhe perguntei o preço dos tabuleiros, respondeu-me entre sorrisos rescendendo a condescendência:
- Baratíssimos! Qualquer um pode comprar.
Confesso que estranhei, mas, como sou agarrado ao dinheiro, nem desgostei do que ouvi. “Barato e giro é ótimo!”, pensei para comigo mesmo.
Transposto o corredor, aberta a vitrina, a senhora lá tentou convencer o “pobre” a largar mais uns cêntimos. Para quê aquele tabuleiro, no fundo da montra? Não havia lá tantos outros, tão ou mais bonitos, sem aquela garridice de cores, antes com “lindíssimos ramos de oliveira (azeitonas incluídas) e alfazema”, num verde tropa e azulinho encantadores? E se gostava de cores vibrantes, que tal o das riscas – tão mais adequado a qualquer situação.
No entanto, perante a minha casmurra obstinação – o “pop” ou nenhum! – lá transigiu.
Entretanto, novamente na loja, reparei num conjunto de louça pedante e bastante grosseira (a lembrar a faiança do Rato e do Juncal, de que nunca gostei particularmente) mas que reunia duas qualidades: era azul e chamava-se “Costa Nova”. Com direito a um logotipo com palheiros e tudo.
- É lá fabricada, disse a senhora. Em Vagos.
Bom, Vagos não é Costa Nova, mas enfim…
Apontei para um grande bule, que me pareceu adequado precisamente devido às suas dimensões.
- E qual é o preço daquele?
A vendedora olhou-me com um misto de repreensão e pena:
- Ah, é caro.
- Mas quanto é?
- Digo-lhe já. Para si caro. Tanto que vendo só o conjunto.
Eu já começava a ferver. É certo que estou a milhas de ser rico, é verdade que sou agarrado ao dinheiro, era muito provável que jamais comprasse a porcaria do bule… mas a senhora deveria mostrar outra diplomacia!
- Ok, vou então pagar o tabuleiro. Aceita multibanco?
- Sim, mas… – A vendedora suspendeu a explicação por um momento, como para anunciar algo de maravilhoso. – Se me pagar em dinheiro faço-lhe um abatimento de… 10%!
Sentia-me cada vez mais parvo. Por um lado, tinha vontade de lhe dizer “afinal, levo quinze tabuleiros e pago TUDO com cartão”. Por outro, ganas de a ridicularizar começando a bater palmas de alegria, como um pobrezinho muito bem comportadinho a quem dão uma esmolazinha e, entre lagrimazinhas, agradecer o patrocínio da minha excelsa interlocutora. Mas a sovinice inata voltou a dominar-me e não resisti ao pagamento em “cash”.
- É para embrulhar? – perguntou finalmente a senhora.
Estarrecido (“Mas a quem é que iria dar um tabuleiro?”, pensei), expliquei rapidamente:
- Ah, não, é para consumo próprio. Compro-o para mim mesmo.
A minha interlocutora – que lá no fundo estava certa de ser uma alma santa pairando neste ermo de perdição – olhou-me com simpatia e, numa voz de caridosa resignação (“são pobres e têm manias”, imaginei que ela magicasse para consigo mesma), rematou:
- Faz tão bem. Um miminho para nós é sempre bom.
Deixei a loja aturdido. Mas a acreditar numa coisa. Que aquela tonta está convencida de que praticou uma quase obra de caridade.
Gosto mesmo do meu tabuleiro novo! Quando acabar de beber o meu chá na chávena de laca preta e comer o bolinho de coco que agoniza no prato Satsuma, ponho a raquete aos ombros e vou para o ténis. Se a senhora porventura me vir na rua, o que pensará? Que roubei a raquete? Ou que sou o carregador de alguém mais afortunado? Ou que um homem generoso deu o seu equipamento velho a um triste que ansiava por pisar um court?




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