Monday, December 28, 2015

Horizontes abertos

“Quando despachares a tese”, diziam-me vozes amigas, “verás que vais sentir um grande vazio. Como se algo tivesse desaparecido e não soubesses fazer com todo o espaço e tempo que te tomava”.
Quando despachei a tese, não me senti nada assim. Dois dias depois teve lugar um congresso que ajudei a organizar (correu muito bem, mas, como é da praxe, exigiu a concatenação dos mais dedicados esforços de várias pessoas), ao que se sucedeu uma pilha de frequências para corrigir e uma série de artigos cujas deadlines apertavam.
“No momento em que terminares a defesa”, alertavam-me vozes solícitas, “serás tomado por uma enorme angústia. E verás que durante meses ela jamais te abandonará”.
Bom, eu senti-me muito angustiado na semana anterior às provas. Nos dias seguintes, a ansiedade tirou umas férias e foi visitar outros hóspedes. E espero que se demore muito tempo por essas paragens, que desejo serem bem remotas.
“Assim que estiver feita a defesa”, advertiam-me vozes solidárias, “estranharás imenso: não se sente nada. Fica tudo exatamente igual!”.
Ora, no meu caso, também estes oráculos falharam. E ainda bem, por melhor intencionados que fossem.
O que se sente quando se acaba um percurso tão longo e tão árduo? O que senti eu?
Nada do que estava à espera, mas muito mais do que conjeturava. Como assim?
No meu caso em concreto, o sentimento que associei (e associo) à defesa foi simultaneamente o encerramento de um capítulo e o do regresso à normalidade – à minha normalidade.
Explico-me melhor.
Atendendo ao que será certamente uma estranha particularidade cerebral – que me acompanha desde que me lembro –, tenho uma irresistível tendência a seccionar a vida como se de uma fiada de blocos, ou episódios, se tratasse. Neste rosário, cada um tem princípio, meio e fim, claro está, e alguns são bem mais agradáveis do que outros. Parte deles são longuíssimos – espero mesmo alguns só terminem no dia em que, contristado, lá me conformar a partir para outras paragens e deixar que guardem os meus restos no jazigo de Poiares. Outros, efémeros. Há os que produzem recordações ridentes e os que atiçam marcas dolorosas. Os que têm sequência mais ou menos direta e os que correspondem a um final de caminhada. No entanto, todos partilham de mesma singularidade: uma vez encerrados, na manhã seguinte ao fecho parecem ter ocorrido há muito tempo. E ao longo dos dias que seguem, essa sensação de distanciamento vai-se aprofundando de forma gradual, até se tornar abismal.
É por esse motivo que, apesar de gostar muito de história e de estar mais de metade dos meus dias a pensar em factos passados, não sou em regra nada saudosista.
É por essa razão que nunca senti que um ano fosse pior dos que o antecederam. Pudera: os anos que passaram parecem-me remontar ao mesozoico!
É por causa disso que creio ter aguentado anos e anos de trânsito louco e intenso entre Lisboa, Coimbra e Leiria, vestindo e despindo alternadamente roupagens diferentes e quase personagens distintas. Hoje professor, amanhã aluno, depois investigador ou jurista tout court. E sempre jurishistoriador devotado a Goa. Chegado numa quarta-feira ao fim da tarde a Lisboa depois de uma bateria louca de aulas em Leira, acordava no dia seguinte sentindo-me como se estivesse desde há muito na capital. Despertando numa segunda-feira de manhã na cidade de Liz, prontíssimo para começar a aula das 8, a viagem horrível de expresso da noite anterior desde Coimbra parecia-me coisa remota e brumosa.
Sendo assim, fácil é de compreender que a defesa foi simultaneamente o dia do livro cuja leitura terminou (pelo que há que começar quanto antes um outro, novo e vibrante), o momento em que o derradeiro episódio acabou de ser transmitido, a altura em que se deu a última pincelada e se assinou o quadro ou se firmou o artigo entretanto enviado para o editor. Em regra, não costumo pensar muito nesses desenhos e textos terminados. Recorro a eles e, naturalmente, fico satisfeito quando agradam a alguém; mas dedico-me mais aos surgidos depois que tenho entre mãos.
E é tão, mas tão bom sentirmo-nos assim: com a sensação de trabalho feito, expetantes e desejosos face ao que o futuro nos traz! No meu caso, reencontrei impressões que se tinham mantido distantes desde o já longínquo 1996.
Em paralelo, há o já referido gratificante regresso à minha normalidade. À medida que o tempo passa – será certamente um sinal de velhice –, vou notando que duas características se avolumam. Por um lado, sinto-me francamente mais tolerante para com as perspetivas dos outros (tal não quer dizer, porém, que não as discuta – isso, creio bem, jamais acontecerá, e é bom sinal, pois só argumento em torno do que me interessa e respeito). O que tem uma contrapartida eventualmente agridoce: estar cada vez menos paciente para gente de vistas estreitas e horizontes alcantilados, que recusa a curiosidade, a diferença e o debate. Por outro, sinto-me cada vez mais à vontade com a minha maneira de ver e de estar no mundo (o que desejo ardentemente que se passe com os que nos rodeiam: o mundo é muito mais divertido e eficaz se todos e cada um de nós formos genuinamente nós próprios). A autonomia que o fechar de ciclo representado pela defesa acarreta também contribui, e muito, para isso.
Um pouco como se tivesse deixado de ter de beber chá a contragosto, fazendo como outros faziam, por de certa maneira estar obrigado a segui-los. Agora, se e quando alguém me perguntar:
- Quer chá? Só temos chá preto. Sei que gosta.
Eu poderei enfim responder:
- Sim, obrigado. Mas peço-lhe o favor de lhe juntar um farrapo de leite. Mesmo que mais ninguém queira.
- Com certeza. E servido numa chávena mandarim vinda numa bandeja de latão de Macau.

- É isso mesmo! Perfeito! É bom estar de volta!