Wednesday, May 24, 2017

Regeneração eucarística para a vida

Tal como toda a gente que desde há anos recorre ocasionalmente aos táxis lisboetas, já tive oportunidade de conhecer pessoas verdadeiramente mirabolantes ao volante. Desde os que contam histórias picantes alegadamente envolvendo dirigentes políticos aos que mostram marcas de agressões feitas por assaltantes (havia um, com quem outrora me cruzava com alguma regularidade, a maior parte das vezes quando partilhava o táxi com amigos, que adorava exibir uns vergões em volta do pescoço – “marcas de uma tentativa de estrangulamento em que quase fui desta para melhor”, asseverava). Desde aqueles que pura e simplesmente não sabem para onde vão aos que nos levam aonde não queremos ir. Desde os que súbita e inesperadamente acham que são nossos velhos amigos aos que não se inibem de mostrar que estão munidos de convincente navalha – para afugentar qualquer tipo de atacante (pois quem sabe se não somos um ladrão temível?).
No entanto, nunca tinha conhecido um taxista com pretensões a seguidor de pseudo filosofias orientais. Algum dia tinha de ser: foi hoje, após um jantar de cachupa seguido de uma cerveja na companhia da Alice, do Helder e do Duarte.
Num primeiro momento, julguei-me cheio de sorte. Apanhei o táxi mal cruzei a avenida da Liberdade. Devia ser mais desconfiado: quando a esmola é demasiada…
Lá entrei no táxi (sento-me sempre ao lado do condutor) e dei as indicações necessárias para chegarmos rapidamente ao destino.
- Tantos turistas… – respondeu o homem.
- É porque está uma noite impecável. Até houve fogo-de-artifício. Não viu? Junto ao rio.
- Vi, vi. É para nos enganar a todos. É um engodo, amigo, um engodo.
- Pode ser, mas é bem giro.
Franzindo o sobrolho, replicou:
- O mundo está assim. Tudo podre, tudo ao contrário. E há dinheiro de sobra para recuperar, pôr tudo nos eixos.
- Mas estamos ainda numa época de crise.
- Oh amigo, qual crise! Eles são engenhosos, muito engenhosos. Isto é tudo inventado para nos roubarem, amigo, para nos levarem tudo.
E, depois de um instante de suspense:
- Sabe quanto lucro deu o ministério da saúde?
- Um ministério não dá lucro. Pura e simplesmente não se pode raciocinar assim.
- O amigo pensa assim porque pensa como eles querem que pense. Ah, acredite em mim! Eu conheço-os a todos, e conheço-os bem. Sei o que são. A fundo. E fique sabendo que deu de lucro 39 milhões de euros! Tudo isto ganho graças a quê? Ao sofrimento do povo, que fica sem hospitais nem tratamentos para os glutões engordarem com os lucros.
Nem me dei ao trabalho de responder.
Mas, sabe – prosseguia o homem –, eu até gosto que haja estas injustiças e desgraças.
- Ora, para quê?
- Oh, o meu amigo desconhece os fundamentos profundos da vida. Eu não. Eu sei. Eu sei o que está por debaixo de tudo isto.
E, depois de respirar funda e ruidosamente:
- Quer saber o que é?
Estava já pronto para responder “claro!” (mas sem saber se o devia fazer, pois não estava disposto a perder tempos infindos numa discussão estéril numa altura em que tinha pressa no regresso a casa) quando o telemóvel tocou. Durante os segundos breves consumidos pela conversa, o meu interlocutor limitou-se a conduzir. Mas, mal parei, tornou ao mesmo ponto:
- Quer ou não?
- Bom, agora deixou-me curioso. Explique lá.
Então, o motorista do táxi deixou pender a cabeça sobre o peito, inspirou uma vez mais e disparou, num tom francamente mais baixo:
- Regeneração eucarística para a vida.
- Desculpe?! – perguntei, apanhado de surpresa.
O que o levou a repetir, agora de forma bem mais audível:
- Regeneração eucarística para a vida!
- Olhe, fiquei na mesma sem perceber nada.
O homem olhou-me então com uma ponta de desdém pelo pobre mortal que nada compreendia de realidades cósmico-transcendentes. E depois, cheio de superioridade:
- Regeneração eucarística para a vida! Aposto que o meu amigo não sabe o que são os Vedas.
- Por acaso até sei. São…
Mas ele atalhou sem dar provas de piedade:
- Aposto que o meu amigo, mesmo que saiba o que são, nunca leu os Vedas.
- Isso não..,
- Eu li, os quatro livros dos Vedas. Mais do que uma vez. Li-os todos. Desde há muitos anos. E releio-os sempre.
E, prosseguindo no seu delírio:
- É por isso, por saber tudo e por ter lido e aprendido tudo o que é explicado nos Vedas, que sou taxista. Tenho de arranjar uma profissão louca, que quase me mate de stress. Uma profissão que me obrigue a ir procurar ajuda nos Vedas. O stress faz-me procurar os Vedas, e ser taxista é a profissão que mais stress me causa. É por isso que conheço tão bem os Vedas. E sei o que é a regeneração eucarística para a vida.

Já a lamentar a triste sorte que me tinha calhado ao apanhar o táxi de semelhante tolinho, eu apenas respondia:
- Olhe, estamos quase. Se calhar fico já ali, a seguir à paragem.
- O amigo é apressado, é filho do tempo de hoje. Por isso não leu os Vedas.
- Pois não, mas quando tiver oportunidade eu leio.
- Não basta isso. Há mais que fazer do que ler os Vedas. E a mensagem…
- Qual mensagem? A regeneração eucarística para a vida?
- Isso! A mensagem está contida nos ensinamentos de muitos povos.
- Ah, que bom.
- Povos como os fenícios! Sabe quem foram os fenícios?
- Sei, sim.
- O amigo sabe lá quem foram os fenícios! Os fenícios acreditavam na regeneração eucarística para a vida. Está tudo nos escritos deles.
- Ok, de acordo. Quando tiver oportunidade, leio esses escritos. Depois dos Vedas.
- Ah, amigo! – concluiu ele – O amigo é um homem da nossa época. Nunca terá tempo para os ler. Nunca quererá saber. Pouco ou nada lhe interessa a regeneração eucarística para a vida.
- Pois, está bem. Ah, chegamos. Diga-me lá quando é.
O homem recebeu a nota, agradeceu a gorjeta, devolveu o troco. Mas ao fazê-lo, não resistiu:
- Não se esqueça dos fenícios…

Nem da regeneração eucarística para a vida!!! Tive vontade de acrescentar. Mas, há que confessar, acobardei-me!


Tuesday, May 02, 2017

Excelente ao nível da excelência


- Eh pá, puto, foi brutal. Foi mesmo incrível. Aquilo agora está excelente ao nível da excelência.

- Ya.

- Viste o último?

- Ya. Não. Emprestas-me cinquenta paus?

- Náa, puto, depois nunca mos devolves. Mas tens de ver. Tipo o miúdo, que agora já é um gajo, quando era miúdo entregou os pais. Foi super-mega-nojento.

- Ya.

- Ele foi mesmo um ******** de *** ao delatar os pais. Mas que cena, pá, nem imaginas! Consegues imaginar?

- Ya.

- Pois, tu não viste, não consegues. Mas tens de ver, puto, tens mesmo de ver…

- Ya. Passa-me um croissant. Não desses! Dos que só têm fiambre. Ya, esse mesmo, puto, o maior.

- Quanto maiores mais secos, puto, é o que diz a minha mãe. Mas tu é que sabes.

- Ya.

- Continuando. Vamos pôr tudo isto num mega plano tipo nazis, ‘tás a ver?

- Ya.

[Eu confesso que não estava, mas isso de pouco interessava: a interpelação não me era dirigida.]

- Então era tipo uma cena tipo em que os pais ensinavam os filhos desde pequenos a combater os outros gajos, que eram tipo nazis e os pais dos putos (e os putos também, claro) eram tipo judeus.

- Ya.

E havia um puto tipo que era muito mais esperto do que todos os outros tipo assim um génio, e os pais apostavam tudo nele. Mas não só os pais dele: os dos outros putos também. Ele era assim tipo o puto redentor.

- Ya.

- Mas o incrível é que o puto era super-mega-cérebro e topou tudo e passou-se para o lado dos inimigos. Foi super nojento, partia-lhe os ossos todos se fosse o meu puto, mas foi tipo mesmo muito esperto em fazê-lo como fez. Tipo ele deu a volta à cabeça de todos e fez-se passar pelo futuro gajo que ia derrotar os inimigos, mas acabou por lhes entregar os pais e tipo toda a gente dele. Deu-lhes todos os gajos bons que estavam contra os nazis. Não eram nazis, claro, estás a perceber, certo? Não são daquela altura nem tinham fardas nazis. Mas eram tipo do género, ok? Assim nazi sem ser mesmo nazi.

- Ya.

- É que tipo o puto percebeu que o lado dos pais e dos oprimidos não ia vencer nunca. E vendeu-os para tipo passar para o lado dos poderosos. Acho mesmo que era um génio, um génio assim asqueroso, mas génio, pronto. Mas vendeu os pais… Puto, isso não se faz.

- Ya.

- Não se faz. Mesmo se fores um génio e te quiseres passar para os nazis.

- Ya.

- É isso mesmo, puto.

Nota final: o que eu aprendo na fila de espera do bar!