Friday, May 18, 2012

A vida num expresso


Todos aqueles que me acusam de viver numa “bolha” (e, mais ainda, me apontam o dedo por o fazer conscientemente) deviam saber que eu, ciclicamente – pelo menos duas vezes por semana – desço dessa torre de marfim (indo-português, naturalmente), ultrapasso a chusma de brâmanes católicos juristas que a rodeiam, salto por cima das cadeiras “de preguinhos”, aceno à Solum e ponho-me a caminho da rodoviária, ou rumo a Leiria, ou de regresso da cidade de entre-Liz-e-Lena.

É um mundo misterioso, o das rodoviárias: não só o dos seus terminais, mas também o dos funcionários que por lá se passeiam e, ainda, os utentes habituais daquele meio de transporte – que, em teoria (bom, e na prática também…basta ver a frequência dos mesmos), ainda são considerados quase como um serviço ao dispor dos “pobres”, ou, se quisermos ser mais politicamente correctos, dos remediados.

Os meus “poisos” habituais, nestas idas e vindas, se têm, por um lado, inúmeros pontos em comum (a sujidade é um deles, bem como os maus cheiros que por lá sempre abundam, apesar de se verem, efectivamente, empregados solícitos a, continuamente, tentarem arrancar a imundície sebosa e fedorenta que teima em não querer abandonar toda a garagem), também contam com inúmeras particularidades. Uma delas é o pessoal. Não falo tanto das meninas e senhoras que vendem os bilhetes – as quais (estranho seria o contrário, com a quantidade de vezes que as vejo!) já conheço pelos nomes, e já vou dominando os tiques e manias (com esta tenho de ser mais sorridente, aquela é sorna, àquela tenho de perguntar pelo curso, aqueloutra só começa a funcionar em condições a partir do meio dia, etc) – mas sobretudo da demais fauna local. Em Leiria, temos o senhor que anuncia as camionetas gritando – mas gritando mesmo! – ao microfone. Ora, como o microfone está meio partido (coitado! sucumbiu com os gritos) e o homenzinho prossegue com a sua berreira, não se percebe nada do que diz… ou grita! Portanto, o altíssimo som de fundo é uma algaraviada ininteligível, da qual se percebem, de quando em vez, uns destinos esparsos (“ok, esta passa pela Caranguejeira, aquela vai para os Milagres...mas não compreendi NADA das restantes quinze paragens que o tipo gritou!). Em Coimbra, não é assim… o tom é mais cordato, mas, não raro, pouco pontual (!). Será devido ao mítico quarto de hora académico? Certo é que, se não estivermos alerta e convenientemente próximos daquele que calculamos ser o cais de embarque – algo que se vai tornando bastante inato com o passar do tempo – talvez ouçamos anunciar a chegada da nossa camio quando esta se prepara para partir.

 Em paralelo, em Coimbra a geração nova (em todo o lado mais cuidada) também anda mais engravatada. É o caso do “Barney da carreira”. Ora, quem é este rapaz, e porquê tal epíteto? É fácil: todos conhecem o Barney Stinson do HIMYM, e todos têm presente o seu estilo de vestir: sempre de fato, com aquelas gravatas esterlicadas. No que diz respeito ao seu homónimo “da carreira” – não sei (nem me interessa nada, na verdade) se também adota uma postura de “homem fatal” dos dias que correm – mas a verdade é que procura reproduzir, dentro dos limites severos que a vida em Coimbra e um cargo na gestão de uma empresa rodoviária impõem – o guarda-roupa de Stinson. E lá vemos, todos os que esperamos pelo nosso bus, calcorreando o cais de embarque, reservando uma graçola para as funcionárias, um aperto de mão aos funcionários e um comentário mais ponderado para as chefias, o nosso Barney, de gravatinha fina a esvoaçar, com o fato imaculado contrastando violentamente com a atmosfera geral pardacenta de pouca limpeza e pouca liquidez.

Por outro lado, há o misterioso mundo dos motoristas. À primeira vista, parecem todos iguais, mas, depois, com o treino que as múltiplas viagens emprestam, o utente deste meio de transportes vai percebendo diferenças que podem influir de forma significativa no conforto da sua deslocação. Temos, desde logo, os pontuais, os escrupulosamente pontuais (o da camionete para Peniche de manhã é um deles), e os que, despreocupadamente, não partem senão vinte minutos depois da hora marcada. A seguir, há que ter presente a posição do motorista nesse “desporto” para muitos dos que frequentam regularmente o mundo dos expressos denominado “onde me vou sentar”. Também aqui temos diferentes tipos de posturas, antes de mais, dos utentes: há-os que lutam escrupulosamente para ficar no lugar marcado no bilhete (mesmo que o número de pessoas durante a viagem não ultrapasse a meia dúzia) – e, neste segmento, temos os casos-de-força-maior (paradigma dos quais é a rapariga-que-enjoa-tanto-que-até-traz-um-atestado médico), os casos-de-senilidade-maior (as velhinhas e velhos que lutam pelo seu lugar, mesmo que já lá esteja sentada uma grávida, como se se tratasse da porta do paraíso), os casos-de-bronquice-maior (pura e simplesmente os cromos que gostam de causar problemas, que sempre existem no bas-fond, pelo que, também, nos terminais rodoviários) e, finalmente, os casos-de-burrice-insanável (basicamente, as pessoas que, tendo vinte lugares à disposição, não percebem que não há QUALQUER problema em sentarem-se em qualquer um deles). Ora, coexiste com tudo isto um costume – é-o verdadeiramente, com verdadeiros “animus” e “corpus” – que determina que, havendo espaço, quem quer pode sentar-se onde quiser nos fundos da camio, ou seja, para lá da metade. Eu, confesso, sou um dos que me aproveito desta regra consuetudinária! Mas a verdade é que o motorista tem uma palavra a dizer em tudo isto: ele pode determinar que nos tenhamos de sentar no lugar marcado, por exemplo. Para obviar isso, meus caros amigos, os conhecimentos nas bilheteiras servem de muito: em regra, as meninas/senhoras das ditas (sim, ainda persiste uma divisão bastante sexista de trabalhos neste mundo!) já nos vendem os lugares de que sabem gostarmos! Eu, por exemplo, sou um rapaz dos vintes! Finalmente, e no que toca aos motoristas e seus m.o., há ainda a questão do que posso eu levar na bagageira, e do que tem de ficar na mala. Bom, existem, também aqui, os escrupulosamente rigorosos:

-Jovem, o que leva aí??!!
- Err… a minha mochila, e isto é uma raquete de ténis.
- Jovem, coloque na bagageira.
- Não posso, a mochila tem o computador (se preciso, mostra-se o portátil, e eles são simpáticos!)
- Jovem, e a outra saca?
- Já expliquei: tem a raquete.
- Jovem, para a bagageira!
- Mas depois podem amolgá-la!
- Jovem, já disse!

E lá vai o “jovem” colocar a dita raquete na bagageira, resmungando para si mesmo que, se não fosse preguiçoso e comprasse menos livros, já teria euros suficientes para comprar uma carripana. O problema é que se esquece destes bons e ponderosos motivos uns 15 minutos depois!

1 Comments:

At 2:46 PM, Anonymous Anonymous said...

Gostei da pontualidade da "carrêra" (á penichêro) para Peniche! :)

 

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