Monday, October 17, 2016

Os restos do festim


Por motivos de ordem profissional, todas as segundas feiras tenho de me levantar e sair bem cedo de casa. Isto é, às 6.30h já estou a dar os primeiros passos na noite húmida de outono.

Costumo seguir invariavelmente o mesmo percurso, que me leva cerca de 45 minutos a pé desde a porta da Teófilo até à entrada do terminal de autocarros, onde, entre magotes de gente atafulhada de malas rumo ao aeroporto, os turistas asiáticos que enxameiam e os dois ou três drogados decadentes da praxe, entro no autocarro que me trará a Leiria city e às aulas – enquanto durmo gostosamente mais uma hora sobre rodas.

Não se julgue porém que tais périplos me são penosos. Antes pelo contrário. Malgrado a morrinha irritante e os ainda mais aborrecidos dois cães vadios que dormem sob o viaduto, gosto tanto da aurora e do romper do sol quanto detesto o lusco-fusco crepuscular. E é bem sabida dos que me rodeiam a antipatia profunda que voto aos finais de tarde, nos quais tantos encontram encantos românticos enquanto eu só me deparo com uma espécie de cegueira parcial. É um prazer avançar vendo a noite ceder e levar com ela o que tem de menos simpático – ruas demasiado escuras por incúria municipal (felizmente entretanto corrigida, com o ajuste do desligar automático da iluminação pública), criaturas por vezes quase fantásticas que creio jamais verem a luz do sol (e não falo de animais), os bêbados inveterados… Sendo que, quando se conhece bem e se gosta da cidade, nenhum destes óbices se agiganta em obstáculo intransponível. Em paralelo, acho graça aos trabalhadores que chegam, aos cafés que vão abrindo, aos alunos marchando resolutos para as primeiras aulas da semana, aos esparsos autocarros que cruzam as ruas, destacando-se quase excessivamente luminosos num horizonte ainda muito tenebroso, aos pássaros e demais bicharada anunciando a alvorada.

Ocasionalmente – felizmente, pois a monotonia cansa – esta rotina é quebrada por algum acontecimento excecional. Foi o caso de hoje, madrugada seguinte à Latada. O sono dos cães vadios foi perturbado pelos estudantes bêbados que se arrastavam pelas ruas – mas isso não é novidade (e até encontrei menos gente nesse estado do que esperava); os transportes municipalizados triplicaram – o que sempre sucede; partes da cidade estavam menos limpas do que é habitual – como não podia deixar de acontecer.

A grande surpresa estava reservada mais ou menos a meio da jornada, em plena Portagem.

Aí, estendendo-se ao longo de toda a fachada do Banco de Portugal e do BPI, estacionava uma enormíssima frota de carrinhos de supermercado. Perfeitamente ordenados, alinhados, arrumados por uns três ou quatro homens diligentes e madrugadores.

É fácil calcular o quanto me impressionou aquele mar tão impecavelmente composto de ondas de carrinhos vazios, encaixados uns nos outros, quase como numa cave de qualquer grande superfície. É ainda mais fácil perceber de onde tinham vindo: eram o resultado da triste tendência que agora impera na festa das latas. As novas gerações de caloiros, demasiado refinadas para transportar consigo as cervejas que vão consumindo ao longo do desfile, preferem roubar carrinhos aos supermercados da cidade, certamente confiando na prosperidade deste nosso país, que aparentemente lhes fornecerá meios e criadagem ilimitados para satisfação dos seus caprichos vida fora. No fundo, uma má réplica do roubo dos nabos – com uma “ligeiríssima” diferença de valores.

Como é evidente, não resisti a dar uma palavrinha a um dos arrumadores-de-carrinhos-de-supermercado-na-Portagem.

- De onde vem tudo isto?

- Ah, é tudo do Continente.

- Só do Continente?

- Sim, e isto é metade do que recolhemos. O resto já foi metido em carrinhas e levado de volta.

- Não percebo nada. Vocês emprestam os carrinhos, para evitar que vos roubem, e depois recolhem-nos aqui, em plena Portagem?

O meu interlocutor olhou-me com ar trocista.

- Qual quê? Eles são todos roubados! Estes foram os que nós conseguimos recuperar das mãos dos estudantes, no final da noite.

- Os senhores andam atrás deles por causa dos carrinhos?

- Depende. Uns recolhemos. Muitos reavemos mesmo.

- Mas isso é uma coisa inacreditável! Devem ter demorado horas a recolher tudo isto (e a aturar os estudantes bêbados, pensei eu, mas omitindo essa parte)!

- Pior seria o prejuízo que teríamos!

E abrangendo com um gesto de braço o magote que se encontrava ao seu lado:

- Já viu quanto dinheiro está aqui empatado?

- Mas como é que permitem que roubem tudo isto nas vossas barbas? É quase difícil de acreditar…

- Oh, isto de gatunos é assim: cada ano mais sabidos, cada Latada mais descarados.

Nesta altura, já estava verdadeiramente pasmado – e não era por causa do enorme parque de estacionamento ali improvisado, sob a mirada crítica do mata-frades. Pasmado a pensar no caricato da situação: empregados do Continente (e quem sabe outras grandes superfícies recorrem à mesma solução) perseguindo carrinhos noite fora, reavendo carrinhos, reunindo carrinhos. Com uma diligência de formigas enquanto as cigarras folgam. Largas dezenas de carrinhos, depois bizarramente dispostos em ordem à entrada histórica da cidade e que entretanto retomarão funções. Pasmado com a falta de respeito nascida do egoísmo de estudantes que, para não massacrarem as suas mãozinhas delicadas a carregar um saco com cervejas, preferem não só roubar propriedade alheia como também, consequentemente, obrigar estes desgraçados operários a trabalhar madrugada fora em tarefas estúpidas, inglórias e certamente muito cansativas.

Acabei por pedir:

- Posso tirar uma foto? É para mostrar ao meu Pai. Ele está na assembleia municipal e preocupa-se verdadeiramente com estas coisas da cidade.

- Sem problema, tire-a lá.

Tirei. Não ficou nada de especial, mas penso que basta. Pai: aqui está.

Dá sempre gosto ver atitudes tão igualitárias e atentas à dignidade dos trabalhadores num país aparentemente imerso em preocupações com os menos favorecidos. A parra compõe qualquer fruteira elegante. Mas mais importante do que a fruteira de porcelana ou as folhas verdejantes são as uvas que albergam. E estas continuam a ser bem escassas. Demasiado escassas.
 

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