Tuesday, June 17, 2014

"Agora vou mostrar o quarto"

Uma das coisas que mais me irrita quando vou a casa de alguém que não conheço bem – nem sinto qualquer vontade nesse sentido – é que me façam uma “visita guiada” pelas divisões da mesma. Mais: que acompanhem esse “tour” forçado com uma montanha de informações desnecessárias e em regra tremendamente desinteressantes – para mim, que não sinto qualquer afinidade com a/o guia de modo a seguir atentamente semelhantes deambulações em torno das suas rotinas domésticas.
Esta prática é muitíssimo comum em gente da minha geração. Gente que já é “crescida” (também em termos de desafogo económico) para manter uma casa confortável e que em regra vive sozinha durante a maior parte do ano. No plano da teoria eu tendia a acreditar que quanto mais tempo alguém vivesse desacompanhado mais dificuldade teria em abrir as portas das suas alcovas íntimas. A prática tem demonstrado o quão enganado estava.
Certas pessoas aparentam sentir genuíno prazer em franquear aos visitantes todo o tipo de salas, quartos e cubículos. Somos obrigados a percorrer casas de banho iguais a milhares de outras e tentar encontrar à pressa algo amável com que dar resposta à solicitude do/da dono/a do imóvel. Já me vi obrigado a elogiar a cor de azulejos, a disposição da banheira, a utilidade de um toalheiro… enfim, já me vi forçado a balbuciar uma série de disparates incoerentes e pescados à última hora e que pelo menos a mim soaram forçadíssimos. O mesmo se passa com as varandas. Se se tratar de um apartamento com um terraço brutal, com uma vista fantástica, é claro que até agradeço que o mostrem. No entanto, e se o que houver para exibir for uma banal e tristonha varanda de meia dúzia de metros quadrados, um estendal e três vasos de sardinheiras olhando uma estrada cinzenta e anónima? Lá terá de vir o sorriso forçado e a consideração da praxe: “Uma casa sem varanda nem é bem uma casa, não é?”. E com sorte não recebemos a réplica do costume “É como uma casa de banho sem janela… como se pode imaginar tal coisa?”. Eu fico sempre a matutar em que se calhar perco muito tempo com assuntos demasiado fúteis, pois nunca me debrucei com empenho sobre problemas tão terrivelmente profundos.
Também detesto quando me mostram despensas – e já me exibiram várias. Abrem uma porta e proclamam:
- Eis a despensa!
Claro que eu respondo segundo o figurino:
- Excelente! O jeito que dá uma boa despensa! E fica mesmo gira com essas prateleiras azuis em redor.
Quando na verdade o que dá vontade de dizer é:
- A sério que é uma despensa? Quem diria!!! Nem essas prateleiras cheias de mercearias, nem o aspirador e a vassoura a um canto, nem o cheiro ténue a bafio indiciam nada disso! E qual é a razão pela qual me estás a mostrar, a mim que mal me conheces, uma bodega de uma despensa? Terei eu cara de copeiro?
No entanto, nada bate a “mostra do quarto”. Geralmente é a divisão que se deixa para o fim. Não sei se se trata de um procedimento habitual ou apenas de coincidências, mas enfim…
Há uns tempos fui um bocado contrariado com um grande amigo a casa de uma conhecida dele que nos desafiou para tomarmos um café. Eu tinha visto a rapariga duas vezes na vida – e, sejamos sinceros, nada nela me fazia ter vontade de ver muitas mais. O apartamento era novo e a rapariga compreensivelmente quis mostrá-lo ao meu amigo – o que tem toda a lógica pois eles é que se conheciam. Eu tentei desconversar, simulei estar a mandar sms, procurei em vão na sala um qualquer jornal ao qual me agarrar, mas nada me valeu. A sala era o cúmulo do “estilo impessoal”, não tinha uma fibra fora de ordem, não tinha um papel, uma caneta, um jornal, um livro… nada!!! O único sinal de que ali morava gente era uma manta dobrada ao canto do sofá. Mas dobrada com uma exatidão e com um cuidado nos vincos que quase duvidei de que alguém efetivamente a usasse. Sem um galho raquítico ao qual me agarrar, lá me vi eu arrastado na enxurrada da visita à casa. E lá chegámos ao quarto.
Valeu a pena ver tal divisão? Para mim, não. Por um lado, era o quarto mais banal do mundo – e tão impessoal como a sala. Por outro, a única divisão que tinha um livro. Sim: o T3 de uma mulher culta, licenciada e desempenhando funções de considerável respeitabilidade tinha um livro. E se bem me lembro era… Paulo Coelho! Creio que o propósito destas mostras é aumentar o conceito do dono/a da casa. Neste caso, o efeito foi exatamente o oposto! Por fim, eu sinto-me terrivelmente desconfortável em quartos nos quais não quero estar. Que diabo: um quarto é uma zona reservada, não um mostruário ou uma sala comum onde se recebem visitas ou o hall onde se deixa entrar o carteiro ou homem do Círculo de Leitores!
Estas mostras de casas acarretam ainda três problemas adicionais.
Em primeiro lugar, é impossível não pensar em quão tremendamente feias são algumas das coisas que as pessoas têm em casa. E dá um trabalhão disfarçar! Mas esse é o menor dos obstáculos.
Em segundo lugar, várias das pessoas de que estou a falar têm já capacidade para investir no mundo das antiguidades. Um mundo que, como os que me são mais próximos sabem, me é particularmente caro. Ora, como eu domino meia dúzia de coisas sobre o assunto é quase certo e sabido que me vão mostrar uns chaços tremendos e adquiridos a peso de ouro.
- Já sei que és barra em antiguidades, tens de ver isto!
E apresentam ou um buda disforme, um candeeiro péssimo, uma jarra fraquinha, uma cadeira manca. Tartamudeio:
- Ah, em matéria de velharias o que interessa é o gosto de quem as compra…
Responde-me um sobrolho franzido:
- Velharia?? Isto é uma antiguidade.
- Ok, ok, disse por dizer. Eu chamo velharia a tudo. Não ligues.
Está ultrapassado o preâmbulo. É a agora possível lançar a temível pergunta:
- E em quanto avaliarias esta peça?
Em muitos dos casos minha vontade é responder:
- Honestamente? 7 euros, 9 e meio no máximo.
Mas não quero ser desagradável (vá, chamem-me cobarde!) e procuro invariavelmente uma solução mais airosa:
- Tudo depende da ocasião, da capacidade de regatear, da disposição do vendedor, de conseguirmos não mostrar a nossa vontade em adquirir a peça…
e começo a contar uma das minhas historietas de regateios. Graças a Deus, até agora o esquema tem funcionado: a pessoa acaba por dizer ela quanto pagou e descrever os pormenores da aquisição. E o tema delicado morre docemente ali.
Em terceiro lugar existe o terrível risco da comparação. Friso uma vez mais que estou a referir-me a casas e a pessoas que não conheço bem. Se estivesse em causa qualquer um dos meus amigos tal nunca aconteceria…simplesmente porque eles já me conhecem e sabem como sou e penso.
- E a tua casa, como é?
Tento escapar à pergunta:
- Normal, normalíssima! Aliás, eu ando sempre a saltitar de terra em terra, não consigo manter uma casa como esta.
Voltam à carga:
- Sim, mas o que é que tu tens? Onde compraste os móveis?
- O que é que eu tenho? Ehhh… livros.
- Livros??
- Sim, eu tenho sobretudo livros. Os livros estão praticamente em todo o lado.
- Tens muitos livros?
- Alguns.
- Contam-se na casa das dezenas?
- Dezenas? Eu disse alguns!
- Centenas?
- Eu disse alguns…!!!
Esta parte da conversa termina com um olhar de assombro que resguarda um pensamento do género “pobre freak enterrado na sua biblioteca”!
-E gostas de móveis design?
- Hummm… não sei muito sobre o assunto.
- Comprei uns maples beges desenhados por (segue-se o nome de um designer qualquer de que nunca ouvi falar).
- Ah… e são confortáveis?
- Adoro peças bege! E em tons suaves.
- Pois, eu sou um latino empedernido: gosto de tudo bem colorido.
Novo olhar, agora de comiseração: “Pobre bimbo de mau gosto.
- Mas pelo menos tens uma secretária.
- Óbvio.
- Como é ela? Compraste no IKEA?
- Ahahaha, não. Os meus móveis são um pouco mais velhos do que o IKEA. A minha secretária é de torcidos e tremidos.
- E como combinas tu isso com os livros e as cores garridas? Aposto que é tudo clássico!
- Ahahah Nada disso!!! É fácil: ponho-os em cima, ao lado e à volta da secretária e do resto dos móveis conforme me dá jeito.
Terceiro olhar, este de desalento: “É um caso perdido!”.
Uma das situações mais ridículas foi quando um dia me mostraram uma pilha de pratos e travessas também da autoria de um qualquer designer da moda:
- Fantásticos, não são?
- Sem dúvida – menti eu.
- Custaram uma pequena fortuna, mas adoro-os.
- O que interessa é que gostas deles – retorqui (pensando Mas não passa de uma pilha de pratos BRANCOS!!).
- Gostas deste tipo de louça?
- É-me um pouco indiferente.
- Como fazes em Leiria? Compraste um serviço?
- Um serviço?? Mas eu moro sozinho num T0 micro!
- Então como fazes?
- Olha, alterno…
- Não usas louça toda igual (fiquei com a noção de que tinha cometido um pecado grave). Isso já não fica bem na nossa idade!
Confesso que hesitei muito em responder… como iria explicar que tão depressa uso pratos de plástico como louça de Macau com laaaargas décadas ou mesmo uns pratos Satsuma? E que me sentia bem assim?
Não me apeteceu enfrentar um quarto olhar. Aborrecemo-nos facilmente dos olhares de quem não nos interessa.

E limitei-me a sorrir… quero crer que o mais polidamente possível!