Tuesday, July 11, 2006

A "minha" mendiga


muitos, muitos anos, nos tempos da "outra senhora", as pessoas ricas e educadas (ou que assim se julgavam, pelo menos....) tinham pobres à sua conta. Tinham-nos, literalmente. Eram a sua forma particular de devoção "prática", e, nesse sentido, pertenciam-lhes. As minhas Avós, como meninas "bem" daqueles tempos, também tiveram os seus. A Avó de Lisboa dispunha mesmo de uma família, que visitava de tempos a tempos, e pela qual era tratada com grande deferência. A Avó de Seia integrava uma associação que fazia roupa para os desfavorecidos - sobretudo enxovais para recém-nascidos (porque, enfim, sempre era mais "querido" do que andar a coser e talhar calças e saias para os respectivos progenitores) - que depois eram entregues, no pátio do solar onde as meninas mais bafejadas pela sorte se reuniam semanalmente para tomar chá e tricotar.
Tudo isto, nos dias que correm, nos parece - é claro - MUITO estranho, bizarro mesmo. Parece ter vindo dos confins de um tempo quase imemorial. Hoje, naturalmente (e a não ser os saudosistas daqueles anos, que ainda por aí continuam, nas esquinas) ninguém tem pobres. E duvido que os queira ter. Isto porque penso que aquelas meninas de outrora acreditavam piamente nas vantagens que tinha tal ocupação, e, também, que os pobres de alguma forma se resignavam à dita. No presente, pelo contrário, ter um pobre é ter um grave problema! Já ninguém fala dos seus pobres ao chá (bem, já quase ninguém toma chá, mas essa é outra questão), e a nossa devoção não é mais aferida pela forma como cuidávamos dos nossos pobres "de estimação".
No entanto - e bem contra vontade - eu quase "tenho" uma pobre! E odeio-a!
"Tenho-a" porque a vejo quase todos os dias, com o seu ar de mártir, nas escadas do metro por onde quotidianamento desço aos fundos da capital. Odeio-a porque acho que me enganou bem!
Expliquemos: todos os que me conhecem bem sabem que sou um bocado coração de manteiga quando presencio grandes tragédias (ou pequenas, como criancinhas sem recursos e sapatos!). Por isso, eu sentia um certo dó por aquela senhora, coitada, ali sentada todos os dias, em plena escada (deveria levar uma série de safanões, concerteza), abandonada pela fria sociedade hodierna, etc, etc...
Depois, a senhora em questão começou, a meio da tarde, a mudar-se para a paragem do Rato (fim da linha). Mantendo sempre o seu semblante de infortúnio, parecia, no entanto, gostar de paragens "da moda". Tudo bem: era esperta e tinha bom gosto!
Um dia, no entanto, toda a simpatia que por ela nutria ruiu, de forma rápida. Num cartaz, que pusera ao seu lado, escrevera:

"Por favor ajude. NÃO SOU CIGANA"

Não sou cigana!?!? Que racista!! Mesmo reduzida à pobreza, dava-se ao luxo de desprezar os ciganos, que nada pareciam ter feito para lhe merecer aquele comentário despropositado! Pelo contrário, os únicos ciganos que vi cá pelas redondezas estavam a vender raminhos no dia da espiga, e não a pedir esmola.


No entanto, a senhora em questão começou a fazer alguns trabalhos de tricot, para vender. Não eram muito bonitos, nem, decerto, práticos (resumiam-se, sobretudo, a gorros para o frio), mas era algo. E logo LCO, talvez parvamente, voltou a sentir renascer um grão de consideração pela personagem. Sempre Mathias, LCO quase via ali o laborioso início de uma indústria caseira. A senhora não pedia já; oferecia o que manufacturava!
No entanto, o sol brilhou durante pouco tempo. Logo voltou o infame cartaz ("Por favor ajude. NÃO SOU CIGANA") a estragar tudo!

Hoje, quando saí para dar o meu passeio pós-jantar (estas noites óptimas de Verão não se compadecem com permanências debaixo de telha!;)), vi-a, tenha a certeza disso! Estava já não nas escadas, mas na paragem do autocarro, à espera de ir para casa. E não vestia já as roupas esfarrapadas do dia a dia, nem trazia já o seu lenço. Será possível que tenha um "traje de trabalho" de molde a impressionar mais os transeuntes?



Falar de pobres, sei-o bem, é um assunto delicado. Todos desejamos que eles deixem de o ser, mas não sabemos como o fazer. À medida que os meses correm, e que a crise se vai sentindo, presencio isso mesmo pelas ruas privilegiadas desta cidade onde vivo: cada vez mais há mais. Não basta, como sugeria a Susaninha, "escondê-los" - mas será que alguns dos pobres que diariamente nos tocam o coração têm a sua "mise en scene" para nos impressionar?
Como reagir em tais casos, em que a pobreza é escondida por uma aparência de pobreza ainda maior?