Sunday, February 11, 2018

Net

[10/2, c.18.30h]
- Boa tarde.
- Boa tarde, fala o Luís Cabral de Oliveira, de Coimbra. Estou com um problema no acesso à net que me parece ser grave. A ligação à rede vai abaixo recorrentemente.
- Boa tarde, antes de mais posso perguntar se o posso tratar por sr. Luís Oliveira?
- Sim, mas chame-me só Luís Oliveira, sem senhor.
- Ok, sr. Luís Oliveira. Sr. Luís Oliveira, o que se passa então?
- Como lhe disse, não consigo manter uma boa ligação à net. E ontem à noite a televisão também me pareceu estar a falhar. Será um problema do router?
- Sr. Luís Oliveira, talvez. Indique-me o número associado à conta. Ah, ok, já está, obrigado.
- Agradecia que me resolvesse o problema com a brevidade possível, estar sem ligação faz-me imensa falta…
- Sr. Luís Oliveira, concede-me um instante para eu analisar a ligação?
- Claro, com certeza.
- Muito obrigado.
[Passa menos de um minuto]
- Pronto, já está.
- Já? Que rápido! Obrigado!
- De nada, sr. Luís Oliveira.
- O que era?
- Um problema técnico, sr. Luís Oliveira.
- Pois, calculo que sim… mas que tipo de problema?
- Técnico, sr. Luís Oliveira.
- Mas não me pode explicar, para eu tentar perceber?
- Era um problema técnico, sr. Luís Oliveira.
- Pronto, está bem. Queira Deus que esteja tudo resolvido.
- Posso ajudá-lo em mais alguma coisa, sr. Luís Oliveira?
 - Não, obrigado, estou aliviado por tudo se ter resolvido tão eficazmente.
- Bom resto de fim de semana, sr. Luís Oliveira.

[10/2, c.19h]
- Boa tarde.
- É novamente o Luís Cabral de Oliveira. Estive há meia dúzia de minutos a falar com um colega seu por causa de grandes dificuldades que tenho desde ontem no acesso à net em minha casa. Nem no skype consigo manter uma conversa.
- Boa tarde uma vez mais, antes de tudo posso perguntar-lhe se o posso tratar por sr. Luís Oliveira?
- Sim, mas chame-me só Luís Oliveira.
- Certamente sr. Luís Oliveira. Dá-me um instante para verificar a sua situação?
- Faça favor. E agradece-lho que veja com cuidado. Um colega seu tentou resolver mas ficou tudo na mesma!
- Obrigado por ter esperado, sr. Luís Oliveira. Constatei agora que há duas questões…
- Ai sim?
- Pois… por um lado, o senhor mora numa zona muito densamente povoada.
- É normal, moro numa cidade, não numa quinta na serra da Estrela.
- Isso é um problema.
- Está a dizer-me que se morasse numa quinta perdida na Beira a minha ligação era melhor? Ambos sabemos que isso não é verdade.
- Pois…
- Além disso, como é que até há um par de dias a ligação era excelente e, depois de um breve período de agonia, agora está péssima. Não tem lógica nenhuma.
- Pois…
- Bom, e o segundo problema?
- Ah, esse é técnico.
- Será o mesmo de que o seu colega me falou?
- Não sei, não ouvi a conversa. Que problema era?
- Ele não me disse, apenas repetia que era técnico. Que problema é que o senhor identificou agora?
- Também técnico.
- Mas como quer que eu perceba o que se passa se todos apenas me dizem que os problemas são “técnicos”? Não há milhares de tipos diferentes de problemas técnicos?
- Claro que há.
- Ah, bem me parecia: é que eu não sei nada do assunto. Então, de todos esses problemas técnicos possíveis, qual era o meu?
- Era técnico.
[Indignação sustida]
- Ok, mas agora vai tudo começar a funcionar bem?
- Sim.
- Não quer saber o que me aparecia no ecrã? Vou ler-lhe [leio].
- Ok, é isso mesmo: um problema técnico. E o sr. Luís Oliveira deve estar a usar um canal muito cheio. Eu agora vou instalar um dispositivo para o router procurar o canal disponível menos congestionado.
- Ah, isso parece-me bem. Oxalá funcione!
- Sr. Luís Oliveira, tem um replicador [isto dito com uma cerrada pronúncia do norte].
- Peço imensa desculpa, não sei o é. Ou melhor, não percebi o que disse.
- Um replicador!!!
- Oh, não, a minha casa é um pequeno T2.
- Estou a ver que tem imensos equipamentos ligados.
- A sério? Como é possível? Devia ser apenas o meu pc, o telemóvel e a impressora.
- Isso.
- Ora, e está a dizer-me que são imensos equipamentos?
- Pois, na verdade, eu costumo ter mais em minha casa. E não tenho problemas.
- Então não percebo o seu raciocínio.
- Poissssssss… Pronto, já está bom. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa, sr. Luís Oliveira?
 - Não, muito obrigado.
- Bom resto de fim de semana, sr. Luís Oliveira.

[10/2, c.19.40h]
- Boa noite.
- Fala o Luís Cabral de Oliveira. Pela terceira vez esta noite, depois de dois colegas seus alegadamente terem resolvido um caso sério de dificuldade de conexão à net. Sem nenhum sucesso, em qualquer das vezes. E eu preciso mesmo que isto se resolva. Não é melhor mandar vir cá um piquete? Aparece-me um aviso alertando para a necessidade de verificar o router e o modem.
- Boa noite, antes de mais posso perguntar-lhe se o posso tratar por sr. Luís Oliveira?
- Sim, mas chame-me só Luís Oliveira, sem senhor. Não percebo a vossa fixação nas formas de tratamento dos clientes. Não me parece ser o mais importante quando alguém vos liga.
- Certamente sr. Luís Oliveira. Estou a confirmar e o sr. Luís Oliveira já telefonou duas vezes há pouquíssimo tempo.
- Acredite que não o teria feito caso não precisasse.
- sr. Luís Oliveira, está perto do router?
- Estou na divisão contígua.
- Algum dos meus colegas já lhe pediu para levar o computador para a divisão onde se encontra o router?
- Não.
- Isso é estranho…
- Pois, olhe, eu não sei se é ou não… não percebo nada disto e só gostava de ver o problema resolvido de forma eficaz.
- Certamente, sr. Luís Oliveira. Leve-o para essa divisão.
- Ok, já cá estou.
- Já identifiquei o problema.
- Ah, excelente. E que tipo de problema era?
- Tratava-se de um problema técnico, sr. Luís Oliveira.
- Por amor de Deus, não se pode limitar a dizer-me isso!
- Mas era o que era, sr. Luís Oliveira: um problema técnico.
- Não duvido disso, o especialista é o senhor. Mas ficaria muito satisfeito se me explicasse o tipo do problema técnico em questão. Só para eu perceber.
- Bom, era um problema técnico relacionado com o engarrafamento de utilizadores. Há treze canais disponíveis e eu agora redirecionei-o para um que passa a ser exclusivamente utilizado pelo senhor, sr. Luís Oliveira.
- Ótimo, obrigado! E vou voltar a ter uma boa conexão?
- Certamente, sr. Luís Oliveira.
- É porque estou agora a experimentar e está tudo na mesma.
- Poiiiiiiiiis, vai demorar uns instantes, sr. Luís Oliveira.
- Dez minutos?
- Uns instantes.
- Repare, eu aplaudo a sua prudência. Mas dê-me só uma ideia, ainda que vaga, do tempo que o sistema precisará para recuperar. Até lhe digo que nem conto usar o computador mais hoje.
 - Bom, sr. Luís Oliveira, amanhã de manhã cedo já estará tudo operacional.
- Que boas notícias! Não acha portanto mandar vir um técnico?
- Não será necessário, sr. Luís Oliveira.
- Sabe, é que eu, apesar de ser do mais ignorante nestas matérias, acho estranho: houve como que uma rápida degradação do sinal. Não será indício de que o router está a falhar e a chegar ao fim de carreira?
- Não, sr. Luís Oliveira. Tudo está bem agora.
- Então muito boa noite.

[11/2, de manhã cedo]
- Bom dia.
- Olá, é o Luís Cabral de Oliveira. Estou cansado de telefonar para os vossos serviços de assistência. Apesar de três colegas seus terem assegurado uma resolução eficaz, ainda não consigo ter uma boa ligação à net. Tudo persiste na mesma!
- Bom dia, antes de mais pergunto se o posso tratar por sr. Luís Oliveira?
- Trate-me como quiser. Isso não me interessa nada! Eu quero é ver este impasse ultrapassado. Acha que pode ser uma falha no router? Eu preciso mesmo de uma boa ligação à net.
- Pode conceder-me só uns instantes para verificar a situação, sr. Luís Oliveira?
- Sim, naturalmente.
- Sr. Luís Oliveira, vou mandar uma equipa para lhe trocar o router com a maior brevidade possível.
- Excelente! Talvez assim tudo normalize.
- Tem de ser, sr. Luís Oliveira. O senhor tem um sinal de 15%. Absolutamente inútil. Os meus colegas não lhe disseram isso?
- Nada: apenas identificaram vários problemas técnicos, que não explicaram, e asseguraram ressurreições miraculosas da minha ligação.
- Hummm, entendo… Mas isso já não interessa. O técnico estará aí em casa entre as 11 e o meio dia e meia. O que lhe parece?
- Ótimo!

E não é que o técnico chegou ainda antes disso, depois de duas sms a avisar, tratou de tudo com um profissionalismo invejável e deixou-me com um router novo e uma impressão impecável do serviço prestado, complementados com um elogio à vista da sala: “poucos têm uma assim!”.


Deste modo, confesso que ainda não consegui chegar a uma conclusão. Tratar-se-á de estratégia comercial elaborada e genial em que, após nos levarem quase ao desespero, presenteiam o cliente persistente com um serviço excelente? Ou tão apenas a confirmação do velho adágio “Deus ajuda a quem madruga”? Maquiavelismo corporativo ou transcendente ajuda celeste? Temas para refletir em domingos frios, cinzentos e chuvosos – como hoje.


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