Com vista para a Almedina
Nunca compreendi
verdadeiramente aquelas pessoas que só publicam nos seus blogues textos solenes,
pesados, densos – sobre temas igualmente profundos e sérios – sem ensaiarem
qualquer outra abordagem aos assuntos graves que neles tratam do que a que
proporciona uma análise circunspecta.
A questão é perguntar: mas porquê? Porquê
ficar, quase atavicamente, “atado” a uma só forma de encarar uma questão?
Bom… eu não sou
especial defensor de tal escola, pelo que – e apesar de sempre soarem vozes
discordantes que, cheias de boas intenções (creio…), me procuram chamar à razão
(invocando vários motivos: “enfim, porque, afinal de contas, tu ÉS professor de
direito, pelo que tens uma certa imagem a preservar”, “bom, tu pertences a um
determinado grupo, pelo que deves manter uma certa atitude”) – vou,
alegremente, nestes verdejantes prazos serrazinescos, falando do que quero, e
como quero. Mesmo que se trate de assuntos aparentemente insignificantes, mas
com importância para o meu dia-a-dia.
E, hoje, depois de um
dia passado entre aulas (de reposição, em virtude de um colóquio que teve lugar
na passada semana em Lisboa) e Goa, apetece-me falar de…quando corto o cabelo.
Todos os que me
conhecem, pensarão: “Ora, mas que parvoíce! Se tu pelo menos ensaiasses vários
cortes de cabelo, tivesses rastas ou pintasses as melenas de azul, isso poderia
ser interessante”. E essa é a crua verdade: desde os meus late teen´s, quando
tive o cabelo comprido (e foi já há quase tanto tempo que, se não tivesse umas
fotos para relembrar, já quase não tinha memória do facto) que os meus “penteados”
oscilam, numa constante monotonia, entre o aparado curtinho, à moda de
corta-relva (ajuda ter o cabelo naturalmente espetado! ;) ) e o ligeiramente
comprido e empastado com um bocado de gel na franja. Nunca me converti ao
clássico risco-ao-lado (houve amigos, e amigos grandes, que me aconselharam a
mudança, também por eles ensaiada, depois da conclusão do curso), não só porque
não me revia no modelo, mas também por … o meu cabelo espetado, na verdade, não
colaborar muito.
Então, para quê falar
de temas capilares (eu, que nem nunca ensaiei, por outro lado, um bigode, e que
mantenho uma face glabra face chuva ou faça sol)?
Na verdade, porque eu GOSTO
de cortar o cabelo!
Não tanto pelo corte em si – o qual não deixa de ser agradável,
claro, desde logo por preferir usar o cabelo “versão muito curta” (e isto não obstante
algumas vozes críticas, que tentam apelar ao meu ego dizendo “ficas tãaao
melhor com ele ligeiramente mais comprido”) – nem tão pouco por achar que fico
muito mais aceitável quando venho da tosquia. Na verdade, gosto de cortar o
cabelo por causa de quem mo corta. E esse alguém é a Leonor. Eu explico-me
melhor: desde os 6 meses – segundo rezam as crónicas, data em que pela primeira
vez me apararam os cabelos, que na altura ainda eram louros – até aos meus
presente 34 anos – ou seja, num espaço de tempo longo o suficiente para os
ditos se tornarem de um comum castanho e, mais, agora já irem ganhando umas
ocasionais “brancas” – foi sempre a Leonor que me domou os remoinhos e o espeto
capilar que orgulhosamente exibo. Longas ausências de Coimbra? Paciência:
quando regressar, a primeira coisa a fazer, depois de dizer olá à família e
arrumar as malas, é ir à baixa, à Leonor. Anos passados em Lisboa? Felizmente,
a Leonor também abre o seu mítico “Cabeleireiro Monteiro” aos sábados de manhã!
Proposta de corte baratíssimo no barbeiro mais badalado? Sorry, para os meus
cabelos, quero apenas a tesoura e a máquina nas mãos da Leonor.
Ou seja, há 34 anos, a
Leonor – que já dobrou os 80 mas ainda mantém uma energia invejável e uma
vontade de trabalhar imensa, resultando do muito que gosta do que faz (e acho
que trabalhará até ao fim, se lhe for possível) – tem sido uma referência na
minha vida. Isto porque, como sucede a todas as pessoas de quem se é amigo há
mais de três décadas, para mim, ir cortar o cabelo, é também pôr a conversa em
dia, e, graças a uma hora de intensa conversa, relaxar, por uns momentos, de
Goa, dos alunos e dos seus problemas, da crise que nos faz apertar o cinto, e
de mil outras coisas que, saudável e rotineiramente, nos vão preocupando. Isto
por uma série de razões. Por um lado, porque ambos (a Leonor e eu) somos almas
conversadoras, e nada do género de nos mantermos calados mais do que 30
segundos. Muitas pessoas me dizem “se estiveres só tu e uma pedra, tu és capaz
de conversar com a pedra!”. Bom, quando dois deste modelo se juntam, o
resultado é previsível. Por outro, porque ambos gostamos muito de Coimbra, e
nos procuramos manter sempre a par do que por cá se passa. Em paralelo, porque
ambos gostamos imenso de história, e a Leonor conta-me sempre episódios
divertidíssimos da Coimbra de outrora: cenas que viveu, ambiências de que se
recorda, personagens ilustres que passaram pelo seu “Cabeleireiro Monteiro” (noutros
tempos um dos mais requintados da cidade, com clientela bastante selecionada),
gentes de que não se esqueceu, obras que marcaram a cidade e a “sua” baixa,
etc, etc. Por fim, porque somos os dois almas curiosas, e não fazemos cerimónia
nenhuma em dizer “olhe, não conhecia isso. Explique-me lá, pode ser?”.
E o certo é que, quando
termina mais uma destas sessões, que me aliviam de cabelo em excesso e de preocupações acumuladas, saio mais leve, e com outra vontade de encarar os
problemas do quotidiano. De facto, por muito mal disposto que tenha entrado (quando
estou “depre”, “ir à Leonor” é um dos meus melhores remédios), saio logo francamente
reconciliado com as gentes e com a baixa, que vejo da vista privilegiada das
janelas do velho “Cabeleireiro Monteiro”, um primeiro andar debruçado sobre o “canal”
e enfrentando a porta de Almedina. E a verdade é que mesmo a vista dessa
estremecida Almedina, antes e depois de aparadas as melenas, antes e depois de
mais uma boa sessão de conversa com a Leonor, antes e depois de subir as
vetustas escadas (ornadas com os seus putti de madeira de nariz já esboroado) que me levam àquele primeiro andar,
muitas vezes me parece bem diferente.
Com cabelos a menos, um
livro a mais debaixo do braço (é difícil resistir às livrarias da baixa!) e um
café no Nicola – tudo ali, afinal, naquele microcosmos à beira da porta de
Almedina – se lava a alma e se renova a boa disposição de certo jurista de
cabelos espetados e cabeça quadrada.
Uma receita “artesanal”
e arcaica que, nesta época de psiquiatras e terapias, ainda se mostra
avassaladoramente eficaz.
PS: ah! E para os que,
apesar de tudo, considerarem o tema deste “post” pouco profundo
… fiquem sabendo que já
resolvi muitos “nós” e planeei uma boa série de trabalhos em tais deambulações!
;)
3 Comments:
Perfeita merecida esta homenagem à "nossa" Leonor! Ela já sabe?
A Leonor merece, pelo bem que nos faz! ;)
Há, obviamente, muito para saber sobre isso. Eu acho que você fez alguns bons pontos de recursos também. Continue trabalhando trabalho, ótimo!
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