Tuesday, September 24, 2013

C!

Quebro excecionalmente o meu período de retiro por motivos de força maior… Quando um texto (ou um desenho: o processo é o mesmo) “quer sair”, é difícil reprimi-lo. Começa a tocar um sininho nas profundezas da consciência e, se não nos apressarmos a emudecê-lo, em breve se tornará num carrilhão barroco e ensurdecedor badalando os pobres neurónios de quem o tem de suportar.
Faço-o assim por uma simples razão: para procurar dar uma resposta à pergunta que me veio a martelar a cabeça durante toda a viagem de camioneta (e vim pelo período longo, com direito a visita a Venda das Raparigas, Alto da Serra, Alcoentre e outras terras igualmente prósperas e cosmopolitas) desde a capital até Leiria.
Mas, antes, importa contextualizar. Acabou há meia dúzia de horas mais um colóquio coorganizado pelo infatigável E. Tive a ventura de ser chamado a participar precisamente por intermédio do dito coorganizador, e devo desde já confessar que aprendi uma série de coisas interessantes.., nomeadamente que tenho de reler o Said. Há certamente algo que me escapou da única vez que peguei naquele livro! Como é habitual nestes encontros, falou-se muito sobre lusofonia, abraçaram-se velhos conhecidos e amigos, trocaram-se francas gargalhadas em torno de um goles de cerveja (mas não no congresso propriamente dito, pois lá só tínhamos ESTRITAMENTE direito a quatro doses de “café e bolo” ) e abordaram-se temas mais sérios. Houve os momentos non sense da praxe e ficámos todos cheios de vontade de que o E. volte a dinamizar um novo meeting em breve.
Mas houve algo mais…
Numa das sessões, uma oradora, ao ser confrontada por vários de nós sobre a conclusão politicamente ambígua da sua intervenção, retorquiu com calor:
- Não há ambiguidade pois não há opinião. Um historiador não pode ter opinião. Só lhe interessa o que está nos documentos, nada mais. Tem de ser isento… Não é como vocês de letras… nós não deixamos mesmo transparecer as nossas convicções.
Confesso que quase tive de tapar fortemente a boca com as duas mãos para não replicar de forma precipitada e insensata:
- Olhe que isso de ser historiador e asséptico deve ser uma coisa muito aborrecida e castradora. Eu graças a Deus tenho pretensões a historiador do direito... e entre nós (deve ser a diferença da tónica jurídica) quem tem voz é quem tem opiniões marcadas, convicções veementes, pontos de vista pessoais. Isso de gente que apenas fica a mirar e nada opina de duas, uma: ou a pessoa não conhece o assunto de forma suficientemente profunda – e por isso ainda não tem uma opinião formada, mas espera-se que entretanto a encontre – ou há uma grande dose de hipocrisia envolvida em todo o processo.
Mas fui ajuizado e contive-me. E fiquei o resto do tempo a matutar naquilo.
Noutra das sessões fui confrontado com algumas visões quase monolíticas da realidade: ou é “A” ou é “B”. Nada de variações, o alfabeto não tem nem precisa de mais letras: “A” e “B” chegam e sobram!
Deve ser novamente defeito de homem de leis. Uma das ideias que mais me marcou das várias que me transmitiu um professor de processo de cujas aulas gostei imenso foi:
No direito não há branco nem preto. Tudo é cinzento. Mas o cinzento pode ter tantos tons e gradações!
E cada vez mais acho que ele estava cheio de razão! À medida que o tempo passa e que eu próprio vou dando umas braçadas vigorosas no oceano da investigação apercebo-me do bom – na verdade, do ótimo – que é não haver uma só escolha entre duas magras opções e da doce e única liberdade (e exigência, pois dá trabalho!) de termos oportunidade de exprimir a nossa opinião e a nossa versão sobre determinada questão. Opinião essa que não tem de ser monolítica e eterna, mas que não pode também resvalar para o abismo da inconstância.
Quem quer ser um carneiro que se limite a seguir todos os demais? E que “rebanho” deseja que se lhe junte um carneiro que em nada se distinga daqueles que já são seus membros? Qual seria a utilidade dessa nova aquisição? Fazer número?
 E qual é a graça de analisar o que quer que seja de forma asséptica? Qual é o prazer que se retira de se evitar uma discussão acalorada em torno dos argumentos que cada um sustenta? Qual é a utilidade de todos seguirem o mesmo caminho?
Se calhar é problema meu… defeito que tenho de ultrapassar. Mas sempre fui treinado para assim ser e fui contrariado – com toda a justiça, acrescente-se! – quando não o fazia e faço.
Em casa, na minha família tudo se discute e põe em causa. As mais animadas discussões sucedem-se, despoletadas pelos assuntos mais díspares. Mantenho contendas violentas e prolongadas com alguns dos meus amigos mais próximos. O que não quer dizer que a nossa amizade não seja inabalável. Aliás: é tão forte que resiste às controvérsias mais eriçadas! Admiro no meu orientador a coragem de manter uma opinião e sustentá-la até ao fim. E de me estimular a fazer o mesmo.
Sejamos francos: todos temos pontos de vista diversos, e ainda bem. Sobre tudo. Tanto quanto a assuntos de interesse ínfimo quanto a matérias importantíssimas. Quer relativamente a temas do foro íntimo como às grandes questões da atualidade.
Ora, se assim é, o normal é que gostemos de expor as ditas visões, as formas diversas de encarar o que nos rodeia. Não creio ser saudável o ser-se neutro, frio, igual aos demais. Não me parece tentador limitar as opções entre “A” e “B”, entre branco e preto. Encaro com reservas e mesmo temor a possibilidade de me impedirem de dizer “C”.
E, quando isso acontece,,, tenho vontade de gritar:
- É C! Está-se mesmo a ver que é C! C é que é a solução certa! Eu tenho a certeza! E há uma série de motivos para ser C – e não A ou B – o caminho a ser escolhido, a tese que vinga. Eu explico-vos num instante!...É básico, é elementar, é lógico!
E assim se começa uma longa, intensa, produtiva e saudabilíssima discussão!
Uma das grandes vantagens de me encontrar com amigos e colegas como os que revi nestes últimos dias é essa mesma: poder discutir, discutir sempre, discutir acaloradamente. Sem medos nem restrições. Cada um é como é, e ainda bem que somos todos diferentes. Não é excelente ter o prazer de convencer e ser convencido? Apresentar argumentos diferentes, ouvir justificações dissonantes? Poder construir e desconstruir? Porque só assim se avança na investigação (acho eu… é discutível...mas estou pronto a defender o meu ponto de vista!). E quem, como nós, vive em boa medida dessa mesma investigação não se pode dar ao luxo de ficar anquilosando à seca num rochedo neutral, seguindo as marés com um olhar meio morto.

Posso nunca vir a ser um historiador decente de acordo com os padrões defendidos pela boa alma de que acima falo (mas estou disposto a discutir a questão, se ela estiver pelos ajustes) e é provável que quando me obriguem a optar entre “A” e “B” diga (mesmo quando até ache que uma das ditas hipóteses é perfeitamente viável):
C!
Só para provocar uma discussãozinha saudável.

E espero bem que continue assim vida fora. E que, aos 110 anos, rodeado de família e dos indispensáveis confessores jesuítas, sentindo chegar o inevitável momento em que lá terei de me ir reunir fisicamente no jazigo aos meus maiores, lance um derradeiro olhar ao crucifixo indo-português e pergunte, antes de fechar definitivamente os olhos e partir para um espaço onde seja sempre verão e haja solares cheios de livros e sol à beira do mar:
- Mas já??!!?? Porquê?? Não podemos discutir um pouco a questão?

E rumarei até outras paragens decerto juntando e sistematizando argumentos para sustentar o meu ponto de vista.