Thursday, June 23, 2016

Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Cãibra!!!!!!!!!!!!

Caso vivêssemos no século XIX (graças a Deus que tal não acontece!), é provável que se lesse na imprensa leiriense de hoje, na secção “Eccos da sociedade”:
“Cãibra. O Exmo Senhor Doutor Luiz etc e tal, digno professor de Direito n’esta cidade, soffreu ontem um desagradável revez. Sua Excia encontrava-se a terminar o seu treino habitual de tennis, ao qual se seguiria um jogo com o Exmo Senhor Eng. Miguel N., digno industrial na Marinha Grande, quando, ao tentar acertar numa bola mais alta, deu um salto desajeitado e sentiu uma pontada na perna esquerda. “Como que um repuxar”, especificou-nos S. Excia mais tarde. S. Excia suspendeu immediatamente o jogo e perdeu o ponto, coxeando e queixando-se de um mau estar. Acto immediato o treinador Gonçalo J., professor bem conhecido do nosso tennis club constatou tratar-se de uma cãibra. S. Excia, soffrendo, explicou que se o era nunca tinha tido uma tão intensa. Assim, o treinador e J., um rapaz mais velho que cremos também ser professor de gymnastica no lyceo, deram algumas indicações a S. Excia. S. Excia, sempre escrupulosíssimo em pontos de saúde, seguiu-as attentamente. Não satisfeito, communicou poucos minutos depois com a sua Exma Família, nomeadamente com uma das suas Tias, illustre clinica no Sul do Paiz. Devidamente medicado e aconselhado, S. Excia, dando uma vez mais provas da sua inquebrantavel força de vontade, saiu hoje cedo à rua, como é aliás seu timbre. Claudicando muito no principio, depressa começou a combater o mal e a regularizar o passo – o qual contudo ainda não retomou o ritmo normal. Espera-se porém que S. Excia recupere o mais rapidamente possível. Para tal conta com uma saude férrea, os progressos da Medicina e o apoio dos leirienses – que, nas palavras do sympathico doente, teem “como sempre, dados manifestações de enorme solidariedade” – e da Redacção do nosso Jornal em particular. Prontas melhoras e muitos jogos de tennis num futuro próximo é o que lhe desejamos”.
Barroquismos oitocentistas à parte, a verdade é que retirei pelo menos cinco ensinamentos desta secante cãibra. Isto, claro está, depois de, nos meus exageros habituais, achar que ia morrer, perder a perna ou pelo menos vê-la parcialmente amputada. Ou então que as veias rebentariam e eu terminaria os meus dias exangue. Passaram-me os mais rebuscados cenários pela cabeça em menos de dois minutos: que a antiquíssima maldição das pernas incapacitadas dos Motta-Veiga agarrara mais este descendente da família, que teria de passar a usar uma bengala, que daqui a uns anos talvez me acontecesse o que sucedeu a uma velha tia do meu Avô – a senhora deixou de andar e então passava os dias numa chaise longue. Quando ia para Poiares, quatro empregados levavam-na numa cadeira até ao carro (a Tia não era magra) e, uma vez lá chegada, outros quatro estavam à espera para a levar para dentro. E como arranjaria eu dinheiro para pagar tanto pessoal?
Passado o susto inicial, o que aprendi?
Em primeiro lugar, que uma cãibra DÓI que se farta! Estava convencido de que todas as cãibras eram semelhantes às “quedas dos músculos” quando dormimos. O que me sucede muito raramente e sobretudo na praia, depois de começar a andar o dia inteiro de bicicleta. Mas nesses casos, embora doa, esticamos a perna com força e já está. No dia seguinte há quanto muito uma ligeira impressão.
Em segundo lugar, que há muita gente a sofrer desta parvoíce muscular. E há muitíssimos casos bem mais incómodos do que o meu. As pessoas têm sido muito simpáticas e solidárias e – já se sabe, fazendo jus à boa prática nacional – aproveitam para contar as suas próprias experiências na matéria. E já escutei algumas historietas bem horríveis – isto aplicando de antemão o filtro de exageros que sempre devemos aplicar às narrativas do género.
Em terceiro lugar, que as ruas  passeios não estão preparadas para pessoas que tenham (ainda que muitíssimo ligeiras e transitórias, como é o meu caso) dificuldades de locomoção. Decidi que iria ao arquivo, de manhã e à tarde, o que implica percorrer uma parte relativamente grande do centro da cidade (que tem contudo dimensões modestas) e subir uma ladeira “aborrecida”. Bom… por um lado, é incrível o tempo extra que se demora a fazer percursos básicos. Depois, todos os buracos e irregularidades de pavimento e piso representam uma aventura: nada de os evitar e nada de mostrar sinais de fraqueza!
Em quarto lugar, que é muito, muito triste ser coxo. Mesmo em situações apesar de tudo tão amáveis e fugazes como as minhas. As pessoas que passam na rua olham com um misto de surpresa e pena (cidades pequenas, toda a gente se conhece de vista). Tive de me preparar mentalmente antes de subir quaisquer escadas (recusei-me a ir de elevador!) ou a escalar uma pequena colina. Transpirei abundantemente à medida que andava, como se estivesse a fazer algo de extraordinário.
Finalmente, tive mais uma confirmação de que as nossas Mães realmente nos conhecem a fundo. A minha, pelo menos, é assim. Quando lhe telefonei ontem, todo lamentos, foi-me logo avisando para parar com as fitas. Já sabia bem o que podia resultar da minha veia hipocondríaca exacerbada. E hoje cedo incentivou-me a sair. Porque – estou convencido disso – sabe de uma terrível característica minha: o orgulho, um tremendo orgulho.
E assim estava bem ciente de que nem a barriga da perna (na panturrilha, como se diz no Brasil) dorida e inchada, nem mesmo o incómodo inicial ao andar e subir e descer escadas, nem mesmo os meus receios ridículos de a perna “apodrecer” e “cair” eram capazes de suplantar a dose generosa de soberba que me anima. Por isso, o humilhante vacilar perante gente que anda e corre, o humilhante semblante de comiseração de quem passa, a humilhante assunção de que não se consegue fazer o que se pretende feririam muitíssimo mais do que qualquer músculo dorido devido a uma cãibra de maus fígados. Portanto, trataria de resistir tanto quanto possível.
A hipocondria pode ser uma companheira de percurso fiel, mas os brios e vaidades expulsam-na sempre que tenta obrigar-me a fazer má figura.

Ligeiramente hipocondríaco e bastante convencido… Enfim, costuma dizer-se que um mal nunca vem só. Deve ser verdade. 



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