A vida num expresso
Todos aqueles que me
acusam de viver numa “bolha” (e, mais ainda, me apontam o dedo por o fazer
conscientemente) deviam saber que eu, ciclicamente – pelo menos duas vezes por
semana – desço dessa torre de marfim (indo-português, naturalmente), ultrapasso
a chusma de brâmanes católicos juristas que a rodeiam, salto por cima das
cadeiras “de preguinhos”, aceno à Solum e ponho-me a caminho da rodoviária, ou
rumo a Leiria, ou de regresso da cidade de entre-Liz-e-Lena.
É um mundo misterioso,
o das rodoviárias: não só o dos seus terminais, mas também o dos funcionários
que por lá se passeiam e, ainda, os utentes habituais daquele meio de
transporte – que, em teoria (bom, e na prática também…basta ver a frequência
dos mesmos), ainda são considerados quase como um serviço ao dispor dos
“pobres”, ou, se quisermos ser mais politicamente correctos, dos remediados.
Os meus “poisos”
habituais, nestas idas e vindas, se têm, por um lado, inúmeros pontos em comum
(a sujidade é um deles, bem como os maus cheiros que por lá sempre abundam,
apesar de se verem, efectivamente, empregados solícitos a, continuamente,
tentarem arrancar a imundície sebosa e fedorenta que teima em não querer
abandonar toda a garagem), também contam com inúmeras particularidades. Uma
delas é o pessoal. Não falo tanto das meninas e senhoras que vendem os bilhetes
– as quais (estranho seria o contrário, com a quantidade de vezes que as vejo!)
já conheço pelos nomes, e já vou dominando os tiques e manias (com esta tenho
de ser mais sorridente, aquela é sorna, àquela tenho de perguntar pelo curso,
aqueloutra só começa a funcionar em condições a partir do meio dia, etc) – mas
sobretudo da demais fauna local. Em Leiria, temos o senhor que anuncia as
camionetas gritando – mas gritando mesmo! – ao microfone. Ora, como o microfone
está meio partido (coitado! sucumbiu com os gritos) e o homenzinho prossegue
com a sua berreira, não se percebe nada do que diz… ou grita! Portanto, o
altíssimo som de fundo é uma algaraviada ininteligível, da qual se percebem, de
quando em vez, uns destinos esparsos (“ok, esta passa pela Caranguejeira,
aquela vai para os Milagres...mas não compreendi NADA das restantes quinze
paragens que o tipo gritou!). Em Coimbra, não é assim… o tom é mais cordato,
mas, não raro, pouco pontual (!). Será devido ao mítico quarto de hora
académico? Certo é que, se não estivermos alerta e convenientemente próximos
daquele que calculamos ser o cais de embarque – algo que se vai tornando
bastante inato com o passar do tempo – talvez ouçamos anunciar a chegada da
nossa camio quando esta se prepara para partir.
Em paralelo, em
Coimbra a geração nova (em todo o lado mais cuidada) também anda mais
engravatada. É o caso do “Barney da carreira”. Ora, quem é este rapaz, e porquê
tal epíteto? É fácil: todos conhecem o Barney Stinson do HIMYM, e todos têm
presente o seu estilo de vestir: sempre de fato, com aquelas gravatas
esterlicadas. No que diz respeito ao seu homónimo “da carreira” – não sei (nem
me interessa nada, na verdade) se também adota uma postura de “homem fatal” dos
dias que correm – mas a verdade é que procura reproduzir, dentro dos limites severos
que a vida em Coimbra e um cargo na gestão de uma empresa rodoviária impõem – o
guarda-roupa de Stinson. E lá vemos, todos os que esperamos pelo nosso bus,
calcorreando o cais de embarque, reservando uma graçola para as funcionárias,
um aperto de mão aos funcionários e um comentário mais ponderado para as
chefias, o nosso Barney, de gravatinha fina a esvoaçar, com o fato imaculado
contrastando violentamente com a atmosfera geral pardacenta de pouca limpeza e
pouca liquidez.
Por outro lado, há o
misterioso mundo dos motoristas. À primeira vista, parecem todos iguais, mas,
depois, com o treino que as múltiplas viagens emprestam, o utente deste meio de
transportes vai percebendo diferenças que podem influir de forma significativa
no conforto da sua deslocação. Temos, desde logo, os pontuais, os
escrupulosamente pontuais (o da camionete para Peniche de manhã é um deles), e
os que, despreocupadamente, não partem senão vinte minutos depois da hora
marcada. A seguir, há que ter presente a posição do motorista nesse “desporto”
para muitos dos que frequentam regularmente o mundo dos expressos denominado “onde
me vou sentar”. Também aqui temos diferentes tipos de posturas, antes de mais,
dos utentes: há-os que lutam escrupulosamente para ficar no lugar marcado no
bilhete (mesmo que o número de pessoas durante a viagem não ultrapasse a meia
dúzia) – e, neste segmento, temos os casos-de-força-maior (paradigma dos quais
é a rapariga-que-enjoa-tanto-que-até-traz-um-atestado médico), os
casos-de-senilidade-maior (as velhinhas e velhos que lutam pelo seu lugar,
mesmo que já lá esteja sentada uma grávida, como se se tratasse da porta do
paraíso), os casos-de-bronquice-maior (pura e simplesmente os cromos que gostam
de causar problemas, que sempre existem no bas-fond, pelo que, também, nos
terminais rodoviários) e, finalmente, os casos-de-burrice-insanável
(basicamente, as pessoas que, tendo vinte lugares à disposição, não percebem
que não há QUALQUER problema em sentarem-se em qualquer um deles). Ora,
coexiste com tudo isto um costume – é-o verdadeiramente, com verdadeiros “animus”
e “corpus” – que determina que, havendo espaço, quem quer pode sentar-se onde
quiser nos fundos da camio, ou seja, para lá da metade. Eu, confesso, sou um
dos que me aproveito desta regra consuetudinária! Mas a verdade é que o
motorista tem uma palavra a dizer em tudo isto: ele pode determinar que nos
tenhamos de sentar no lugar marcado, por exemplo. Para obviar isso, meus caros
amigos, os conhecimentos nas bilheteiras servem de muito: em regra, as meninas/senhoras
das ditas (sim, ainda persiste uma divisão bastante sexista de trabalhos neste
mundo!) já nos vendem os lugares de que sabem gostarmos! Eu, por exemplo, sou
um rapaz dos vintes! Finalmente, e no que toca aos motoristas e seus m.o., há
ainda a questão do que posso eu levar na bagageira, e do que tem de ficar na
mala. Bom, existem, também aqui, os escrupulosamente rigorosos:
-Jovem, o que leva
aí??!!
- Err… a minha
mochila, e isto é uma raquete de ténis.
- Jovem, coloque na
bagageira.
- Não posso, a mochila
tem o computador (se preciso, mostra-se o portátil, e eles são simpáticos!)
- Jovem, e a outra
saca?
- Já expliquei: tem a
raquete.
- Jovem, para a
bagageira!
- Mas depois podem amolgá-la!
- Jovem, já disse!
E lá vai o “jovem”
colocar a dita raquete na bagageira, resmungando para si mesmo que, se não
fosse preguiçoso e comprasse menos livros, já teria euros suficientes para
comprar uma carripana. O problema é que se esquece destes bons e ponderosos
motivos uns 15 minutos depois!
1 Comments:
Gostei da pontualidade da "carrêra" (á penichêro) para Peniche! :)
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