Os restos do festim
Por
motivos de ordem profissional, todas as segundas feiras tenho de me levantar e
sair bem cedo de casa. Isto é, às 6.30h já estou a dar os primeiros passos na noite
húmida de outono.
Costumo
seguir invariavelmente o mesmo percurso, que me leva cerca de 45 minutos a pé
desde a porta da Teófilo até à entrada do terminal de autocarros, onde, entre
magotes de gente atafulhada de malas rumo ao aeroporto, os turistas asiáticos
que enxameiam e os dois ou três drogados decadentes da praxe, entro no
autocarro que me trará a Leiria city e às aulas – enquanto durmo gostosamente
mais uma hora sobre rodas.
Não
se julgue porém que tais périplos me são penosos. Antes pelo contrário.
Malgrado a morrinha irritante e os ainda mais aborrecidos dois cães vadios que
dormem sob o viaduto, gosto tanto da aurora e do romper do sol quanto detesto o
lusco-fusco crepuscular. E é bem sabida dos que me rodeiam a antipatia profunda
que voto aos finais de tarde, nos quais tantos encontram encantos românticos
enquanto eu só me deparo com uma espécie de cegueira parcial. É um prazer
avançar vendo a noite ceder e levar com ela o que tem de menos simpático – ruas
demasiado escuras por incúria municipal (felizmente entretanto corrigida, com o
ajuste do desligar automático da iluminação pública), criaturas por vezes quase
fantásticas que creio jamais verem a luz do sol (e não falo de animais), os
bêbados inveterados… Sendo que, quando se conhece bem e se gosta da cidade, nenhum
destes óbices se agiganta em obstáculo intransponível. Em paralelo, acho graça
aos trabalhadores que chegam, aos cafés que vão abrindo, aos alunos
marchando resolutos para as primeiras aulas da semana, aos esparsos autocarros
que cruzam as ruas, destacando-se quase excessivamente luminosos num horizonte
ainda muito tenebroso, aos pássaros e demais bicharada anunciando a alvorada.
Ocasionalmente
– felizmente, pois a monotonia cansa – esta rotina é quebrada por algum
acontecimento excecional. Foi o caso de hoje, madrugada seguinte à Latada. O
sono dos cães vadios foi perturbado pelos estudantes bêbados que se arrastavam pelas
ruas – mas isso não é novidade (e até encontrei menos gente nesse estado do que
esperava); os transportes municipalizados triplicaram – o que sempre sucede;
partes da cidade estavam menos limpas do que é habitual – como não podia deixar
de acontecer.
A
grande surpresa estava reservada mais ou menos a meio da jornada, em plena
Portagem.
Aí,
estendendo-se ao longo de toda a fachada do Banco de Portugal e do BPI,
estacionava uma enormíssima frota de carrinhos de supermercado. Perfeitamente
ordenados, alinhados, arrumados por uns três ou quatro homens diligentes e
madrugadores.
É
fácil calcular o quanto me impressionou aquele mar tão impecavelmente composto
de ondas de carrinhos vazios, encaixados uns nos outros, quase como numa cave
de qualquer grande superfície. É ainda mais fácil perceber de onde tinham
vindo: eram o resultado da triste tendência que agora impera na festa das
latas. As novas gerações de caloiros, demasiado refinadas para transportar
consigo as cervejas que vão consumindo ao longo do desfile, preferem roubar
carrinhos aos supermercados da cidade, certamente confiando na prosperidade
deste nosso país, que aparentemente lhes fornecerá meios e criadagem ilimitados
para satisfação dos seus caprichos vida fora. No fundo, uma má réplica do roubo
dos nabos – com uma “ligeiríssima” diferença de valores.
Como
é evidente, não resisti a dar uma palavrinha a um dos
arrumadores-de-carrinhos-de-supermercado-na-Portagem.
-
De onde vem tudo isto?
-
Ah, é tudo do Continente.
-
Só do Continente?
-
Sim, e isto é metade do que recolhemos. O resto já foi metido em carrinhas e
levado de volta.
-
Não percebo nada. Vocês emprestam os carrinhos, para evitar que vos roubem, e
depois recolhem-nos aqui, em plena Portagem?
O
meu interlocutor olhou-me com ar trocista.
-
Qual quê? Eles são todos roubados! Estes foram os que nós conseguimos recuperar
das mãos dos estudantes, no final da noite.
-
Os senhores andam atrás deles por causa dos carrinhos?
-
Depende. Uns recolhemos. Muitos reavemos mesmo.
-
Mas isso é uma coisa inacreditável! Devem ter demorado horas a recolher tudo
isto (e a aturar os estudantes bêbados, pensei eu, mas omitindo essa parte)!
-
Pior seria o prejuízo que teríamos!
E
abrangendo com um gesto de braço o magote que se encontrava ao seu lado:
-
Já viu quanto dinheiro está aqui empatado?
-
Mas como é que permitem que roubem tudo isto nas vossas barbas? É quase difícil
de acreditar…
-
Oh, isto de gatunos é assim: cada ano mais sabidos, cada Latada mais
descarados.
Nesta
altura, já estava verdadeiramente pasmado – e não era por causa do enorme
parque de estacionamento ali improvisado, sob a mirada crítica do mata-frades.
Pasmado a pensar no caricato da situação: empregados do Continente (e quem sabe
outras grandes superfícies recorrem à mesma solução) perseguindo carrinhos
noite fora, reavendo carrinhos, reunindo carrinhos. Com uma diligência de
formigas enquanto as cigarras folgam. Largas dezenas de carrinhos, depois bizarramente
dispostos em ordem à entrada histórica da cidade e que entretanto retomarão funções.
Pasmado com a falta de respeito nascida do egoísmo de estudantes que, para não
massacrarem as suas mãozinhas delicadas a carregar um saco com cervejas,
preferem não só roubar propriedade alheia como também, consequentemente,
obrigar estes desgraçados operários a trabalhar madrugada fora em tarefas
estúpidas, inglórias e certamente muito cansativas.
Acabei
por pedir:
-
Posso tirar uma foto? É para mostrar ao meu Pai. Ele está na assembleia
municipal e preocupa-se verdadeiramente com estas coisas da cidade.
-
Sem problema, tire-a lá.
Tirei.
Não ficou nada de especial, mas penso que basta. Pai: aqui está.
Dá
sempre gosto ver atitudes tão igualitárias e atentas à dignidade dos
trabalhadores num país aparentemente imerso em preocupações com os menos
favorecidos. A parra compõe qualquer fruteira elegante. Mas mais importante do
que a fruteira de porcelana ou as folhas verdejantes são as uvas que albergam.
E estas continuam a ser bem escassas. Demasiado escassas.
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