Tuesday, February 25, 2014

Regresso às aulas no encalço de uma faca de pão

Uf! Chega ao fim o primeiro dia do segundo semestre. Se por um lado estes momentos de retorno da normalidade letiva constituem um suave bálsamo após a avalanche de frequências e exames para corrigir, por outro são uma prova difícil para o mais entusiasta dos profs. Sobretudo para aqueles que, como eu, têm aulas (literalmente) das 8 às 20. Note-se que não me queixo por começar a debater sociologia jurídica pouco depois de o dia nascer – na verdade, todos os que me conhecem sabem que eu gosto de dar aulas cedo. Mas a verdade é que enquanto não me habituo aos novos fusos e crio novas rotinas acabo sempre a jornada um bocado esfalfado. Para mais, os inícios de semana acarretam sempre aqueles mil e um pequenos périplos quotidianos que até são agradáveis quando não feitos a contrarrelógio. Ir ao supermercado, ir comprar laranjas e tomates à frutaria da D. Gina, renovar os livros da biblioteca, passar pela livraria e levantar a coletânea de legislação que tinha encomendado, ir ao pão, etc., etc. A isto há que associar vários extras: os novos horários do ténis; a histeria mais ou menos contida dos alunos que estão no turno 1 e querem mudar para o turno 2, ou vice-versa, ou que pura e simplesmente se acham tão baralhados que não sabem o que querem e pedem o que já têm; discussões sobre temas tão “fascinantes” como de-que-forma-chavemos-de-conseguir-arranjar-verba-para-comprar-quatro-rolos-de-papel-crepe; um exame chegado de fresco de Macau; o novíssimo lote de métodos de avaliação e as suas incontáveis subtilezas; organizar os dossiês das novas ucs, as fichas dos alunos, as pastas a deixar na Associação de Estudantes… Repito: uf!!
Ora, como é habitual, e apesar de ter já tudo delineado e preparado de véspera, hoje cedo quando acordei para dar uma última vista de olhos à aula das 8 tive uma ideia que me pareceu interessantíssima (este tipo de ideias geralmente aparecem-me de manhãzinha, mal desperto) e digna de aplicação imediata na aula. Mãos à obra!, pensei. Em má hora o fiz, pois já tenho anos suficientes de docência para saber de cor uma verdade universal: há uma enorme tendência para nos primeiros dias as coisas falharem e surgirem os imprevistos mais inusitados. É por isso que convém ter tudo preparado de antemão; é por isso que nestas datas nos devemos esforçar por amordaçar a imaginação e silenciar as ideias que teimem em surgir. Deixemo-las marinar, façamo-las aguardar por melhor ocasião, tratemos de subtilmente as iludir e assim fazer com que vão para outra banda. Em data de recomeço, só se deve levar a cabo o que foi rigorosamente delineado. Caso contrário, livrar-nos-emos mais dificilmente dos entraves que certamente aparecerão e tentarão fintar um reinício equilibrado e indolor.
Como era óbvio e previsível, hoje tive a minha dose de estorvos a afastar. Começaram cedo. Primeiro, uma lâmpada fundida. É certo que não é mal que mate, mas irrita. Depois, uma internet soluçante – o que me impedia de concretizar a tal ideia interessantíssima que teimava em querer levar avante. Finalmente, o mistério da faca do pão. Como toda a gente, tenho uma faca do pão. No entanto, já não como toda a gente, sou um bocado paranoico no uso dos meus utensílios de cozinha. Isto é, tenho várias facas com fins determinados: uma para cozinhar (enfim, eu não sei verdadeiramente cozinhar, mas para cortar vegetais e coisas assim), outra para os bolos, outra para o pão and so long. E irrita-me um bocado quando tenho de usar uma para um propósito diferente daquele que eu lhe atribuí. Há como que uma castificação das facas: a faca dos bolos nasceu para cortar bolo e fica impura se tocar em tomate; a faca do pão tem por vocação última enfrentar e abrir todos os tipos de pão e não se conspurca com ovos cozidos cortados às rodelas; etc. É uma parvoíce, eu sei, mas é o que é. Pois bem, hoje bem cedo a faca do pão desaparecera. Procurei-a por toda a minha micro-cozinha, trepei inclusive a uma cadeira para vasculhar os fundos dos armários, tentei perceber onde é que a teria colocado se fosse a senhora da limpeza… tudo sem resultados. Lá me conformei (o cronómetro não perdoava), tentei convencer-me de que num momento de distração tinha deitado a faca para o lixo, e enterrei-a mentalmente. Pensei que em jeito de elogio fúnebre ainda podia perguntar por ela às senhoras da limpeza, mas que o que tinha mesmo de fazer era arranjar uma subsituta. E depressa.
Passou a primeira aula, transcorreu a segunda aula, atenderam-se pedidos de catadupas de alunos e organizaram-se papéis rebeldes que pareciam nascer descontroladamente secretária fora, ponderou-se o grave tema do papel crepe e eis que, no final da manhã e transcorrida a primeira metade da jornada letiva, o tema faca do pão ressuscita. Mal entrei no supermercado, foi a ideia que me assaltou: NÃO posso de maneira nenhuma sair daqui sem uma faca do pão. Já bastou ter de usar a faca da cozinha para cortar pão hoje de manhã. Lá me dirigi para a secção de… como lhe irei eu chamar? “Cutelaria” é demasiado pomposo para meia dúzia de facas expostas num quarto de prateleira, “utilidades do lar” é bastante pindérico, “coisas de cozinha e afins” excessivamente informal… Bom, dirigi-me para a secção indicada (assim não se compromete nada nem ninguém) em busca de uma boa substituta da minha faca desaparecida. Confesso que encarei logo com prazer uma enorme e pesada faca do pão que se destacava entre as suas vizinhas raquíticas. No entanto, a dita não tinha preço e lá tive eu de, faca em riste, ir em busca de uma funcionária que fosse simpática e arranjasse maneira de mo descobrir. Como sempre sucede nestas alturas, parecia que os empregados tinham todos feito greve. Por fim, encontrei uma rapariga que empurrava indolentemente um carrinho de caixotes e abalancei-me rapidamente no seu encalço. Aparentemente não fui o único: uma senhora com ar bastante rezingão na qual nem sequer notara tinha tido a mesma ideia. Ora, a rapariga reparou primeiro em mim do que na senhora rezingona (quem sou eu para criticar o seu bom gosto!) e prontificou-se a despachar o dossiê faca (matéria de importância nacional) antes do problema meramente paroquial de lacticínios que a senhora lhe colocava. Resultado: enquanto a funcionária demandava o valor da minha eventual futura faca tive de suportar olhares enfurecidos. Era forçoso admitir que a estúpida da questão da faca estava a demorar mais tempo e a arranjar mais problemas do que devia. Eternidades depois a funcionária lá regressou, eu fiquei satisfeito com o valor em questão, comprei a faca e vim com ela para casa.
Não fiz mau negócio. – pensava para comigo mesmo, tentando iludir a minha veia Mathias – Tive de comprar uma faca mas acabei por arranjar um quase dois em um: em caso extremo, esta super-faca é praticamente uma arma. Pensamentos muito adequados para serem tidos numa cidade tão violenta como a pacata Leiria é, confesse-se!
Ao chegar a casa, encontrei as senhoras da limpeza e – por mero descargo de consciência e por uma pinga de respeito pela antecessora da minha nova faca “turbo” – perguntei-lhes se porventura sabiam onde é que ela poderia estar. Responderam-me que não a tinham visto e eu não me preocupei mais com o assunto. Agora que tinha uma faca muito mais impressionante, a sua modesta predecessora parecia ter recuado para um escaninho distante da minha memória. Claro que quando me dirigi à cozinha, mesmo que não precisasse de cortar pão nenhum, não descansei enquanto não dei uso à novel faca. Satisfeito com o seu desempenho, atirei o assunto para trás das costas. Mais um dos ridículos micro-entraves de princípio de semestre ultrapassado, concluí.
Costumo dormir uma pequena sesta depois do almoço. É uma forma de compensar as minhas noites curtas e um meio extraordinário de revitalizar o meu cérebro. Depois de uma escassa meia hora de sono sinto-me como novo e pronto para enfrentar a segunda metade do dia. Ora, por assim ser as pessoas que conhecem este meu hábito têm geralmente o cuidado de não me importunar nessa altura. Mas naturalmente a maioria dos que me rodeiam ignora-o. Assim, quando estava a dormir placidamente, sou subitamente acordado por umas batidas vigorosas na porta! Pensei que era alguém para fazer alguma reparação, ou um engano… e dirigi-me um bocado mal-humorado para a porta. Quando a abri, quem descubro eu à soleira? A senhora da limpeza, com um sorriso nos lábios e a minha velha faca na mão!
- É esta a sua faca, professor? Pedimos imensa desculpa, mas confundimo-la com as nossas, que usamos nas limpezas.
E deixou-me com o meu utensílio de cozinha na mão.
Peguei na velha faca do pão, olhei para ela e – maldição! – já não me parecia adequada para faca do pão. Tinha servido entretanto (mesmo que não tivesse sido efetivamente utilizada para esse serviço, a verdade é que fora afetada ao mesmo) como reles faca de limpeza. Bolas! Deixaram-me com um problema entre mãos. Depois de a lavar cuidadosamente, para que me iria ela servir?
Terminei a sesta interrompida, depois do que me lancei com vigor ao trabalho e concluí a jornada com mais uma aula. A história da faca era já mais do que passado remoto.

Quando cheguei a casa, cansado e a apetecer-me um duche e jantar, ao abrir a gaveta dos talheres lá me deparei com as duas facas do pão que agora tenho no meu micro T0 leiriense. Se calhar constituem um bom presságio para o semestre que principia. Esperemos que, à semelhança das facas, o novo período que agora se enceta não só nos permita conservar as coisas boas do passado (mesmo que elas pareçam um tanto escondidas) mas também nos possibilite encontrar coisas ainda melhores. Tão melhores que as suas predecessoras, ainda que sejam sempre bem-vindas e lembradas com uma ponta de simpatia, se tornem pequeninas e obsoletas!

Sunday, February 23, 2014

O Papa e os fatos de treino

Leio que o Papa Francisco, numa interpelação que fez aos casais de namorados (ia escrever jovens namorados, mas creio bem que a juventude não é para aqui chamada), exortou no sentido de se procurar evitar a cultura do provisório e de não se recear o compromisso. Acho que em abstrato a generalidade das pessoas está de acordo com o Papa. No entanto, não sei se esse é o principal problema que ocupa a cabeça de pelo menos boa parte dos “casais não casados” (sejam eles mais ou menos jovens) - e note-se que uso a expressão não casados de forma muito ampla – que conheço e que me rodeiam.
O que responderia se me perguntassem qual considero ser o principal obstáculo que se levanta nas relações da gente da minha faixa etária? Desconfio que escolhesse a opção “medo do compromisso”. Na verdade, julgo passar-se precisamente o contrário: nos ambientes em que me movimento (são os que conheço, não posso falar de outros) grande parte das pessoas deseja ardentemente, por vezes até quase maniacamente um compromisso.
Esta vontade quase irreprimível alberga várias facetas – que me parecem ser todas elas negativas.
Por um lado, a maior parte das pessoas com quem me dou regularmente (e com quem falo destes assuntos) já se sente suficientemente adulta para temer cair no precipício do ficar sozinho para sempre. E como teme essa pena infernal! Faz tudo para evitar resvalar para o caldeirão fumegante da solidão!
 Por outro, algumas dessas mesmas pessoas já se creem “demasiado crescidas para acalentarem ilusões”. É uma consequência tenebrosa que o passar dos anos provoca em muito boa gente: entorpece-as, mata-lhes a vivacidade, acinzenta-as e contribui para que se cubram de um manto de inexpressividade. E lenta mas inexoravelmente vai-as tornando mais pálidas, mais planas, mais chatas. A conversa torna-se secante, a falta de iniciativa é um grilhão e motivo de fuga para os que a rodeiam, a incapacidade de perseguir sonhos e metas espanta antigos conhecimentos. Ninguém normal (penso eu) considera cativante passar o tempo a falar de banalidades relacionadas com obras na casa, tretas acerca de um emprego insípido (o problema destes desistentes é que por o serem em regra não arranjam trabalhos motivantes ou se os arranjam conseguem transformá-los em algo de verdadeiramente soporífero) ou comida. Deus meu! Salvo se forem cozinheiros de profissão (e eu tenho uma grande amiga que o é, e até eu, o nabo culinário que conhecem, me deleito a falar de experiências gastronómicas com ela), não falem constantemente de comida! Não façam dos vossos relatos de fim-de-semana relatos gastronómicos enfadonhos. Não há nada mais narcotizante do que conversas do género:
- Então como correu o feriado?
- Ah, passou-se. Estava cansado/a, fiquei por casa, em pijama. Mas fiz uma bavaroise excelente e grelhei trutas com couscous.
Mas será que as pessoas não sabem que mesmo que tenham sido isto a que efetivamente se dedicaram devem ter pelo menos a honestidade de mentir um bocadinho e não contar a verdade em toda a sua feia crueza? Porque é que acham que me interessa saber se (i) estavam ou não cansados e (ii) usam ou não pijama e quando o fazem ou que (iii) quero saber detalhes das suas patéticas experiências culinárias? Isto lembra-me a moda (felizmente ultrapassada) que gosto de chamar a loucura dos macarons. Em dado momento da minha vida, grande número de conhecidos descobriu que havia macarons e começou a tentar cozinhá-los. Dia e noite, semana após semana, mês depois de mês, só se falava em texturas, sabores e outras subtilezas dos macarons. Começava-se a falar num filme, a discutir qualquer tema, a mandar uma graçola… e tudo acabava inevitavelmente numa orgia de macarons!
Em conclusão: as pessoas tornam-se menos idealistas, menos interessantes e muito mais desesperadas. Ora, por acabarem por tomar consciência de terem passado por esse processo tornam-se também menos exigentes. Têm perfeita noção de que perderam parte considerável do seu potencial de atração (não falo de pessoas burras, como é óbvio). Sabem muitíssimo bem que nem com vinagre se caçam moscas nem com (exclusivamente) serões de macarons e conversa banal se encontra gente diferente e cativante. Mas conformam-se. A que leva isto? A que desejem loucamente e o mais rapidamente possível encontrar um compromisso. Atenção: não falo de almas gémeas ou de companhias ideais: é mesmo de um compromisso, seja ele com quem for, venha ele como vier. Não é a pessoa que me estimula e que admiro? Paciência: é uma pessoa e assim eu não fico sozinho/a.
Portanto, creio que a mensagem do Papa não se aplica a todos os casais que conheço. E o que será pior? Duas pessoas interessantes não se comprometerem numa relação duradoura ou duas pessoas que se tornaram desinteressantes fazerem-no apenas por receio e comodismo?
Cada um tem a sua opinião, mas eu confesso que acho a segunda alternativa bastante assustadora.
Não consigo – não consigo mesmo – imaginar o que é passar parte importante dos meus dias com alguém que considere pouco estimulante ou que não admire profundamente. Isto desde logo por duas razões. Por um lado, por eu ter um feitio desgraçado e certamente ir gastar metade do tempo a odiar-me a mim mesmo por não ter querido ousar ir mais longe e a outra metade a odiar a tal pessoa por não a considerar ao meu “nível” ou (pior!) ao nível a que eu acharia que deveria ter ascendido caso não tivesse soçobrado a meio do caminho. Por outro, por eu só me conseguir manter numa relação a sério com alguém que considere admirável e que por isso mesmo me estimule constantemente a dar o melhor de mim mesmo. E a sentir-me bem com isso. Águas turvas e paradas nunca foram o meu ideal nem me motivaram. Pode ser uma pessoa radicalmente diferente de mim, pode ter interesses opostos, pode ser o que quiser – mas tem de ser um desafio. Um agradável desafio, certamente, mas um desafio. E um desafio a longo prazo, sem meta à vista. O problema aumenta quando pensarmos que não iria ser só eu quem sairia amachucado desse relacionamento semiforçado. Há que ser franco: eu iria fazer transformar a vida dessa outra pessoa num pesadelo.
Hoje de manhã, quando estava a dar o meu passeio pré-cafézada e escalava o Cidral, vi um casal de ar sorumbático da minha idade. Cada um envergava o seu triste fato-de-treino e uma expressão ainda mais tristonha e plana. Note-se que não estou a falar dos arredores da cidade nem de pessoas que se podiam facilmente etiquetar de “suburbanas”. Sei que muita gente que conheço pensaria quem me dera ser um deles, estar tão à vontade com alguém que não tenha de me esforçar: o compromisso basta e segura tudo. Eu pelo contrário pensei: Deus me livre de algum dia na minha vida chegar a tal situação. Quando alguém gosta de outra não lhe vai reservar sobretudo o seu ar mais desmazelado, pois não? Acho que devia fazer exatamente o contrário!
O temor de ficar sozinho e a consciência de que se está a ficar cada vez mais desinteressante pode ter uma outra consequência perniciosa: querermos acreditar com toda a força que a pessoa Y é a certa para nós e tudo fazermos para o conseguirmos demonstrar (sobretudo a nós mesmos). Até forçarmo-nos a ser o que nós somos. Trata-se de um cenário ainda mais horripilante: para além de conformistas e desinteressantes tornamo-nos num caricato pastiche. Conheço vários casos do género: são uma triste sucessão de cenas macabras ou quanto muito verdadeiramente hilariantes.
Como resolver então este dilema que se coloca a tantos de nós? Creio que com uma dose generosa de amor-próprio. Se não formos interessantes e tivermos plena noção desse facto, como podemos sequer ter a louca pretensão de encontrar alguém que o seja? Portanto, toca a pôr os talentos a render! Ou como escreve Pierre Van Breemen num texto curioso que me enviaram: “A aceitação significa que as pessoas com quem vivo me atribuem um sentimento de dignidade, o sentimento que eu tenho da estima. Elas sentem-se felizes que eu seja o que sou. A aceitação significa que sou livre de ser eu próprio. A aceitação significa que, apesar da necessidade de crescer, esta não é forçada. Eu não tenho necessidade de ser uma pessoa que não sou. (…) Quando se aprecia uma pessoa por aquilo que ela faz, ela não é única, qualquer pessoa pode fazer o mesmo trabalho, e talvez melhor do que ela. Mas quando se ama uma pessoa por aquilo que ela é, então ela torna-se uma personalidade única e insubstituível”. Um bocadinho moralista de mais? Talvez. Utópico? Pode-se argumentar que sim. Eu acho sobretudo bastante sensato e aconselhável: para cada um de nós e para quem nos rodeia. Não se pode estar com alguém que não nos conhece e não nos aprecia pelo que somos. E que não apreciamos pelo que essa pessoa é. É cobarde e injusto para todos os envolvidos.

Se alguma vez virem alguém parecido comigo vestido de fato de treino num domingo de manhã, com a barba por fazer, a debater as trutas grelhadas da véspera e obras na lareira enquanto carrego um módulo de uma peça qualquer do Ikea, voltem a cara. De duas uma: ou me estraguei por completo e cedi (como tantos) ao desespero de uma normalização tristonha – e não mereço o vosso cumprimento – ou é uma vez mais aquele tipo irritante (o meu gémeo desconhecido) que se diverte a fazer-se passar por mim aparecendo em lugares onde eu dificilmente estaria. Sim, o tal que andava na gandaia na rua da Matemática, que nunca mais acabava o curso e que se passeava regularmente de autocarro!

Tuesday, February 18, 2014

Bibliófilos do/no facebook

Há já umas semanas que corre no facebook um desafio que encoraja os utilizadores daquela rede social a escolherem dez livros que os marcaram durante a vida. Tenham 15 ou 95 anos, não podem escolher mais do que a dezena prescrita (fica em aberto se as coleções ou as trilogias devem ser consideradas como um item ou vários) e – acima de tudo – é recomendável que o façam com a ligeireza que estas graçolas demandam. Não se assume qualquer vínculo, não se acata nenhum compromisso. Pensa-se nalguns dos livros que fazem ou fizeram parte do nosso quotidiano e listam-se os respetivos títulos e autores. Depois, pede-se o mesmo a uns tantos amigos. E assim sucessivamente. A iniciativa – que é básica e inocente – conheceu bastante adesão. Eu confesso que já fiz o meu rol e que (será isto reflexo do voyeurismo que dizem que o facebook acaba por promover entre os seus utilizadores??) tenho lido com uma pinga de interesse os de outros – conhecidos, amigos ou pessoas sobre as quais não sei grande coisa. Admito que tal já me valeu alguns sorrisos e, mais importante, me permitiu (sempre com a minha mania de padronizar e classificar) criar algumas categorias entre as quais julgo poderem ser repartidos aqueles a quem este “desafio” foi proposto. Sob pena de excluir casos não subsumíveis a nenhuma destas classes, creio que incluem boa parte do universo em análise:
GRUPO I: OS INDIFERENTES Aqui cabem vários tipos de reações. Por um lado, temos os que acharam o desafio uma cretinice e nem sequer se dignaram a pensar nele. Por outro, os que não tiveram (ainda?) oportunidade para lançar mãos ao trabalho. Este foi suplantado por outras prioridades. Finalmente, há os que ou não gostam pura e simplesmente de ler ou apesar de até “consumirem” um livro de tempos a tempos não leram o suficiente (e os suficientes) para conseguirem ter uma visão panorâmica quanto baste que lhes permita andar a escolher obras preferidas/marcantes. São tudo atitudes legítimas.
GRUPO II: OS MEDROSOS Este é um punhado de gente interessante, que inclui várias fações. Penso concretamente nos que apesar de até conseguirem facilmente estabelecer o seu ranking não o fazem por terem receio do que os demais possam pensar. Temem que as suas escolhas não sejam suficientemente eruditas, ricas, variadas, originais… e assim, a meu ver, demonstram que realmente não fazem parte do grupo dos genuínos amantes de livros. Quem gosta de ler e de livros sabe e percebe que há uma enorme gama de tendências, que variam não só de pessoa para pessoa como relativamente a cada um de nós. As preferências bibliográficas mudam conforme a idade, o sítio onde estamos, a altura do ano (uma das leitoras mais compulsivas que conheço lê por exemplo muitíssimo mais numa das metades do ano), com quem estamos, o nosso estado de espírito, o tipo de trabalho que nos achamos a desenvolver…
Devo confessar que acho este grupo um bocadinho desprezível.
GRUPO III: OS VERDADEIROS LEITORES Neste apartado incluo os que tiveram a honestidade e a ausência de pruridos tontos bastantes para com toda a naturalidade elencarem uma mão cheia de títulos que lhes dizem efetivamente alguma coisa. Ou que a dada altura da sua vida desempenharam um papel muito especial. Sem dramas nem subterfúgios e sabendo perfeitamente que nem todas as obras que nos moldaram têm se ter marcos da literatura ou trabalhos mundialmente aclamados. Mais: sabendo que uma verdadeira lista deste género não tem (ia mesmo escrever que não deve) ser totalmente coerente. E que quando feita com honestidade facilmente espelhará – para todos aqueles que a percorrerem – a essência do seu autor. É realmente interessante constatar em como algumas destas pessoas conseguiram efetivamente apresentar uma relação de obras que têm tudo a ver com elas. Com diferentes facetas e aspetos da sua vida – todos importantes, interligados e fundamentais para se compreender a personalidade do verdadeiro leitor que está em causa.
GRUPO IV: AS PATÉTICAS FRAUDES Deixo propositadamente este grupo para último lugar. Creio que sabem a quem me refiro. Nada mais, nada menos do que aos que fizeram listas “politicamente corretas”. De entre os dez títulos que criteriosamente escolheram (sabe-se lá se roubando-os a alguma página da net de onde constem as mais incríveis obras da literatura mundial ou àqueles resumos do género Conheça em 5 minutos as 50 obras-primas da literatura) constam única e exclusivamente títulos batidos de livros universalmente aclamados. Não é que eu desaconselhe a leitura de Dostoievski, Tolstoi, Duras, Proust, Dante, Kafka, Virginia Woolf e Platão. Mas os membros do grupo IV desconhecem duas verdades terríveis. Por um lado, que quem gosta realmente de ler e efetivamentesabe que nem só de Kafka vive o homem… Por outro, que se percebe (e não tem de se abordar o assunto de forma clara) quando alguém leu ou não determinados livros…

Eu continuo a defender o mesmo: há que temer muito mais os que escondem o romance de José Rodrigues dos Santos debaixo da sobrecapa de Tosltoi do que os que abertamente dizem que leram Fúria Divina. A minha Trisavó afirmava que um homem mau era melhor do que um homem estúpido pois o mau pode tornar-se bom mas o estúpido jamais se conseguirá tornar esperto. É fácil adaptar esta máxima ao universo de certos pretensos leitores.

Fastball ao descer a marquês de Pombal

Tive hoje uma reunião que correu especialmente bem. Nada de importante: apenas um dos vários encontros de preparação do semestre a que todos os professores estão acostumados. No meu caso, contudo, tratou-se do primeiro contacto com uma licenciatura e um departamento que não conhecia. E estava tudo em aberto… “Como serão eles?” – é o que inevitavelmente se pensa numa ocasião destas (sobretudo se estamos a falar em pessoas de uma área científica bastante diferente da nossa). “Serão terrivelmente bizarros? Ou pessoas normalíssimas? Ou até simpáticos?”. Tive sorte e calhou-me a última hipótese. Era realmente um grupo cordial e interessante, trataram-me muito bem (portanto, são gente de bom gosto!) e aprendi uma série de coisas.
Em paralelo, recebi notícias de um lugar do qual gosto bastante: o Max Planck de Frankfurt, aka o paraíso dos historiadores do direito. O lugar onde os juristas que se dedicam à história se reúnem tem sempre contornos algo idílicos para os poucos que somos. É o Valhalla pelo qual suspiramos quando nos sentimos isolados. Não se tratou de nada de especial: na verdade, apenas de informações banais sobre a eventualidade de um colóquio que ainda nem sequer se sabe bem se, como e quando se vai realizar. Mas a baforada germânica (e não merkeliana, sublinha-se!) apareceu em boa altura.
Finalmente, chegaram-me novas de um grupo de investigação franco-espanhol que integro.
Ou seja, três pedradas no charco da normalidade tornaram mais interessante este dia em que o sol se decidiu finalmente a brilhar um pouco e permitiu que as sapatilhas (e não só!) não ficassem totalmente empastadas de pó do court.
Ora, é sabido que o nosso cérebro tem mecanismos que não compreendemos e felizmente nos escapam. Por isso não consigo explicar de forma 100% racional a razão pela qual, na viagem de regresso da ESTG para casa, ajoujado pelo peso de cartapácios de direito e bioética, começou a retinir violenta e repetidamente na minha cabeça o velho the way dos Fastball. Uma música desgastada (creio que é de 98), da qual já não me lembrava há que séculos. Para os que não sabem ou não se lembram, a base do the way – que tocava repetidamente nos finais dos anos 90 – é a história de um velho casal americano que a certa altura decide contrariar o previsível e embarcar numa aventura a dois. Recorramos à básica e sempre vilipendiada wikipedia (tanto que já não me lembrava de todos os pormenores da história, mas apenas dos seus contornos gerais):
“Fastball bassist Tony Scalzo came up with the idea for the song after reading journalistic articles which described the disappearance of an older married couple, Lela and Raymond Howard from Salado, Texas, who left home in June 1997 to attend the Pioneer Day festival at nearby Temple, Texas, despite Lela's Alzheimers and Raymond recently coming from brain surgery. They were discovered two weeks later, dead, at the bottom of a ravine near Hot Springs, Arkansas, hundreds of miles off their intended route.
About the song, Scalzo said that "It's a romanticized take on what happened" - he "pictured them taking off to have fun, like they did when they first met." The song's lyrics revolve around an older married couple who decide to give it all away by packing up and going driving. Along the way, their car breaks down, so they continue on foot.


Gostei deste casal desde a primeira vez que o “conheci”. Tal pode parecer paradoxal para alguém que como eu é tão dado a rotinas e a manter algumas coisas inalteradas. Mas na verdade é fácil de compreender.

Ficar ad eternvm preso na mesma realidade modorrenta ou tentar novos voos – ainda que arriscados, mas tendo sempre uma base para onde regressar caso necessário (o casal do the way dos Fastball manteve a sua casa, certo?) – para mais com a pessoa de que se gosta… Há hesitação possível? Eu fazia o mesmo: saía antes de o sol nascer (o que é evidente para os fãs da aurora) e punha-me a andar. Caso o carro pifasse – convenhamos que não é uma hipótese a colocar liminarmente de lado atendendo ao meu jeito para conduzir – queria lá saber. Também continuava a pé. Não cedia, não desistia, não voltava atrás de mãos a abanar e oprimido por uma sensação de derrota. Não me conformava. Não vergava ao imobilismo. E se nos deparássemos com uma qualquer situação terrível? E se daí decorresse mesmo a morte? Ora, paciência. É óbvio que não pouparia meios para o evitar. Mas caso as minhas tentativas para escapar se revelassem infrutíferas e fosse inevitável um desenlace fatal sabia que embora tivesse ficado a meio pelo menos fizera tudo a fim de dobrar o cabo. E esperava – lá está – tornar à base. Enfim, eu não… os meus ossos ou o que de mim restasse. O casal do the way foi descoberto duas semanas depois, no fundo de uma ravina. Já não sobraria grande coisa. Se o mesmo acontecesse comigo, os meus parentes mais próximos saberiam bem o que fazer. Teriam a maçada de reunir os meus vestígios e encaixá-los num canto do jazigo de Poiares. Ah! E mandar celebrar no mínimo uma dezena de trintários gregorianos por padres jesuítas! Na certeza porém de que eu morrera feliz a tentar dar mais uma passada.
É por isso que gosto mesmo do que (pelo menos para mim) é a lição (ou a moral, se me apetecer imitar a duquesa no Alice no País das Maravilhas) desta parelha texana de Salado - a ponto de me fazer recordar músicas obsoletas e ultrapassadas há centúrias! 






Monday, February 03, 2014

ÍTACA DISTANTE

Poder-se-ia pensar que agora que começo finalmente a sentir um discreto aligeiramento da pesada carga que durante anos carreguei aos ombros passaria a dormir melhor. Nada disso. Se bem que já não sofra das crises de insónia que me atacavam no passado (e que não deixam saudades), venho desde há algum tempo padecendo daquilo que na minha ignorância sobre a matéria julgo poder chamar sonhos catarse. Ou seja: agora durmo efetivamente mas passo as noites às voltas com cocktails desordenados e frenéticos do que de bom e mau se passou na minha vida ao longo dos últimos anos. Por um lado, não deixa de ser interessante perceber o que é que o meu subconsciente gravou desse período (admita-se porém que a maioria das recordações que resolveu arquivar não são fáceis nem brandas) e como resolveu ordenar todas essas sensações; por outro, estes exercícios involuntários cansam. A minha sorte é que realmente adoro a aurora e começar a trabalhar antes de o dia raiar; caso contrário, teria a vida mais complicada.
Por estranho que possa parecer (mas não sou eu o tipo que gosta de descobrir relações e padrões nos contextos mais bizantinos?) associei estes recentes malabarismos (palavra que não escolhi ao acaso, pois realmente têm origem em causas malabares) do meu subconsciente a uma conversa tida ontem com uma amiga à frente de umas chávenas de café. Num fim de tarde chuvoso e deprimente, suspirávamos solidariamente contra alguns espinhos existenciais que considerávamos serem parte do duro fado que há que suportar estoicamente até ao momento radioso em que, como que por artes mágicas, os entraves ruirão e os portões das existências perfeitas e ridentes que projetamos para o futuro se escancararão à nossa frente. Sentíamo-nos como que forçados a prosseguir uma longa travessia do deserto, cansados da monotonia das dunas atrás de dunas, encarando já sem grande entusiasmo as tempestades de areia e ansiando não por um oásis modesto com um charco onde pudéssemos parar umas horas mas pelo mar que se espera encontrar no término da caminhada. E por dar uma série de valentes mergulhos nesse mar, obviamente!
Foi neste impasse que a minha amiga lançou uma questão simultaneamente interessante e inquietante. É verdade que estamos empenhados em despachar a travessia, é certo que procuramos dar o nosso melhor e evitar tombos na areia, é inegável que nos temos (como acontece a toda a gente, aliás) defrontado com algumas barreiras difíceis de ultrapassar e até as temos saltado airosamente. No entanto, será que isso basta? Será suficiente continuar a caminhada metódica e pacientemente ou há também que investir noutras frentes e reagir de outras formas? Isto é, haverá uma altura em que se começa a sentir que não chega andar apenas a prosseguir marcha com a preocupação de não nos desviarmos do trilho? Haverá uma altura em que – receio terrível! – acabemos por nos conformar com a caminhada e deixemos de nos preocupar acima de tudo com o seu término? Poderemos (nós e todos os da nossa geração que seguem percursos idênticos) cair na tentação de mais ou menos intencionalmente nos quedarmos pelo caminho – tentando acreditar na patranha de que se não é confortável nem aquilo que imaginávamos, pelo menos não é “mau de todo” e até já “sabemos com o que contar”? Ou seja: estaremos nós a bordejar o precipício escarpado da desistência e deveremos por isso adotar precauções especiais para não nos despenharmos? Ou será que esta é apenas uma das etapas da dita caminhada pelas quais temos de passar forçosamente? Tratar-se-á de um indício de que estamos a concluir o périplo? Ou um sinal alarmante de que a meta se distancia?
O precipício em questão tem algo do mar das sereias de Ulisses. Convém não prestar grande atenção aos ruídos que nos chegam aos ouvidos: podemos perder tempo e perder o norte. Quanto às “sereias” que nos rodeiam, são de várias espécies. Atrás dos seus cantares esconde-se o derrotismo suave que parece tingir tanto do nosso país, os conselhos incompreensíveis do governo, a falta crónica de fundos de que quase todos sofremos, uma crise que alegadamente tem os dias contados mas que serve de motivo para vermos cada vez mais o fundo às algibeiras, o facto de termos trabalhos absorventes, exigentes e sem horários nem fins-de-semanas, as “caras metades” idealizadas que teimam em não aparecer (ou, quando aparecem, em não se comportarem conforme o desejado), o laxismo de muitos, a indiferença hostil de outros. E – tão ou mais grave do que as “sereias” – há os companheiros de jornada que vão cedendo à tentação e se vão deixando ficar pelo caminho. Muitas vezes são aqueles de quem nunca esperaríamos uma desistência. Vão-se conformando – e isso causa estranheza e algum temor (“Se ele não aguentou, conseguirei eu chegar ao fim?”).
Eu – e creio bem que a minha amiga também – julgo contudo que Ítaca é que é o destino. É difícil lá chegar? Paciência! Têm de se atravessar desertos com oásis fugazes e miragens falaciosas? Toca a apressar o passo para os deixarmos quanto antes! Há mares coalhados de sereias tentadoras e perigosas? Olhos no alvo, cera nos ouvidos (bem aconselhou Circe) e conservemo-nos solidamente amarrados aos mastros (cada um tem os seus)! Não desistir, não desesperar (por muito que apeteça), não resignar.
E estar atento aos sinais de aproximação da terra. Talvez os sonhos catarse sejam um deles!
Tudo isto sem esquecer (roubo a frase ao conhecido poema de Constantine Cavafy):
“Have Ithaka always in your mind.

Your arrival there is what you are destined for”.