Wednesday, December 14, 2016

Os filhos que por aí tenho esquecidos...


Há já uns bons anos, quando andava na faculdade (celebrámos no mês passado uma vintena sobre a primeira matrícula, pelo que passou efetivamente muito tempo), era regularmente confundido com alguém que, tendo a ousadia de ser demasiado parecido comigo, cometia o pecadilho ainda maior de cirandar por lugares onde eu dificilmente estaria. E que assim de vez em quando me conduzia a situações difíceis.

Esse outro-eu, por exemplo, andava regularmente de autocarro (eu só recorro a transportes públicos in extremis, pois geralmente vou a pé a todo o lado) e pouco polidamente não cumprimentava os meus conhecidos que lhe acenavam… os quais na ausência de réplica por vezes amuavam ou pelo menos resmungavam comigo quando me (re)encontravam. Ou saía à noite para bandas diferentes das que eu apreciava. A ponto de um dia uma funcionária da faculdade exclamar:

- Então não me diz nada??

- Eu? – retorqui espantado – Ah! Desculpe. Com certeza… Bom dia, como está? Que bom não ter chovido nestes últimos dias, não é?

Para ouvir uma réplica desarmante:

- Pois, agora fala assim, quando fala. Mas à noite, quando vai para a gandaia da rua da Matemática já está muito mais palrador.

Até tenho fama de responder depressa e certeiramente. Mas desta feita vacilei. Só me apetecia explicar que não frequentava a rua da Matemática e jamais iria a um lugar onde se usasse a expressão gandaia (talvez seja snobeira – é provavelmente snobeira –, mas paciência). E de acrescentar: isso foi o outro, aquele palerma que de vez em quando me usurpa a identidade e a enxovalha antes de ma restituir.

Mas se enveredasse por tal caminho pareceria maluquinho. E, ontem como agora, estou plenamente convencido de que é mil vezes preferível ir no mais decrépito autocarro para a gandaia na mais deprimente das repúblicas do que dar ares de tontinho com distúrbios de personalidade!

Enfim, os anos passaram e as gandaias, na opinião da maioria que acha que já devo deixar-me de parvoíces, assentar e comprar uma carrinha (Deus me livre!), devem obrigatoriamente pertencer ao passado. Entretanto, o meu sósia parece ter-se esfumado. Pelo menos não tem dado sinais de vida. Desejo-lhe coisas pouco agradáveis: que tenha engordado bizarramente ou ficado careca, para deixarem de o confundir comigo, que mantenho o meu cabelo orgulhosamente basto e espetado.

No entanto, esse outro-eu tem vindo a ser paulatinamente substituído pelo que podemos chamar minis-eu. Isto é, por pretensos filhos que tenho e aparentemente espalho por vários pontos do país votando-os à ilegitimidade, ou pelo menos a uma sobranceria desdenhosa. As pobres crianças terão apenas a magra compensação de surgirem em lugares onde sou conhecido para exibirem publicamente as suas semelhanças com o progenitor cruel que as ignora.

O primeiro sinal de alarme soou em Lisboa, na estremecidíssima Sociedade de Geografia, onde me sinto tão à-vontade que costumo dizer ser a minha segunda casa na capital. Um belo dia, no bar, enquanto conversava com uma das senhoras que serve o café, veio à baila a passagem, pouco tempo antes, do meu “filho” pelo bar/sala de estar. Um “menino muito vivo e muito simpático” que “era mesmo a sua [minha, portanto] cara”!

- Mas eu não tenho filho nenhum! – exclamei.

- Ah, mas era tal e qual! Deve ser sobrinho. Nós fomos todas vê-lo. Era o senhor em miniatura.

- O único problema é que também não tenho sobrinhos rapazes.

- Olhe, então não sei. Mas têm de pertencer à mesma família!

E foi neste momento que pensei: será que o outro-eu se anda a reproduzir e a produzir mini-clones seus – e consequentemente também meus?

O problema tem aparentemente tendência a agravar-se. Há literalmente um par de dias, estava eu na cantina a tentar servir sopa com o “Público” debaixo do braço sem deixar cair nada (uma tarefa que exige máxima concentração e uma boa dose de coordenação) quando ouço da mesa que se achava nas minhas costas, onde as funcionárias gostam de se juntar para almoçarem:

- Professor, podemos fazer-lhe uma pergunta?

- Sim, sim, claro. Mas deixem-me acabar isto, para me virar. Não é muito urgente, pois não?

- Ah, não! – dizia outra – Já andamos há uns tempos para lha fazer.

(O que diabo será? Pensei eu, entre receios de salpicos de feijão-verde e a busca de uma colher).

- Ok, estou pronto – disse, já de tabuleiro completo e em riste.

- O professor tem um filho, não tem?

- Eu??

- Sim, esteve no infantário. Agora talvez já ande no primeiro ano.

- Ah, não, não sou eu. Eu não tenho filhos.

- Oh professor, não pode ser! Aquele miúdo é igualzinho ao professor. Em tudo. No aspeto físico e até na maneira de ser.

- Pois, mas não sou pai dele.

- Professor, tem de ser pelo menos seu sobrinho!

Uf! Outra vez a lengalenga!

- Não é possível; não tenho sobrinhos rapazes.

- Ai, professor. Isso é tão estranho! Tem mesmo de ver o miúdo. Vai ficar impressionado.

Enquanto procurava com um sorriso amável fechar de vez a questão, remoía para mim mesmo: outro-eu, se isto for mais uma gracinha das tuas, um dia destes levas um murro! Estejas ou não acompanhado por esses filhos com que pareces andar a povoar o país.

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