Sunday, May 18, 2014

Bouncer no Criptopórtico

Dediquei, à semelhança do resto da minha família, três horas da tarde de hoje colaborando voluntariamente no Dia dos Museus. A minha condição de filho de um dedicado sócio da AMIC não permitia outra coisa – e lá fui eu destacado para servir de guarda (ou bouncer, para dar outro estilo) no MNMC.
Foi uma experiência memorável a vários títulos.
Inicialmente tinha-me sido destinado um único emprego: ajudar no conhecido criptopórtico. No entanto, necessidades de último momento levaram a que fosse em primeiro lugar convocado para apoiar a sala dos media. Pois, é verdade… de todas os espaços do museu era certamente aquele com quem tinha menos afinidade. Mas o certo é que as ordens não se discutem e uma vez munido do meu arsenal bounceresco (nada de colts ou navalhas, mas apenas um cordão identificador e um walkie talkie) rumei um tanto apreensivo ao universo cibernético-museológico. “E se os miúdos me pedem ajuda naqueles joguinhos que lá há?” – pensava eu – “Não faço a mais pequena ideia como aquilo se faz!”.
Depressa me desenganei. Afinal a sala dos media estava destinada para o que podemos chamar a hora do conto de Milú. Em regra (julgo eu) quando um adulto se predispõe a desfiar meia dúzia de histórias a um grupo de crianças exige apenas meia dúzia de almofadas ou assentos. Todos se acomodam o melhor possível e a coisa flui com naturalidade. Não com Milú. Milú aprecia o espetáculo; Milú ama a cenografia. Milú encarna a personagem e não se contenta com uns tantos coxins desemparelhados espalhados pelo piso. Milú é um ser complexo e só pode ser compreendida se analisada em várias dimensões. Por um lado, (i) o cenário. Amontoou uma série de mesinhas a um canto da divisão espartana e sob o austero teto de masseira dos bispos-condes decorou-as profusa e coloridamente. Caixinhas com desenhos de lábios (eu vi!), letras coloridas formando o seu nome, potes e mais bricabraque luminescente.  À frente de todo este aparato dispôs várias almofadas onde se recostou cobrindo-se com um uma espécie de tapete ao qual chamou manta temática. Essa manta, percebi depois, era uma colaboradora valiosa da narração. Ao seu lado jazia uma espécie de tamborete bordado onde estavam representados alguns contos infantis. Confessem que o panorama era capaz de chamar a atenção do menos crítico dos espíritos. ;) Por outro lado, (ii) a própria Milú. Falamos de uma mulher nos seus sessenta que irrompe envolta num tule negro sobre saia colorida, mitenes pretas na mãos, t-shirt vermelha com um esquilo desenhado, grande alfinete com outro esquilo, enorme laço também rubro nos cabelos. Milú mais parece uma bruxa subaquática do que uma amável senhora que se dispõe a entreter as crianças. Temo o pior. Vão começar os choros, os passos para trás, a vontade de ir embora. Mas não: os miúdos são bem mais duros do que supus e encaram Milú com um misto de estoicismo e indiferença. Provavelmente já conheceram demasiadas do género para se espantarem com a entrada de mais uma. Antes de começar a história, Milú historia-se a si mesma. Ficamos então a saber que foi professora de português e francês (who cares??), trabalhou numa biblioteca e aí começou a desenvolver a sua capacidade para entreter com contos os jovens leitores. Até aqui tudo bem. O retrato foi-se contudo tornando um pouco mais pesado quando Milú se apresenta como contautora (sic) e anuncia que trará uma história publicada num dos seus livros infantis. Mais: brande o volume perante a assistência composta por crianças e respetivos pais. Por um momento receei que acrescentasse: No final podem comprar um exemplar. Dirijam-se à minha assistente que está ali ao canto. E eu autografo os dez primeiros. Felizmente não chegámos a tanto. Por fim, (iii) a história. Ressalve-se antes de mais que eu tive a ventura (que só agora aquilato) de ter nascido numa família de contadores de histórias muito inspirados. A minha Avó era especialista em literatura infantil, a minha Mãe e Tios sempre foram exímios narradores e o meu Pai entretinha-nos com as aventuras do melro Basófias, o melro municipalista que ajudava o presidente da câmara e tornava Coimbra uma cidade ainda melhor. Por isso não estava preparado para o embate com a obra de Milú e muito menos com o seu O esquilo que amava as palavras. Entre gestos, gritos, bonecos de peluche em forma de animais e a tal manta temática, Milú narrou-nos as aventuras do Esquilo Quilas. Aparentemente Quilas vivia para comer “os restinhos de nozes que tinha em casa” (várias vezes almoçou e jantou esses “restinhos”), amar a culta Esquila Lila e procurar palavras de forma a expressar a sua paixão nos livros do palacete do Sr. Roquette (sic). No entanto, o Quilas, por alguma estranha razão que não alcancei, não se limitava a ler os livros dos Roquette mas também roubava as palavras que apreciava. Resultado: os volumes ficavam todos truncados e os Roquette compreensivelmente furibundos. Para que queria o Quilas todas essas palavras? Pelo prazer da leitura? Para aumentar a sua cultura geral? Para atormentar os Roquette? Não, simplesmente para escrever uma carta apaixonada a Lila. Roubando tantas palavras quanto podia lá conseguiu alcançar o seu objetivo. O esforço valeu a pena: Lila ficou rendida. Eu confesso que não percebo o que é que o Quilas via na Lila. Esta aparentava ser uma rapariga insuportável de presunçosa: recitava a todo o momento poemas (tinha uma predileção por Eugénio de Andrade) e idealizava saídas românticas no Museu Machado de Castro. Fui chamado para o criptopórtico antes de ouvir a conclusão, mas espero que Milú tenha emendado a mão a tempo: temo bem que Quilas não amasse as palavras, como a contautora ingenuamente parecia acreditar. O Quilas queria era sair com a Lila e viu nas palavras um mecanismo eficaz para atingir o seu fim.
Mas eis-me enfim no criptopórtico, o meu local de serviço base. Conheci o meu “chefe”, o sr. Pita. O sr. Pita foi direto e eficaz depois do aperto de mão:
- Isto é uma seca do caneco mas controla-se bem. Eu fico aqui à entrada e tu vais dando umas voltas por aí para ver como corre tudo. Não precisas de estar sempre a andar. Se e quando estiveres cansado arranja um banco e senta-te. Eu chamo-te quando precisar de sair para fumar um cigarro. Um gajo tem de fumar. Fumas?
- Não.
- Tudo bem, mas eu depois deixo-te sair uns cinco minutos para espairecer.
- Ok.
- Ah, e trato-te por tu porque és um miúdo.
O jurista e prof. de 36 anos acatou estas palavras sem réplica e começou a patrulhar as longas galerias do criptopórtico. Muito as patrulhei eu. A certa altura, fui render o sr. Pita (que ia fumar o seu cigarro e esticar as pernas ao ar livre) e lá fiz um pouco de trabalho “de adulto”: indicar aos visitantes a sequência da visita e informar via walkie talkie quando abandonavam o espaço. A dado momento o sr. Pita é substituído pelo Fernando. Mais palrador do que o antecessor, Fernando matava as horas conversando longamente via walkie talkie com outra funcionária. O seu tagarelar constante era porém ouvidos por todos os que andavam munidos com maquinetas daquelas – sim, todos os demais empregados do museu e os numerosos voluntários. Apesar desde gosto pelo exibicionismo, Fernando também era OK. Manteve o esquema do sr. Pita retocando apenas um ou dois aspetos: eu deveria ser absolutamente intransigente no percurso dos visitantes, ajudar quando aparecesse alguém que não soubesse falar português e comparecer quando o ouvisse chamar-me. Um breve Luís significava que o Fernando precisava de ir fumar um cigarro e havia que o revezar. De resto, continuar a ronda galerias adentro. Valeu a pena! É extraordinário ouvir as barbaridades que os transeuntes proferem perante aquelas pedras venerandas. Desde o gordo que tentou impressionar uma possível conquista esforçando-se por traduzir um epitáfio (Sabes que eu sei latim; isto para mim é canja!) e terminou num inglório gaguejar ao casal que mirando um dos bustos espalhados pelo espaço comentava Era bolachuda, a Agripina!
Mas as minhas preferidas foram mesmo duas senhoras velhotas de pronúncia ciciante que trocavam entre si observações desoladas:
- Não vás por aí. Não vale a pena. Não tem nada para ver. Só há lá uns ossos! (eu admito que por muito que me esforçasse não encontrei osso nenhum! Portanto, ou eu sou cego ou as senhoras muito criativas).
- Ai, isto não tem jeito nenhum!
- É tudo igual: pedra, pedra, pedra… parece uma gruta!
- Anda, vamos embora. Vamos atrás daquelas senhoras.
- Daquelas não!
- Porquê?

- Então tu não vês que elas são estrangeiras?