Monday, March 25, 2013

ATÉ BREVE, ROMA DO ORIENTE! :)


Daqui a pouco mais de quatro horas devo ter à porta o táxi que, conduzindo-me da soleira dos Afonsos a Dabolim, percorrerá a primeira etapa da sempre longa viagem de regresso à Europa. Está, pois, próxima a troca da Lisboa do Oriente pela sua congénere ocidental, bem como a da Atenas do Concão (vá, Margão, envaidece-te como só tu sabes!) pela lusa-Atenas. Para lá da apreensão que uma jornada deste calibre inapelavelmente reveste (eu continuo a acalentar um certo temor relativamente a Bombaim e ao seu aeroporto imenso e confuso, no qual a maioria dos funcionários, se bem que em regra atenciosos, se exprime num inglês difícil de descodificar!), parto mais pesado do saber que uma vinda a Goa – e não me refiro somente às invariavelmente proveitosíssimas incursões nos arquivos locais – sempre permite acumular, mas, em paralelo, também mais leve de uma série de preocupações. Passar algum tempo longe – mesmo que sejam poucos dias, e mesmo que seja a trabalhar – ajuda a relativizar as nossas preocupações e a planificar algumas estratégias a adotar no futuro.
Mas vou ainda mais longe: saio a um tempo satisfeito com as semanas cá vividas (não obstante a confusão, os stresses, as formigas, a minha hipocondria e sei lá eu mais o quê!) e – apesar de o regresso a casa me saber sempre muitíssimo bem! – com vontade de voltar.
Parte do dia de hoje foi dedicado às despedidas. O mainato assegurou que a Prakash laundry contava poder lavar muitas mais camisas minhas, pelo que esperava que eu tornasse rapidamente; o rapaz do Coozie Nook (a loja de onde costumo telefonar, na 18 de junho) aconselhou-me a, da próxima vez, relativizar os receios e gastar parte dos meus cabedais não só em chamadas internacionais mas também em alugar uma moto; o ex-rapaz-das-mangas-agora-empresário-do-Little-Presidency augurou um retorno rápido (e eu espero, apesar de com pouca convicção, que, quando da minha próxima temporada em Pangim, ele já tenha abandonado a política de nunca ter trocos e de dar, em vez das rupias em falta, uns bombons de chocolate pequeninos bastante amolentados!); a senhora simpática da loja dos postais fez um sorriso amável e desejou excelente viagem (o que certamente se deve aos muitos que lá compro sempre que estou em terras de Goa); a Céu do Instituto Camões despediu-se com um até breve!; o grupo responsável pela missa em português lamentou a estadia curta mas argumentou, assumindo uma pose compreensiva, que a semana santa se deve passar com a família e a Jeanette e o Clifton fizeram votos de nova estadia nos Afonsos num futuro próximo. E traga a Mãe!, recomendou a Jeanette – sendo que convém explicar que, desde que, há quase quatro anos, a minha progenitora mudou em 24 horas o que em Pangim levaria anos a alterar, ganhou, junto de alguns goeses, uma aura de super-mulher invencível. Dona Teresa é, por certos deles, descrita quase como um relâmpago munido de um infindável rosário de soluções práticas (sempre tão previdente, trazia molas para a roupa!) que certo dia atingiu as pacatas Fontainhas. É, também, alguém com quem convém manter boas relações: Porque foi dizer a Mãe que estava mal disposto? – recriminaram, há uns dias, ao saber que eu tinha alertado a base conimbricense quando senti umas ligeiras tonturas que (claro está!) acreditei pressagiarem o meu fim. Como se, desde uma Coimbra longínqua, Dona Teresa pudesse dar provas de insatisfação pelo facto de, por culpa exclusivamente minha, me ter sentido menos bem por ter comido chamuças acompanhadas por chá com leite e seguidas por um capuccino, fiando-me em excesso no meu estômago de avestruz! Só não me consegui despedir do rapaz do arquivo – ficou o Zé Ferreira incumbido de o fazer, amanhã – por o mesmo, depois de me ter advertido expressa, repetida e enfaticamente que me queria dizer adeus e um até à próxima, desaparecer na hora de fecho daquela casa. Certamente para tomar chá – a desculpa que costuma dar em jeito de justificação das suas demoras.
Para além destas e doutras palavras amáveis, amigos houve que acompanharam os seus desejos de boa viagem e de rápido regresso com pequenas lembranças. Recebê-las deixa-me sempre simultaneamente satisfeito pela atenção que traduzem mas um tanto sem saber o que fazer quando as recebo. É claro que eu sei que as devo agradecer, tanto mais que gostei imenso que mas dessem, sobretudo porque não raro espelham a minha imagem de quem faz a oferta.
O Percival ofereceu-me uma cópia do primeiro trabalho histórico que publicou, no já distante ano de 1958, ainda nos tempos da secção de informação da repartição central de estatística e informação: Arte Indu em Goa: Sri-Manquexa e outros templos de Pondá. E é impossível pensar em Percival sem me recordar nas larguíssimas horas que passámos juntos, conversando sobre a Goa de outrora…
A Anita, o Diogo e os filhos deram-me uma caneca e uma tabuinha de Goa, memorabilia local que associo às dinâmicas da família que me acolheu tão simpaticamente na inóspita Britona durante cerca de 2 meses e com a qual, desde então, vou mantendo contactos regulares. E mandaram um recuerdo para Dona Teresa – que eu, naturalmente, não sei o que é.
Da Céu e o Luís – e a Céu, extensão do braço providencial de MJML durante a minha estreia em Goa, foi a primeira pessoa que conheci nesta terra, quando me foi buscar, aturdido e exausto, a Dabolim – recebi um pequenino kit pio. Quando cheguei a casa – depois do último jantar, com o Zé Ferreira, no meu querido terraço do Pangin Inn, e após de uma última conversa sentado nos cadeirões indo da sala que se lhe segue – lá estava ele, devidamente embrulhado e acompanhado por um pequeno recado. A Céu, sempre atenciosa, tinha-o deixado ao regressar a casa. Não se estranhe a natureza do presente: a Goa das Fontainhas é intrinsecamente católica, e foi a comunidade católica quem me recebeu de braços abertos nesta terra. E a Céu e o Luís são filhos das Fontainhas e deste grupo.
António Manuel Pereira veio de Benaulim deixar algumas fotocópias de documentos que podem ser de utilidade para si (assim gosta de dizer) e uma carta repleta de recomendações e sugestões, como é seu timbre. E o Delfim ofereceu um poster do IV encontro de leitura de poesia multilingue da universidade de Goa, para o qual nos convidou e no qual participámos, o Zé Ferreira declamando uma excelente goesa de Sophia de Mello Breyner e uma sofrível ode às pontes sobre o Mandovi, eu relembrando os tempos dos mandós, dos salões das Velhas Conquistas e dos balcões de Ribandar graças ao elogio das mangas locais feito há mais de um século por Tomás Mourão.
Finalmente, o Gustavo – que partilha comigo o gosto pela história, pelas genealogias e pelo direito – ofereceu-me uma bebinca, a sobremesa das elites que ele tão bem representa. Acertou em cheio: eu gosto IMENSO de bebinca! J
Vou-me assim, mais carregado. Não tanto, porém, de peso efetivo na mala (felizmente, mandei os livros que comprei por barco, magnificamente empacotados na Luís Abreu!), mas sim de boas recordações. Não cairei na tentação e na banalidade de dizer que Goa é uma pérola de rara beleza e que todos os goeses são, no género dos taitianos, gente muito cordial e solícita para com os viajantes: na verdade, gosto – apesar dos inúmeros senãos e de, por vezes, mal conseguir divisar as suas facetas que prefiro – demasiado desta terra para o fazer. Mesmo com o turismo de massas e sem qualidade, mesmo com o caos urbanístico, mesmo com os cães vadios, mesmo com a falta de modos com que por vezes temos de lidar, Goa, para mim, vale sempre a pena. Todos esses aspetos desagradáveis relativizam-se muito quando, sentado na varanda do Pangin Inn, a beber uma coca-cola e a rever os resultados de mais uma jornada no arquivo, penso que, enquanto houver varandas agradáveis, papéis velhos, Velha Goa, Fontainhas, cadeiras indo, solares nas Velhas Conquistas, palmeiras e mar e o Percival, o Gustavo, a Anita e o Diogo, a Céu e o Luís, a Jeanette e o Clifton, o Delfim, António Manuel Pereira e tantos outros retornarei sempre gostosamente. E, claro está, enquanto, à semelhança de uma mão-cheia de aficionados (creio que também estás a dar entrada no grémio, Zé Ferreira!), continuar a ouvir, onde quer que esteja, desde a Roma do Oriente – ressoando no monte da Boavista da Cruz dos Milagres dos Brâmanes do Oratório, no Monte Santo, na Capela do Monte e ao longo do Mandovi – o badalar discreto e constante do sino de ouro que Tomás Ribeiro, perdido entre as insónias provocadas pelo terror do cemitério em que a antiga capital se convertera, a inspiração gerada por aquelas pedras históricas, o medo dos mosquitos e o incitamento do último dos teatinos, imortalizou:

É noite lôbrega! O sino,
O sino d’oiro da Sé,
Dá badaladas soturnas
Chamando às preces noturnas!..
Quem chama o sino? ...quem é?!...


Saturday, March 23, 2013

CAMINHO DE BRITONA


Hoje tornei a Britona, onde, há anos, vivi durante dois duros meses. A caminho da casa, onde uma família amável me esperava, revivi a estrada difícil e sujíssima por onde tinha de passar, o ferry longínquo que tinha de apanhar, os cães vadiando entre as barracas de peixe nauseabundo…

Graças a S. Francisco Xavier agora moro nas Fontainhas!

Hoje voltei por breve período ao pequeno apartamento onde dormi e trabalhei ao longo de praticamente sessenta dias e sessenta noites. Está remodelado e muito melhorado, mas, ao lá entrar, não pude deixar de me lembrar do calor até para mim opressivo quando, noite após noite, tinha de fechar as janelas por temor dos mosquitos e a ventoinha deixava de funcionar devido aos cortes de eletricidade. Veio-me à memória o pavor das incursões das baratas, o pó vermelho que de tudo parecia evolar, a sensação de paz que uma gravura antiga de Macau (hoje no meu escritório) me trazia…

Graças aos Mártires de Cuncolim agora moro nas Fontainhas!

Hoje fui a Britona, e serviram-me salgados apetitosos e um copo de sumo refrescante que me soube bem. Mas não pude deixar de rememorar dos muitos jantares monótonos de bananas, bolachas de água e sal e alguns folhados comprados em Pangim, regados com muita água que me alimentaram durante semanas.

Graças a S. Gonçalo Garcia agora moro nas Fontainhas!

Hoje, quando estava em Britona, passeei brevemente pelo pátio feio e triste para onde davam as minhas janelas, vislumbrei os casebres dos muitos que lá moravam, lembrei-me do sozinho que muitas vezes me senti naquele ermo.

Graças a S. João de Deus agora moro nas Fontainhas!

Hoje, em Britona, apercebi-me de algo assaz importante: nem a terra horrível, nem o quarto feio, nem a sujidade, a solidão, os maus jantares, a distância e a angústia me desviaram do meu caminho! Viver em Britona foi a maior prova de que não estava enganado:

Graças ao Beato José Vaz gosto mesmo de Goa (apesar de preferir algumas das suas partes a outras!)!


Friday, March 22, 2013

LUÍS E O MAINATO


Se eu vivesse efetivamente no século XIX (Deus me livre de tal coisa!, apesar de, na verdade, passar boa parte dos meus dias a pensar em episódios oitocentistas e a “dialogar” e procurar compreender a gente daquelas eras) e, porventura, me perguntassem quais seriam os primeiros 10 conselhos que daria a alguém que se pretendesse instalar em Goa para aqui passar uma temporada, certamente diria:
- Saiba V.Ex.a que deve tomar, quanto antes, um mainato. Mas tenha cuidado com o que escolhe. Se V. Ex.a nisso vir algum préstimo, posso porém aconselhar um ou outro cujos serviços me parecem particularmente recomendáveis. Os mainatos são colaboradores preciosos e (talvez também por isso) poderosos: há que saber tratá-los bem.
Ora, apesar de mais de um século depois muitas coisas terem – felizmente! – conhecido profundíssimas alterações, a importância de se escolher um bom mainato em terras de Goa mantém-se. Há anos, quando cá vim pela primeira vez e me instalei na remota e piscatória Betim, depressa contratei (não se veja nisto qualquer assomo de pompa, pois a modéstia da minha vida naquela terra contrastava fortemente com qualquer assomo de vaidade) a Nati para me dar uma ajuda na limpeza dos meus “salões” e um mainato para me ir lavando a roupa. Diga-se desde já, que, dos dois, a Nati depressa se revelou a escolha mais acertada : o mainato era homem de humores, que ora estava ora não estava, ora cumpria os prazos ora os ignorava, ora desaparecia (e certa vez desapareceu semanas, alegadamente para ir passar férias a Hyderabad, conservando alguma roupa da minha Mãe, que, fiando-se na palavra filial, lha confiara e só com alguma dificuldade a recuperou) ora mandava ir trabalhar em seu lugar qualquer membro da infindável parentela que o assessorava, expressando-se num inglês pior do que básico e marcando as minhas camisas com enormes “PPP” a esferográfica, os quais pareciam avivar-se à medida que, com as lavagens, as cores das mesmas iam esmaecendo. Eu, que gosto de cores fortes (pelo que são geralmente as que uso), cheguei a Goa com um lote de camisas e pólos vermelhonas, azulonas, claramente verdes, etc… e retornei, passados três meses e meio, com um guarda-roupa composto por peças em modestos tons beges!
Quando me mudei de Betim para Pangim – e desde então não há, a meu ver, bairro mais ridente nesta terra do que as Fontainhas, de onde aliás escrevo o presente post – abandonei sem remorsos o meu mainato rural para o substituir por um congénere mais urbano que depressa encontrei a dois passos de casa, à entrada de S. Tomé, numa das lojas do piso térreo do solar dos Costa Campos. Entendemo-nos bem e rapidamente. O mainato de S. Tomé era um rapaz novo, mais constante do que o das margens bardesanas, melhor cumpridor de prazos e (comparativamente) brando quer com as lavagens que empalidecem quer com as marcas que apunha na roupa que lá deixava. Em regra, estava na loja  (mas esse está longe de ser um aspeto que nós, portugueses, possamos criticar!) uma meia hora mais tarde do que devia e terminava a jornada um tanto aquém do anunciado (mas depressa qualquer um dos seus clientes se apercebia que era apenas necessário operar uma pequena mudança de horário: em vez de partir do princípio que mantinha as portas abertas das 8 às 9, como anunciava, era mais seguro considerar que o fazia das 9 às 8); no entanto, rarissimamente se enganava nos dias de entrega de roupa e trocava as peças dos diferentes clientes. E era simpático. Por tudo isso, quando agora tornei a Goa,tornei a recorrer aos seus serviços e, gradualmente, tenho vindo a recordar o decálogo do mainato – conjunto precioso de regras que convém não infringir, sob o risco de se irritar ou entristecer o dito personagem e ver-se, em consequência, sem um par de camisas importantíssimo ou com uma chamuscadela extra do ferro na manga de uma delas. Ei-lo:
1.      o mainato JAMAIS contradiz claramente o seu cliente. Na verdade, reproduz apenas (ou, noutros casos, limita-se a anuir vagamente) aquilo que o cliente deseja ouvir. Por tal, seja sobretudo um bom ouvinte e procure perceber mais do que dar ordens ou emitir opiniões tontas;
2.      o mainato JAMAIS trabalhará apressadamente a pedido do seu cliente. Não adianta dizer que precisa desesperadamente de um par de calças ou de uma dada t-shirt para a hora x. Se der, o mainato tê-las-á pronta; se não conseguir, paciência;
3.      leve sempre dinheiro trocado para pagar; nem lhe passe pela cabeça tentar saldar uma pequena dívida de 30 rupias (preço da lavagem e passagem a ferro de um par de camisas) com uma nota de 500. Não só é ridículo da sua parte, como até pode parecer prepotente e embaraçoso para o mainato;
4.      JAMAIS questione diretamente o mainato sobre como é que a roupa é lavada. É verdade que parece ser mais ou menos claro, pelo menos por vezes, não haver muita intervenção de água e sabão no processo. Mas porventura terá conhecimentos suficientes para poder afirmar que, nesta parte do mundo, a lavagem “tradicional” com água e sabão é a mais eficaz?
5.      JAMAIS lamente a perda de cores da roupa. Esse é um dado adquirido, que deve ter presenta antes de vir para a Índia e recorrer aos serviços do mainato;
6.      não lamente a qualidade da passagem a ferro! Eu tenho imenso respeito pelos serviços do meu mainato nesse domínio, apesar das camisas ligeiramente chamuscadas: se me pusessem aquele ferro primitivo que ele usa (bom, na verdade, se me pusessem qualquer ferro de engomar…) nas mãos, o resultado seria 70 vezes pior;
7.      não pressione o seu mainato a passar a roupa antes de ele considerar estar a mesma em condições. Caso contrário pode receber as peças engomadas, mas encharcadas! E sabe o que acontece aos tecidos húmidos nestes climas, não sabe?
8.      não vocifere contra as marcas que o mainato apõe na sua roupa, a fim de as identificar. Pode, naturalmente, negociar as dimensões das mesmas, bem como o lugar onde ele as insere (nas etiquetas é a melhor sugestão, a meu ver), mas tenha sempre presente que é melhor uma camisa marcada do que uma camisa trocada!
9.      não pretenda JAMAIS saber onde é a sua roupa guardada antes de a mandarem lavar. Provavelmente, fica num canto pouco aliciante da loja que é melhor nem sequer conhecer;
10.  finalmente, não se esqueça que um mainato pode ser (na verdade, acho que deve ser) um associado precioso. Não estou, com isto, a sugerir que se torne no melhor amigo dele, nem que vão beber uma cerveja juntos; no entanto, grave na sua cabeça que de uma relação de amistosa cordialidade nascem sempre frutos benéficos!
Se seguirmos este decálogo – o que é mais simples do que parece à primeira vista – está ultrapassada uma das dificuldades do quotidiano em terras estranhas. Porque, lavada com mais ou menos água, engomada com maior ou menor primor e marcada com intensidade ou discrição, poucas sensações há tão reconfortantes como vestir uma camisa limpa!


Tuesday, March 19, 2013

LOUTOLIM


Uma das coisas que todos os que gostamos desta pequenina e muito particular parcela do subcontinente indiano e a estudamos depressa aprendemos é que não existe uma só Goa, mas sim uma pluralidade delas, que se acotovelam – por vezes, harmoniosamente, noutras com alguma má vontade e fricções – em paragens quer das Velhas, quer das Novas Conquistas. Tal pode ser encarado, creio, ou como uma bênção ou a título de quase maldição. Porquê? Por um lado, é suscetível de ser benéfico para aqueles que anseiam por um primeiro contacto com o caleidoscópio indiano (que aqui encontram relativamente bem representado e, sobretudo, sem os extremos e excessos que, noutros pontos do país, certamente aterrariam os que ainda não estão acostumados às suas particularidades), para aqueles a quem a difusão generalizada em determinada sociedade de uma forma de estar e de pensar é vista como sinal de monotonia (e entre nós, ocidentais, persiste sempre a tendência de idealizarmos uma Índia tudo menos enfadonha) e depressa aborrece, para os vários que – acossados nos seus próprios países natais, torturados por alucinações mais ou menos estrambólicas e perseguindo sonhos igualmente bizarros (e Goa está repleta deles, desses europeus meios desvairados que a buscam em busca de uma vida fácil e “livre” das críticas que, a fazerem tais opções, lhes seriam depressa lançadas nas suas terras natais) almejam simplesmente fugir – e, finalmente, para os que estão já acostumados a viver num autêntico melting pot cultural.
Em paralelo, tamanha diversidade pode constituir um óbice para os que, admirando ou desejando conhecer sobretudo uma ou algumas destas várias Goas que coabitam num mesmo espaço, se vêm forçados a, por vezes, conviver com (e nas) outras Goas, as quais provavelmente nem sequer estimam tanto. Claro está que tais contingências podem – e devem, a meu ver – ser analisadas sempre desde um angulo risonho: o facto de sermos quase forçosamente confrontados com outras realidades e maneiras de ver o mundo que não se compaginam (mais: que, por vezes, parecem ser radicalmente opostas e, mesmo, bastante agressivas para com elas) com as nossas perspetivas torna-nos mais ricos, mais resistentes e mais tolerantes. Ou seja, concorre para, pelo menos em teoria, nos transformarmos em pessoas melhores. No entanto, corre-se sempre, em tal enquadramento, um risco suplementar: sendo certo que nem todas as Goas coexistentes partilham do mesmo destaque na vida quotidiana local – algumas delas são claramente dominantes – podemos por vezes não encontrar, ou perder de vista, depois de a termos vislumbrado, a Goa de que gostamos no mare magnvm em que a mesma se acha imersa. Basta pensar num par de exemplos. No meu caso, não tenho grande simpatia pela Goa dos europeus drogadaços que para cá vêm fazer as figuras tristes que não lhes são consentidas nas suas terras natais; no entanto, ela está por aí, omnipresente. Por outro lado, identifico-me, como é compreensível, muito mais com a Goa católica do que com a hindu. Nada tenho contra os hindus (contra os europeus drogadaços a história já pode ser diversa…), mas não conheço o suficiente a sua religião, a sua língua, a sua mundividência para as compreender. No entanto, a maioria dos que me rodeiam e muitos daqueles com quem trato diária e regularmente são hindus.
Assim sendo, creio que é fundamental, para cada um de nós que vem a esta pequena parcela do subcontinente em busca de saber mais sobre a Goa que prefere, não só jamais deixarmos de a procurar como, depois de encontrarmos, saber onde se acha mais solidamente implantada para, de vez em quando – e também por motivos “terapêuticos” (se a virmos e sentirmos pouco, ainda acabamos por duvidar da sua existência efetiva) – lá irmos, tomarmos uma boa colherada da sua essência e, depois, revigorados e bem-dispostos, tornarmos ao melting pot habitual. No meu caso, uma dessas “bolhas” da Goa que estremeço particularmente é Loutolim. Loutolim, a dois passos do magnífico seminário de Rachol e a três da atualmente menos magnífica Margão (lamento, mas não considero que a outrora Atenas do Concão constitua um caso de sucesso urbanístico), é, a par de Talaulim de Santana, Rachol e Candolim um dos vários epicentros de onde promanaram as elites naturais católicas que estudo e que, para o bem e para o mal, constituem a minha Goa (a qual, está claro, não se esgota nelas, mas muitas vezes se ancora na sua maneira de ver o mundo) – sendo que, de entre tais localidades, é provavelmente aquela que, mercê de uma série de contingências, logrou conservar até hoje esse perfil de forma mais íntegra. Talaulim e Rachol acabaram por sucumbir a epidemias, Candolim em boa medida não resistiu às investidas turísticas… sobra-nos Loutolim. E é aqui que, desde logo, se encontram vários dos casarões que, espelhando a soberba, o poder, a erudição e – porque não dizê-lo? – grau de portuguesismo dessas linhagens (que têm o condão de tão à vontade estarem em pleno Chiado como nas suas verdejantes paragens ancestrais) vão, geração após geração, visitante após visitante, criando pasmo nos que por lá passam (Orlando Ribeiro, por exemplo, foi um dos que não conseguiu resistir ao seu fascínio). Não é só (ou sobretudo) pelo seu tamanho – a Índia está cheia de edifícios de muito maiores proporções – nem pela riqueza arquitetónica ou de interiores (as quais, contudo, são óbvias) que estas casas largas e de semblante simultaneamente solene e confortável se impõem. O que as destaca, a meu ver, a par e para além de todos aqueles predicados, é o facto de espelharem uma Índia e uma Goa muito especial. Uma Índia e uma Goa em acelerado desaparecimento (o certo é que, sejamos francos, falamos de um grupo que jamais foi muito numeroso) – sendo que, contudo, desaparecimento e extinção são realidades muito distintas – e        que, por vezes, hoje, está mais densamente representada nas artérias lisboetas do que nas suas congéneres de Pangim, Margão ou Mapuçá, mas que é a Índia e a Goa de que mais gosto. Para mim, Goa passa muito por cadeiras Voltaire numa varanda confortável de balaustrada ornada para a qual abrem longas fiadas de portadas lavradas (algumas delas ainda com as suas carepas) que nos levam a bibliotecas venerandas e ricas (com o reconfortante cheiro que estas sempre têm) pelas quais passaram gerações de homens de leis e eclesiásticos, a capelas com imagens de S. José Vaz e dos mártires cuncolenses (bem como uma ocasional e estimada pequena relíquia xavieriana) e a salões imponentes, onde as memórias dos mandós de outrora ecoam entre os arabescos dos pesados móveis indo-portugueses de teca, os retratos espalhados pelas paredes (cujas molduras são, naturalmente, sustentadas pelas célebres mãos de madeira que qualquer bom caixilho goês deve exibir), os lustres sempre um bocadinho empoeiradas e as porcelanas de Macau. Nos salões e nas câmaras destas moradas eu encontro, não raro, móveis de torcidos, cadeiras de preguinhos e louça mandarim que me fazem, por sua vez, sentir – estranhamente, poder-se-á dizer – em casa.
De todos os vastos solares de Loutolim (Quadros, Costas, Mirandas, etc, etc) há um de que gosto especialmente. Não se trata, certamente, do mais antigo, nem do de semblante mais aristocrático (no sentido de exibir uma aura de velha fidalguia de província) e, se o meu Pai cá estivesse, talvez me arguisse de que tal escolha refletia os meus gostos burguesões; no entanto, é uma casa de que gosto imenso e para a qual sinto ter, de alguma forma, uma dívida. Falo da morada histórica dos Figueiredos, agora parcialmente convertida (de forma discreta, mantendo todo o bom gosto e o ar de casa de família que lhe associo) em espaço museológico. Estivemos – eu, o Zé Ferreira e a Rachel Miller – lá no passado sábado, fomos magnificamente recebidos pela sempre inexcedível M. de Lourdes Figueiredo de Albuquerque (que tão bem representa a estirpe do Vicente João de Figueiredo a quem Tomás Ribeiro tantos elogios endereçou nas suas Jornadas), e eu respirei fundo e tomei uma daquelas boas colheradas da minha Goa de que acima falo. Essa é, na verdade, a minha dívida a Loutolim em geral, àquela casa em particular, e também aos loutolenses que primeiro me falaram delas, com manifesto entusiasmo, e me exortaram a lá ir (e aqui há que fazer especial menção a Percival e ao Pedro): é lá que, sempre que quero e sempre que preciso, posso ir, encher os pulmões e ganhar alento… porque, afinal, a Goa de que gosto existe e persiste!


Friday, March 15, 2013

RESISTÊNCIAS


Tal como, certamente, terão feito as suas antecessoras desde há muito, todos os fins de tarde, em Pangim, as senhoras da família Mhamai Kamat – as senhoras Camotins, como eram outrora (e aportuguesadamente) chamadas – reúnem-se sentando-se numa fiada de umas cinco ou seis cadeiras dispostas em frente de uma das portas do grande – mas desgracioso – e antigo edifício que tradicionalmente alberga a morada da estirpe. 
Durante a anterior administração, quando assinava Camotim, esta linhagem soube tornar-se poderosa e, apesar de se ver obrigada a medrar numa terra em que o hinduísmo que professava não constituía o mais eficaz dos cartões-de-visita, riquíssima. Na Goa de outrora, onde os mercadores hindus funcionavam quase invariavelmente como bancos particulares disponíveis ao empréstimo de capitais (em troca de um juro confortável) a reinóis, descendentes e naturais a braços com aflições financeiras, os Camotins – e desde logo aqui se espelha o seu ascendente – faziam-no ao próprio Estado. Outro dos reflexos desta (consequente) relação privilegiada com o poder é a localização do casarão familiar, em parte fronteiro ao próprio palácio do Idalcão, onde o governo encontrou sede quando se determinou a transferência da capital desta terra que nos alberga para Pangim. 
Na Goa atual, já sem vice-reis endividados nem governadores e desembargadores reinóis, e dando corpo a um lógico e saudável ciclo de renovação e de agentes e privilégios, os agora Mhamai Kamat perderam praticamente todo o antigo esplendor, que andava associado à aura de riqueza e proximidade dos centros de decisão – e disso se parece ir lamentando o venerando edifício familiar, que, modelar enquanto exemplo do joint family system em Goa, se esboroa um pouco mais a cada ano que passa. Hoje, os Mhamai Kamat – dando mostras, afinal, de ainda manterem alguma da capacidade de adaptação e das habilidades ao nível do marketing que são apanágio de qualquer grande família comerciante – também vivem das memórias dos tempos em que eram Camotins: o seu notável arquivo acha-se no XCHR e é estudado por todos quantos gostam e se dedicam à história de Goa, e são publicados regularmente livros sobre o passado da linhagem. Assim, garantindo a permanência do seu legado e frisando a importância do seu passado, procuram conservar parte do antigo fulgor. 
No entanto – e mesmo eu, que ando sempre num afã em prol da conservação de todos os vestígios de outrora, consigo perceber isto (talvez por, lá no fundo, segundo diz o meu progenitor, ser um burguesão) –, tal opção cobra forçosamente uma fatura pesada: não há mal nenhum (antes pelo contrário, na minha ótica) em mantermos a memória da nossa identidade; no entanto, devemos fazê-lo de forma pró-ativa, de molde a usá-la em benefício de progressão no futuro, não enquanto travão que nos permita, apesar dos ventos soprando em sentido contrário, resistir às novidades. Isto é, creio que o sensato é mesmo fazê-lo enquanto investimento, não enquanto resistência. E é de resistências – digo-o eu, que nada percebo das dinâmicas hindus de Goa e nem sequer falo concanim (ou uma das versões do concanim, pois a língua, à semelhança do Estado que a alberga, está longe de ser uniforme, desdobrando-se antes num leque de variantes conforme castas, credos, origens que fazem cabelos brancos a qualquer neófito) – que sempre me recordo quando, pelo menos uma vez por dia, passo pelo casarão Camotim. No meio do bulício relativo (sempre se está na Índia) da zona da cidade onde se acha implantado – rodeado de serviços administrativos, pequeno comércio e a habitual confusão de trânsito provocada pela exigente trindade ausência de passeios em condições/ condutores demasiado temerários/ gente que constantemente se acotovela ao longo das artérias e se lança para a rua tentando cruzá-la, entre os constantes apitos e sirenes que (desde a mais caquética bicicleta ao skoda – porquê tantos skodas em Pangim, hoje?? – mais reluzente) a todo o momento ferem o ar – a Casa Camotim assume um semblante de relíquia de outras eras. Se é relíquia chorosa de dias de maior abastança, não sei… mas é certo que, a meu ver, não se consegue apartar suficientemente de uma nuvem de passadismo que nada tem a ver com pujança comercial.
Talvez por isso não saiba durantes quantos mais anos – já nem falo, prudentemente, em gerações! – as senhoras Camotins virão, depois das horas de calor mais inclemente, receber a brisa diária ocupando as cadeiras que, em pose praticamente inalterável, se perfilam diante de uma das muitas portas do seu rés-do-chão. Desta forma – reservada e com algum distanciamento, em atmosfera fresca – vão-se mantendo a par do que se passa em seu redor. 
Mas será que tanto basta? Chegará o procurarmos estar – enquanto recatadamente nos sentamos num ambiente doméstico que certamente nos é confortável – informados do que, no buliçoso mundo de lá fora, parece ir acontecendo? Creio bem que não, pelo que mantenho algumas dúvidas sobre se os vindouros transeuntes das ruas de Pangim, daqui a uma vintena ou trintena de anos, continuarão a disfrutar do estranho privilégio de observar, ainda que de relance, as senhoras Camotins enquanto estas, refasteladas, os observam a eles!


A CAMINHO DE VELHA GOA


Creio poder afirmar, sem faltar à verdade, que aprendi a gostar de andar de autocarro em Goa. Antes de começar a frequentar assiduamente os transportes públicos desta terra – primeiro com alguma apreensão, a qual foi sendo substituída por uma confiança crescente, num processo para o qual o contributo da intrépida Giulia Tabacco se mostrou determinante – era praticamente impossível ver-me a bordo de tal tipo de veículo. Seria necessário que uma borrasca violentíssima se tivesse levantado e não desse sinais de amainar rapidamente, ou que uma urgência de última hora me impossibilitasse uma deslocação a pé, ou ainda que estivesse a acompanhar alguém que efetivamente fizesse uso desse meio de transporte para subir para um bus. No entanto, depois de 2008, recorro bastante frequentemente aos autocarros de Coimbra e Lisboa. Porquê? Basicamente, por, desde então, e em comparação com os seus congéneres goeses, os mesmos me parecerem tão confortáveis e modernos que seria uma óbvia estupidez não os aproveitar. Não se veja nestas considerações, porém, uma crítica feroz aos transportes de Goa, que também têm os seus pontos positivos e cuja existência acaba, indubitavelmente, por tornar bem mais fácil a vida dos que, aqui estando e não dispondo de carro ou mota ou de dinheiro suficiente para manter um motorista particular, não gostam de se confinar aos magros limites de Pangim. A seu favor, os autocarros de Goa contam a barateza dos preços que praticam – os quais não creio, contudo, estarem tabelados (ontem, por exemplo, pagámos 10 rupias pelo percurso Pangim-Velha Goa e 8 pelo inverso, o que não deixa de ser surpreendente) –, o colorido que envolve sempre uma viagem a bordo de tais carripanas (sobretudo quando não se têm horários rígidos a cumprir, nem vamos vestidos de modo mais formal) e a mais-valia de, frequentando-os, nos apercebermos melhor como vive, efetivamente, muita da gente desta terra (continuo a achar irritante a opção daqueles que persistem em ver Goa apenas através da brisa refrescante do ar condicionado). Pelo contrário, em desabono, temos fatores como os passageiros acotovelados, a entrada e saída quase em movimento, os assentos desconfortáveis, a música aos berros, os cheiros de uma humanidade que não é rica e se amontoa num compartimento (ainda que sobre rodas) exíguo.
Pessoalmente, acho estas viagens de autocarro divertidas – sobretudo se acompanhado (embora já as tenha feito algumas dezenas de vezes sozinho e daí jamais tenha vindo qualquer mal ao mundo) e rumo a um bom destino. E há melhor destino, por estas paragens, do que Velha Goa, esse oásis em que todos – portugueses, goeses, e até alguns estrangeiros mais sensíveis a tais temas – não resistimos em projetar mentalmente, sobre os escombros magníficos de que qualquer um se orgulha, uma Roma do Oriente, uma outra Lisboa que talvez jamais tenha efetivamente existido com a grandiosidade, a riqueza e a pompa meio lendárias, meio mítica que teimamos em atribuir-lhe? E, conforme diz a minha Mãe – que foi quem me deu a nova, que parece auspiciosa, difundida enquanto dormia no coração das Fontainhas – haveria lugar mais adequado do que esta terra para ficar a saber que o novel Papa é jesuíta e se virá a chamar Francisco (talvez em honra de S. Francisco Xavier)? Batizado por um jesuíta, o Padre Cabral Abranches, e tendo sempre sentido especial simpatia pela congregação (que é determinada, combativa e organizada, e não soçobra, geralmente, perante as adversidades; se eu fosse eclesiástico, seria certamente da Companhia), não posso deixar de notar, na escolha, sinais de um futuro que pode ser risonho. Aguardemos, pois, as consequências efetivas desta eleição, que me surpreendeu – representa, afinal, mais um sucesso dos descendentes de Loyola e Xavier (e também, estamos ou não em Goa?, dos mártires de Cuncolim), que gostam sempre de ir mais além – e me fez lembrar o velho dizer goês, que tanta verdade encerra:
Vice-rei vai, vice-rei vem, mas padre paulista sempre tem.
(Não esqueçamos que o mais tradicional dos colégios inacianos em Goa era o de S. Paulo dos Arcos, razão pela qual estes eram, outrora, muito conhecidos como paulistas).


Tuesday, March 12, 2013

NENÚFAR NO CHARCO


O título do post de hoje foi “roubado” a Avelino Cunhal, que o deu a um dos seus escritos romanceados tendencialmente autobiográficos (re)descoberto e publicado não há muitos anos, entre os elogios dos que admiram a prosa do progenitor daquele que foi seguramente o mais célebre dos militantes do PCP e alguma apreensão da minha família (já devidamente alerta desde “Senalonga”), a qual não podia deixar de – atendendo ao precedente – pensar O que será que ele vai dizer de nós agora? No entanto, as semelhanças com Avelino começam e acabam aí mesmo: no título, que me parece especialmente adequado à nova biblioteca de Goa. Já sabia da construção de um edifício moderno – com todos os confortos que uma casa renovada sempre garante, salas amplas, vistas desafogadas, cadeiras confortáveis e boas mesas de trabalho – há algum tempo, e já tinha visto, inclusive, um pequeno vídeo promocional do mesmo no youtube. De acordo quer com um par de descrições entusiasmadas, quer com aquela gravação de meia dúzia de minutos, as diferenças da novel Central Library face às tradicionais acomodações da velha instituição pareciam abissais: mesmo assim, todos esses louvores (orais e visuais) ficaram aquém da boa impressão que registei ontem, quando a visitei presencialmente pela primeira vez. É certo que não tem o charme da velha Biblioteca Pública, acomodada num dos extremos do vasto antigo quartel que se espraia ao longo de um dos lados da Praça das Sete Janelas, com a entrada ornada pelos belíssimos painéis de azulejos que todos os guias turísticos de Goa enaltecem e onde a secção dos reservados e livros em português, voltada para um pátio interior, mantinha um ambiente de gabinete doméstico que lhe dava graça. Mas os velhos cartapácios e os solenes volumes, as venerandas separatas e os volumosos jornais reunidos ao longo dos séculos iam-se inevitavelmente deteriorando a um ritmo acelerado naquelas salas centenárias e pouco adequadas à sua preservação e fácil consulta. Ao invés, na nova biblioteca – que também acaba por receber o visitante com azulejos (com larga reprodução de um dos desenhos de Mário Miranda, precedendo uma espaçosa escadaria e um átrio amplo) – todos (livralhada, pessoal e leitores) convivem com espaço e confortavelmente. Soube-me bem ir a este verdadeiro e fresco nenúfar nascido na cidade de Pangim, tal como me soube bem encontrar Maria de Lourdes Bravo da Costa e que uma das funcionárias, recordando-se de mim, me viesse cumprimentar com um tremido, mas muito simpático, Bom dia! Como está? Trabalhei prazenteiramente numa mesa desafogada, os livros apareceram com celeridade, e o ambiente era silencioso e adequado ao trabalho. E também não desgosto da ideia de terem construído as novas instalações a, no máximo, dez minutos de caminhada desde a minha porta: passa-se a ponte pedonal que separa as belas Fontainhas da horrorosa Patto, o bairro moderno desta cidade, faz-se uma breve caminhada na margem esquerda (Mana, também aqui a nossa tese se verifica!) e já está! Mas, senhores… em que charco veio a florescer tal nenúfar! Não se trata apenas de ser um edifício de Patto (aliás, a biblioteca até me parece fugir gritantemente da regra dos prédios que aí usualmente se constroem, feiíssimos e sem qualidade nenhuma, que depois de completarem dois anos já parecem ruínas centenárias a desfazerem-se aos pedaços), mas de a terem levantado num espaço junto ao qual está uma lixeira! Se já não percebo como é que a câmara da cidade, burgo pequenino, que facilmente se controla, deixa aquele monturo a céu aberto numa das zonas de expansão da mesma, menos ainda compreendo como é que não tratou de o erradicar quando a abertura na nova biblioteca (uma British Library nos trópicos, chama-lhe, com manifesto exagero e alguma graça, o Zé Ferreira) de que Pangim, com toda a justiça, se ufana. Um toque no cravo e outro na ferradura, portanto, ou, noutra formulação, como novas soluções podem ser parcialmente comprometidas pela manutenção de velhos problemas. Por outro lado, também me deparei (não podia deixar de ser) com reflexos do contrário: velhos problemas que nem as novas soluções conseguem ultrapassar… É que, quando, cheio de esperanças, pedi uma das vetustas miscelâneas em cujo final esperava encontrar anexado um texto (que, julgo, permanecia praticamente ignorado) que me parecia ser interessantíssimo – e cuja referência tinha, num golpe de sorte, extraído de um dos artigos jornalísticos de Mártires Lopes – constatei que os dois opúsculos finais da mesma (obras raras, por sinal) tinham desaparecido!


Monday, March 11, 2013

ORGANISMO LUSO-TROPICAL


Hoje assisti ao nascer do dia através da minha janela de carepas em pleno bairro das Fontainhas. Entre as seis e as seis e meia (altura em que as badaladas solenes da vizinha capela de S. Sebastião ferem o ar e declaram oficialmente aberto o dia, nesta pequena parcela Goa que é maioritariamente católica e onde muitos sabem falar português), os trinados dos pássaros foram-se tornando mais audíveis (há um de que gosto particularmente – e já nem me recordava disto! – pois sempre que termina qualquer dos seus longos gorjeios termina com outro, muitíssimo mais breve, que me soa, incompreensivelmente, como um thank you um pouco mecanizado!), começou a ouvir-se passar uma ou outra bicicleta, mais além um carro qualquer buzinando loucamente, como é hábito local. À medida que, entre as carepas da minha janela, o céu ia adquirindo um transitório mas magnífico (sobretudo no contraste com o verde das árvores fronteiras) tom de azul forte, os sons quotidianos tornam-se progressivamente percetíveis: senhoras varrendo a rua fronteira, os vizinhos da frente a saírem para trabalhar, dois amigos que trocam breves palavras à esquina.
A noite foi curta, pois acabei por dormir menos do que queria. Cheguei ontem a Goa, após uma viagem inevitavelmente demorada e cansativa, sentindo-me um pouco apreensivo: como reagiria a este (ainda que breve, de pouco mais de duas semanas) regresso? Apesar de pensar em Goa mais de 1/3 dos meus dias, já cá não tornava desde 2008, altura em que vivi nestas paragens três meses e meio recheados de momentos excelentes a par de fases difíceis e de bastante angústia: os primeiros, contudo, tinham suplantado largamente as segundas, e fiquei a gostar genuinamente destas paragens e gentes. Mas… e agora? Quando, por fim, o avião começou a investir rumo a Dabolim, foi inevitável lembrar-me do choque que senti no meu primeiro contacto com uma terra que ingenuamente imaginava bordejada de coqueiros e repleta de casarões senhoriais (locupletados, por sua vez, de cristos indo-portugueses e contadores carregados de porcelanas da China) alternados com igrejas. E com mar e rios por todo o lado. Como vim a perceber, algumas destas realidades existem efetivamente… no entanto, digamos assim, não da forma que eu imaginava. Estava eu, deste modo, a braços com uma pontinha de apreensão quando, ao pôr o pé em Dabolim, me senti – talvez incongruentemente, talvez por desespero, talvez porque tenha mesmo ficado refém de alguma forma dos fumos desta Índia – absolutamente confortável, como que entrando em casa há muito conhecida. E assim prossegui rumo ao táxi (excelente, a ideia dos pre-paid!), ao longo do percurso que nos separava de Pangim – o qual continua, com escassos relances de paisagem ainda belos, entre os quais a ilha de S. Jacinto, feioso, desordenado e bastante sujo –, reconhecendo paragens e, também, os cheiros e o magnífico calor desta terra. Nos Afonsos, fui otimamente recebido – graças aos bons ofícios do infatigável Delfim, cujo dinamismo torna a vida dos portugueses que gostam e desejam vir a Goa muito mais branda – pela Jeanette (a qual, lembrando-se de mim quando estava mais gordo, não me reconheceu à primeira) e apreciei logo de imediato o quarto amplo, espaçoso e limpo (com wc e, para minhas delícias, janela de carepas), agora com uma novidade: ar condicionado. Pressurosa, a Jeanette logo o ligou e explicou-me o funcionamento da máquina, e lá ficou a dita funcionando, enquanto eu desemalava o que viera de Portugal. Vai ser excelente à noite!, pensei.
Pois bem… não foi! E porquê? Abra-se, antes de prosseguirmos, um breve parêntesis, para frisar que eu ADORO calor. Mais do que aquelas pessoas que dizem, de forma um tanto anódina, preferir o calor ao frio, eu – e, aí, a par da minha mana, seguimos fielmente o nosso Pai, que é do mesmo modelo – vivo mesmo muito bem com calor. Melhor dizendo: eu vivo sobretudo bem com temperaturas altas. Trabalho melhor, sinto-me mais bem-disposto, vejo o mundo em tons risonhos, e não tenho, em regra, especiais dificuldades em concentrar-me ou em descansar (talvez seja em virtude deste comportamento meridional – e aí já sem ser acompanhado por aqueles meus parentes – o gostar tanto de acordar cedo e da alvorada, e o achar muito agradável, sempre que possível, fazer uma meia hora de sesta depois do almoço). Como, aliás, poderíamos nós sobreviver em Coimbra – ou, pelo menos na Coimbra de outrora, onde os Verões abrasavam? Em compensação, nunca me dei muito bem com ar-condicionado. Faz-me um bocado de dor de cabeça, entope-me o nariz, fico com frio… uma seca, que talvez (quem sabe?) se deva ao facto de eu jamais ter tido grande contacto com ambientes refrigerados desta forma.
Pois bem… deitei-me com o ar condicionado ligado, estranhando o ter de dormir (foi a primeira, e creio que última, vez) em Goa com um lençol e um cobertor (!!). Estava, porém, de tal forma cansado que me virei para o lado e assim fiquei, como uma pedra. Mas uma “pedra Cabral” – dessas que tem os genes do meu Pai – não resiste bem, já o vimos, a baixas temperaturas e, umas três horas e meia volvidas, lá acordo eu com uma desagradabilíssima sensação de frio, associada a uma fina dor-de-cabeça. Obviamente, a primeira coisa que me veio à cabeça, depois de puxar o cobertor e o lençol para o queixo, foi Mas quem é que é o idiota que tem FRIO em Goa em março, ainda por cima em plena vaga de calor?!? O que fazer, então? Os “ses” começavam a acotovelar-se na minha cabeça: se desligar o ar-condicionado, fico certamente sem frio e sem dor de cabeça (o que é bom!), mas o quarto não se tornará numa fornalha demasiado incandescente até para mim? Mas…e se eu abrir a janela, como fiz toda a vida, até porque vi que ela tem uma rede mosquiteira? Hummmm… mas e se a rede tiver algum buraco (lá vou eu investigar a dita rede, que me parece perfeita…contudo, e se me passou algum buraco à revista, e entra por lá qualquer bicharoco mortífero?). E se recorrer à tradicional ventoinha? (ligo-a, e também acho que fica excessivamente fresco). Enfim… os que me conhecem imaginam bem o rosário de hipóteses e conjeturas que me passaram pela mente e os milhentos cenários que desenhei, para acabar sempre num impasse começado pelo inevitável e irritante e se? Recorri, neste transe – que ainda acabava, a continuar, por me garantir uma encantadora constipação – a um meio que admito ser pouco autónomo, mas que se revelou extremamente eficaz: pais, o que acham melhor fazer? Os meus progenitores, cientes da minha patética e atávica fixação em fugir dos mosquitos eventualmente portadores de malária (dessa, creio que nem o apreciar tanto esta terra jamais me livrará) e achando certamente que eu deveria era deitar-me e descansar, aconselharam-me de forma certeira e eficaz: faz um chá, toma um brufen (bye, dor de cabeça!), abre a janela (tem rede, não faz mal, não sejas palerma, mas se ficares seguro aplica um pouco mais de repelente) e DORME!
Este é, aqui chegados, um caso em que se pode dizer: ainda bem que há pais! Embalado pelo cheiro da noite, pelo calor e pelos sons distantes, recuperei outra parte do meu sono!
Tudo isto para concluir que, afinal, não me dou bem com o ar-condicionado! Sou, quem sabe, talvez demasiado primitivo (ou, mesmo, pouco civilizado), mas aquilo faz-me confusão. Uma janela aberta guarnecida com uma rede eficaz e o calor dos trópicos são, para mim, um indutor de sono muito mais eficaz! ;)
Já se ouve o cântico final, num concani não muito afinado…a missa em S. Sebastião acabou e o dia começa nesta Goa pacata, quente, que é católica e trata os portugueses como uns primos distantes que, de vez em quando, gostam de fazer uma visita. É altura de saltar para o duche e, em seguida, tomar o pequeno-almoço no terraço. Depois, há muito para fazer! Bom dia para todos desde a outra Lisboa! J