Os filhos que por aí tenho esquecidos...
Há
já uns bons anos, quando andava na faculdade (celebrámos no mês passado uma
vintena sobre a primeira matrícula, pelo que passou efetivamente muito tempo),
era regularmente confundido com alguém que, tendo a ousadia de ser demasiado
parecido comigo, cometia o pecadilho ainda maior de cirandar por lugares onde
eu dificilmente estaria. E que assim de vez em quando me conduzia a situações
difíceis.
Esse
outro-eu, por exemplo, andava regularmente de autocarro (eu só recorro a
transportes públicos in extremis,
pois geralmente vou a pé a todo o lado) e pouco polidamente não cumprimentava
os meus conhecidos que lhe acenavam… os quais na ausência de réplica por vezes
amuavam ou pelo menos resmungavam comigo quando me (re)encontravam. Ou saía à
noite para bandas diferentes das que eu apreciava. A ponto de um dia uma
funcionária da faculdade exclamar:
-
Então não me diz nada??
-
Eu? – retorqui espantado – Ah! Desculpe. Com certeza… Bom dia, como está? Que
bom não ter chovido nestes últimos dias, não é?
Para
ouvir uma réplica desarmante:
-
Pois, agora fala assim, quando fala. Mas à noite, quando vai para a gandaia da
rua da Matemática já está muito mais palrador.
Até
tenho fama de responder depressa e certeiramente. Mas desta feita vacilei. Só
me apetecia explicar que não frequentava a rua da Matemática e jamais iria a um
lugar onde se usasse a expressão gandaia
(talvez seja snobeira – é provavelmente snobeira –, mas paciência). E de
acrescentar: isso foi o outro, aquele
palerma que de vez em quando me usurpa a identidade e a enxovalha antes de ma
restituir.
Mas
se enveredasse por tal caminho pareceria maluquinho. E, ontem como agora, estou
plenamente convencido de que é mil vezes preferível ir no mais decrépito
autocarro para a gandaia na mais
deprimente das repúblicas do que dar ares de tontinho com distúrbios de
personalidade!
Enfim,
os anos passaram e as gandaias, na opinião da maioria que acha que já devo
deixar-me de parvoíces, assentar e comprar uma carrinha (Deus me livre!), devem
obrigatoriamente pertencer ao passado. Entretanto, o meu sósia parece ter-se
esfumado. Pelo menos não tem dado sinais de vida. Desejo-lhe coisas pouco
agradáveis: que tenha engordado bizarramente ou ficado careca, para deixarem de
o confundir comigo, que mantenho o meu cabelo orgulhosamente basto e espetado.
No
entanto, esse outro-eu tem vindo a
ser paulatinamente substituído pelo que podemos chamar minis-eu. Isto é, por pretensos filhos que tenho e aparentemente espalho
por vários pontos do país votando-os à ilegitimidade, ou pelo menos a uma
sobranceria desdenhosa. As pobres crianças terão apenas a magra compensação de
surgirem em lugares onde sou conhecido para exibirem publicamente as suas
semelhanças com o progenitor cruel que as ignora.
O
primeiro sinal de alarme soou em Lisboa, na estremecidíssima Sociedade de
Geografia, onde me sinto tão à-vontade que costumo dizer ser a minha segunda
casa na capital. Um belo dia, no bar, enquanto conversava com uma das senhoras
que serve o café, veio à baila a passagem, pouco tempo antes, do meu “filho”
pelo bar/sala de estar. Um “menino muito vivo e muito simpático” que “era mesmo
a sua [minha, portanto] cara”!
-
Mas eu não tenho filho nenhum! – exclamei.
-
Ah, mas era tal e qual! Deve ser sobrinho. Nós fomos todas vê-lo. Era o senhor
em miniatura.
-
O único problema é que também não tenho sobrinhos rapazes.
-
Olhe, então não sei. Mas têm de
pertencer à mesma família!
E
foi neste momento que pensei: será que o outro-eu se anda a reproduzir e a
produzir mini-clones seus – e consequentemente também meus?
O
problema tem aparentemente tendência a agravar-se. Há literalmente um par de
dias, estava eu na cantina a tentar servir sopa com o “Público” debaixo do
braço sem deixar cair nada (uma tarefa que exige máxima concentração e uma boa
dose de coordenação) quando ouço da mesa que se achava nas minhas costas, onde
as funcionárias gostam de se juntar para almoçarem:
-
Professor, podemos fazer-lhe uma pergunta?
-
Sim, sim, claro. Mas deixem-me acabar isto, para me virar. Não é muito urgente,
pois não?
-
Ah, não! – dizia outra – Já andamos há uns tempos para lha fazer.
(O
que diabo será? Pensei eu, entre receios de salpicos de feijão-verde e a busca
de uma colher).
-
Ok, estou pronto – disse, já de tabuleiro completo e em riste.
-
O professor tem um filho, não tem?
-
Eu??
-
Sim, esteve no infantário. Agora talvez já ande no primeiro ano.
-
Ah, não, não sou eu. Eu não tenho filhos.
-
Oh professor, não pode ser! Aquele miúdo é igualzinho
ao professor. Em tudo. No aspeto físico e até na maneira de ser.
-
Pois, mas não sou pai dele.
-
Professor, tem de ser pelo menos seu sobrinho!
Uf!
Outra vez a lengalenga!
-
Não é possível; não tenho sobrinhos rapazes.
-
Ai, professor. Isso é tão estranho!
Tem mesmo de ver o miúdo. Vai ficar impressionado.
Enquanto
procurava com um sorriso amável fechar de vez a questão, remoía para mim mesmo:
outro-eu, se isto for mais uma gracinha das tuas, um dia destes levas um murro!
Estejas ou não acompanhado por esses filhos com que pareces andar a povoar o
país.
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