Tuesday, May 17, 2016

Morrer


Nestes dias tenho andado (por assim dizer) com a morte à perna. Não, não sucumbi a quaisquer tendências suicidas e não sofro de mal terrível e incurável – o goal permanece no mínimo dos 106 anos. No entanto, várias vezes avistei a senhora de capuz e gadanha a acenar (e não acenar-me, note-se!) ao longe. E em todas essas ocasiões fiquei a pensar em aspetos diferentes relacionados com a passagem que um dia todos inevitavelmente teremos de fazer (espero que tenhamos liberdade de escolher o portão por onde transitamos – se for esse o caso, eu obviamente quero um coberto de talha dourada barroca) e (certamente por defeito de ofício: o jurista que se preocupa com a transmissão da propriedade e o historiador concentrado no legado imaterial) na memória que deixaremos.

Em primeiro lugar, um professor com quem desde há muito mantinha relações de boa amizade e intensas discussões científicas sucumbiu à terrível enfermidade que o minava. Foi um desfecho previsível e, acima de tudo, previsto e preparado – por ele e pelos que lhe eram próximos. Apesar de cada vez mais doente, conseguiu num esforço notável deixar um legado impressionante em boa parte construído na fase final (e mais dura) da vida. Prestaram-se-lhe inúmeras homenagens, desde o parlamento a amigos e admiradores vários. O seu nome sobreviverá. Eu confesso ter ficado com uma certa incomodidade por não ter marcado presença no funeral. Era-me mesmo impossível e sei bem que a minha comparência entre os muitos que se encontraram na vilória onde terminou os seus dias passaria desapercebida. Não foi isso que me custou; mas o facto de nós, os juniores, não nos termos conseguido organizar de forma rápida e eficaz para lá termos estado. É o problema das cerimónias fúnebres em terras pequenas: por vezes torna-se difícil lá chegar. E eu que quero que me levem para o jazigo de Poiares…

Em segundo lugar, em breve o meu Avô, se estivesse vivo, completaria 100 anos. Lembrei-me do facto há uns tempos, quando folheava a meias com a Avó um dos álbuns “da Covilhã” (a terra natal do Avô). Numa página, por entre fotografias acastanhadas de bailes e atuações do orfeon no qual o Avô e os irmãos cantaram, havia um retrato tipo passe de um rapaz olhos escuros e com o cabelo totalmente empastado de brilhantina.

- Este deve ser um primo qualquer, ou um amigo do Avô – despachei eu.

A Avó ajustou os óculos e aproximou o álbum dos olhos:

- Ora, por amor de Deus, este É o Avô. Bastante novo. Devia ter para aí uns 17, 18 anos.

- A sério? Nunca diria! Nem parece ter o cabelo encaracolado, como o Avô tinha (tentei desculpar-me).

A Avó não desarmou:

- Com brilhantina não havia cabelo encaracolado que resistisse! E vê-se perfeitamente que é ele. Repara nos olhos! E já era um rapaz vaidoso: olha a gravata. Ainda acrescentou: Ah! E o cabelo do Avô não era encaracolado, mas sim ondulado!

Fiquei a pensar em que, caso não tivesse tido aquela conversa com a Avó, no futuro próximo a dita foto seria relegada para a vala comum das “fotografias de amigos e primos-de-quem-já-ninguém-sabe-o-nome (salvo se forem Cabrais: nesse caso, a probabilidade de se chamarem Eduardos ou Eduardas é considerável). E isto pelo próprio neto do fotografado.

Na sexta seguinte, a Avó disse-me ao jantar:

- Hoje faz 77 anos que o meu Pai morreu.

Nova resposta desastrada da minha parte:

- Ui! Já foi há imenso tempo! Há quase um século.

A Avó mirou-me carrancuda:

- Não estou nada de acordo! Não me parece assim tanto. Lembro-me dele todos os dias. E se fosse há mais de um século EU teria mais de cem anos! (Já se sabe que nunca se deve chamar velha a uma senhora!)

No caso do Bisavô, que desapareceu há tanto tempo, a situação é um pouco diferente: a morte precoce levou a que a filha se afadigasse em não deixar perder a memória de que a passagem dos anos inevitavelmente se encarregaria. Apesar de já quase ninguém (bom, exceto a Avó, naturalmente) se lembrar dele vivo, a sua recordação ainda perpassa na família. Sabemos quais os seus pratos preferidos, o que gostava de vestir, os desportos de que gostava, etc., etc, tudo envolto na imagem deturpada de homem excelso que a minha Avó, motivada certamente pelas saudades, acaba por tentar passar. Há fotos suas em várias casas, mirando-nos ostentando ar de tédio sob o cabelo penteado com o inacreditável risco ao meio que os rapazes daquela geração adotaram em massa. A Avó conta centos de episódios que o envolvem. Como gostava muito de fotografia, temos várias fotos que tirou. E textos que publicou – sendo que o meu Pai até conserva um encaixilhado no seu escritório. E o meu Pai e eu assinamos com o pseudónimo que o Bisavô usava – e espero que ao longo das gerações todos continuemos, sempre que necessário, a identificarmo-nos assim: Larbac.

Morto há tanto tempo, o Bisavô H. – com as suas qualidades e defeitos – ainda é uma memória fresca, observando-nos desde a Seia de há quase oito décadas.

Finalmente, com o jantar dos vinte anos de entrada na faculdade em preparação, falaram-me de um colega um ou dois anos mais velho que, coitado, se suicidou. Várias pessoas em diferentes momentos referiram o tal rapaz.

Em todas as situações tive de admitir:

- Não estou a ver quem era, não me lembro mesmo dele.

As respostas não variavam muito:

- Tens de te lembrar! E passavam a enumerar uma série de qualidades que o tal colega teria: era simpático, excelente conversador, carismático, sei lá eu mais o quê.

Eu no entanto continuava a repisar:

- Não sei quem é!

Porém, teimoso como sou, fui em busca da memória que dele restasse, pouco tempo rolado sobre a sua morte. Sendo uma pessoa da minha geração, acreditei que o Google me garantisse resposta célere e eficaz. E fê-lo. Mas, senhores, em que termos! Rapidamente fui levado para uma espécie de página de comentários, onde o meu pobre colega ia respondendo a perguntas que eram livremente lançadas para o ciberespaço. E fazia-o com uma franqueza estonteante, que surpreende e por vezes fere: falando das depressões que teve, das tentativas falhadas de acabar com tudo, da separação que o afetou muitíssimo, dos seus medos e angústias.

Daqui a uns anos, será isso o que sobrará? Quais os vestígios do tal rapaz tão prometedor?

No meu caso, se a tal senhora da gadanha resolver passar mais cedo (mas nem se atreva a pensar nisso, ouviu?!), espero que pelo menos os Prazos possam dar uma imagem mais risonha de mim: o tipo que gostava de ir plantando este Serrazim de uma forma aparentemente anárquica mas que para ele fazia todo o sentido