Monday, May 20, 2013

Novas (?) formas de pobreza


Há um par de dias, em pleno almoço, enquanto nos achávamos a medir meças com as pernas de um pato mutante (segundo a Teresa, que invocava o tamanho do bicho como justificação da suposta, se bem que inexistente, dureza do mesmo), o meu Pai contou uma historieta interessante. No hotel onde costuma ir de vez em quando ter dois dedos de conversa com as pessoas da sua geração que lá se encontram para colocarem as novidades em dia, são presença regular duas senhoras (que o meu progenitor praticamente desconhece). Ora, essas manas (são irmãs, as tais frequentadoras costumeiras do espaço) vivem ambas num apartamento da zona central da cidade onde residem os meus Pais (cujo nome começa em “Sol”… e acaba em “m”), que passa por ser um dos bairros mais tradicionalmente pretendidos da urbe, numa casa que não tem água nem luz (!!). Isto é, habitam num dos epicentros das vaidades mondeguinas, num prédio pelo qual muitos pagariam generosamente para ter um apartamento, ao lado de gente que (presumivelmente, e apesar de tudo) passa confortavelmente, em condições que temos sequer dificuldade em imaginar. Mais ainda: deslocam-se diariamente ao referido hotel – que também não prima por ser dos mais chãos da cidade – onde tomam o seu chá, carregam os telemóveis (convém que o façam , uma vez que em casa tal hipótese está-lhes obviamente vedada) e, ocasionalmente, encomendam uma refeição ligeira. Bem postas e convenientemente arranjadas, passam desapercebidas naquele espaço e no bairro onde moram. Nada seria, na verdade, mais normal do que duas senhoras, já de alguma idade, fazerem esta rotina casa-hotel, hotel-casa… desde que (pequeno pormenor que nada tem de insignificante) dispusessem dos confortos mínimos na sua habitação.
Quando o meu Pai aludiu a tão insólito episódio, houve um silêncio brevíssimo mas constrangedor à mesa. Afinal, aquela história bizarra passava-se a meia dúzia de portas adiante, na rua perpendicular à nossa. E (para mim, pelo menos) a atmosfera ridente do meu querido bairro pareceu ter escurecido – apenas momentaneamente, é certo – um tudo-nada. A sala confortável, as pilhas de livros por todo o lado, as velhas chávenas encavalitadas, ao monte, nos louceiros, o pato assado pela Teresa, pareceram, num fugaz segundo, menos garantidamente brilhantes. Claro está que, um átomo depois, todos começámos a disparar questões que nos começavam a martelar o cérebro e a avançar com as respostas mais plausíveis (ainda que muitas nos parecessem quase inacreditáveis):
- Como lavarão a roupa?
- Pedirão aos vizinhos?
- Não pode ser! Não o podem fazer constantemente: era indelicado e os vizinhos ou achavam que elas estavam loucas, ou que se queriam aproveitar descaradamente da máquina alheia, ou descobriam a verdade e denunciavam-nas!
- Será que se pode denunciar alguém por não ter água e luz em casa?
- Eu acho que não!
- Eu acho que sim! E, já agora, também acho que o pato está ótimo, Teresa!
- Eu acho que depende…
- Lá está! Nim jurídico, always the same!
- Não, nada disso! Acho que depende de a casa ser ou não arrendada. Se for arrendada, não podem manter a água e luz cortadas…
- Ora, porquê?
- Porque isso danifica os canos e prejudica gravemente o imóvel, claro!
- Hummmmmm….
- E como farão com o condomínio?
- Lá está: se for arrendada, não há esse problema!
- Mas se não for?
- E para tomar banho? Ou mesmo para lavar os dentes?
- Menino, tem de ser com uma chaleira…
- E a água para a chaleira? Não há aqui chafarizes para a irem lá buscar!
- Há as fontes do jardim…
- Mas essa água não é para beber!
- E é da câmara… não é? Era um roubo à câmara!
- Olhe que disparate: os cidadãos não roubam nada à câmara: era um bem que a autarquia lhes proporcionava.
- Ia ser uma coisa linda: dupla maluca vai abastecer-se a fonte pública em plena S­_____!
- No entanto, isso não tem lógica: se não têm dinheiro para pagar a conta da água, andar a comprar sempre garrafões é uma despesa grande!
- Talvez tomem banho no hotel, depois do chá!
- Oh Mãe, a Mãe acha que sim? Seria o cúmulo!
- O que é mais fácil? Viver sem água ou sem luz?
- Água!
- Luz!
- Nada disso! É mesmo água!
- Sem luz não há aquecedores para o inverno!
- Usas cobertores! Mas sem água não os podes sequer lavar, nem os lençóis!
- Blergh! Realmente!
E assim sucessivamente…
No entanto, e para além desta abordagem ligeira do acontecimento, que até serviu para animar o almoço e não caiu mal com o pato, outra, mais lúgubre, se oculta. Este é, seguramente, mais um dos (decerto muitos) casos de pobreza escondida que, cada vez mais, proliferam no nosso país. Discretamente, onde menos se espera, na porta ao lado da do casal de universitários ou do médico com a sala de jantar locupletada de prataria, alguém agoniza com falta de recursos. E podem tratar-se tanto de situações bastante caricatas, como as que narro (afinal, as senhoras em questão encaram a situação com alguma leveza) como de casos verdadeiramente dramáticos. E – o que é mais dramático ainda – sem que ninguém dê por eles, uma vez que a atmosfera de generalizada abastança que os rodeia, apesar de permitir aos protagonistas uma aura de decência, os encobre fatalmente. São os sinais dos tempos, pode-se argumentar – e é verdade. A vida está difícil para todos, e todos (enfim, quase todos) nos vemos obrigados a contar os tostões. Contudo, é radicalmente diferente saber que o temos de fazer mas que, quando regressarmos a casa, podemos tomar um banho quente e comer pato assado num ambiente confortável, ou, pelo contrário, termos noção que, para lá do cenário enganador do bairro e do prédio, nos espera um apartamento inóspito, escuro e sem água. Estes relatos lembram-me sempre duas velhas histórias que ouvi contar vezes sem conta. Uma delas é a de um velho tabelião aposentado, e remonta à Seia da infância da minha Avó. Família respeitável, não podia dar mostras da extrema penúria a que tinha chegado, a qual se espelhava na miserável dieta que se viam compelidos a seguir. Acordavam todos tarde para não tomar o pequeno-almoço (sempre era uma refeição a menos) e, ao almoço e jantar, muitas vezes comiam couves com batatas – afinal, o que o quintal produzia – cozinhadas por uma velha e fiel criada. Em regra, havia também um par de ovos, que se reservavam para o velho notário. Outra é a de duas primas muito velhotas (e divertidas por serem bastante insólitas) que viviam numa casa antiga sita numa terra nos arredores de Coimbra. Os seus nomes compridos, o facto de uma ser viúva de magistrado (que já tinha morrido há imenso tempo), a sua atitude um bocadinho snob, a biblioteca afamada, as salas e quartos decorados com móveis antigos e bonitos não impediam que lhes chovesse em cima das camas D. Maria. Provindas de uma época em que se gostava e fazia gala em receber, iam convidando os parentes para o jantar. No entanto, fossem apenas elas duas à mesa, ou mais dez pessoas, a quantidade de comida apresentada era sempre a mesma, pois o orçamento não esticava. Já se sabia: antes de sair de casa, cada um jantava previamente ou, pelo menos, comia um par de sandochas. Nada se dizia, mas tudo se subentendia.
Seria desejável que estes casos aviltantes tivessem desaparecido de vez com o progresso que, nas últimas décadas, a europa e o país têm registado. No entanto, basta um par de anos de crise para estes velhos fantasmas regressarem. Não há certezas nem mesmo nos melhores hotéis e bairros, nas casas mais bonitas e mais ricamente decoradas: por detrás dessa aparente fartura, pode grassar a fome e a penúria.

Tuesday, May 07, 2013

Uma nostalgia que teima em não existir


Nesta época de queimas e festejos académicos, inúmeros são os da minha geração que, lembrando-se de anos (há muito) passados, vão remexer nos escaninhos das suas memórias e nos baús onde conservam relíquias de outras épocas e, de sorriso nos lábios e expressão nostálgica e ridente, rememoram os tempos dourados da universidade (e por “universidade” entenda-se, para os que ainda não a deixaram, licenciatura). É invocando esse sentimento – que alastra brutalmente quando maio desponta, qual prenúncio de uma primavera que hesita em instalar-se – que se justificam pecadilhos como alusões a episódios paleolíticos de cuja versão original já ninguém se lembra verdadeiramente, ou a publicação, no fb, de fotos amareladas (e em geral bastante assustadoras) de eras jurássicas, onde vão desmaiando rostos mais ou menos sorridentes, quase inevitavelmente trajados a rigor (isto é, de capa e batina, ou só de batina e já sem capa, ou mesmo já sem nenhuma delas).
Eu – contrito reconheço esta minha estranha deficiência – não consigo partilhar desse sentimento de prazenteiras reminiscências face a tal período da minha vida (o que, aliás, não deixa de ser irónico, uma vez que navego diariamente nas águas da história e tenho o hábito compulsivo de guardar tudo). Vasculhando os vãos do contador – indo-português, naturalmente – das minhas memórias (é óbvio que eu as arrumo num contador mental, não é?), ao percorrer o conteúdo das gavetas relativas aos tempos da licenciatura, não vejo grandes motivos para demorar o olhar. É claro que saltam à vista uma ou duas lembranças felizes ou alegres: os bons amigos que se fizeram, alguns excelentes momentos que então se viveram (fazer o carro foi uma aventura engraçada, tal como eram divertidíssimas as idas aos convívios das cantinas, depois da seca monumental que era a serenata do mesmo nome, com a companhia perfeita e sempre despachada da Joana que desde então ficou “de Nelas” – e logo na noite em que nos conhecemos “atacámos” a primeiro dessas festarolas!), bem como uma mão-cheia de episódios rocambolescos que tiveram a sua graça: “sim, é verdade; chamo-me Luís Maria da Assunção e o meu avô é merceeiro em França”, os sabonetes “roubados” pela MJ numa noite toda ela passada na “margem sul”, as madrugadas gastas no saudoso – disso, tenho saudades, afinal – “Buraco Negro”, com (uma vez mais) a Joana de Nelas (e a AJ a dançar, lunática, a dançar sozinha na pista nas péssimas noites de 4ª, lembras-te, Joana? Ainda hoje, ao recordar isso, sinto vontade de soltar uma gargalhada!), onde o whisky era tão barato, tão barato… que não devia ser whisky (e, mesmo assim, a nossa perene penúria nos levava a aguentar “um copo por noite”), com a Lobélia (era Lobélia, não era?) vigiando pelos cantos… E o chaveiro-em-forma-de-rim-com-recipiente-para-guardar-pó (sic) que nos deram uma vez, a título de sermos frequentadores já conhecidos da gerência. Também gostei verdadeiramente, por outro lado, da efémera passagem pela secção de esgrima (que calor, aqueles fatos!), pela secção de ténis e pela “Cabra” – e de mais meia dúzia de coisas. Mas tudo isto são acontecimentos episódicos num longo e árido percurso de cinco anos do qual me recordo, sobretudo, da sensação de permanente insatisfação (como é angustiante começarmos uma nova etapa dando um trambolhão sério nas classificações a que estávamos acostumados, e como é irritante nunca termos as notas desejadas, apesar de nos aplicarmos para isso), de constante inadaptação e de algum enfartamento. Os alunos da faculdade – e, note-se, eu friso, os alunos, uma vez que estou convencido de que o problema residia em boa medida neles – entretinham-se em assustar os mais novos, em perpetuar rituais palermas todos assentes em jogos de silêncios e medos tontos, tentando, quiçá, assim afastar os seus próprios fantasmas (é bem sabido que uma das formas mais cobardes de enfrentarmos os nossos medos é procurar que os mesmos se espalhem entre os que nos rodeiam). Havia, naquela chusma de discentes, muita gente (em demasia) e, desculpem-se a franqueza, boa parte dela era intelectualmente muito fraquinha, muito parola e muito mazinha enquanto seres humanos (por isso o 5º ano, quando nos sentimos livres de muitos desses anticorpos, que vão ficando pelo caminho, parece celestial). Prezava-se sobretudo a destruição do amor-próprio (dos outros, bem entendido!), e vários foram os que, menos resistentes, não conseguiram enfrentar este dragão que, afinal, tinha mais de quimera do que aparentava. O saldo foi totalmente negativo? De forma alguma: houve, diga-se o que se disser, professores fantásticos, aprendemos bem umas noções importantes de que até agora nos socorremos e, acima de tudo, desenvolvemos um ritmo de trabalho exigente e treinámos a valer as nossas memórias. Mas nada disso – como, aliás, os amigos grandes que se fizeram ao longo desse périplo – ficou cristalizado naqueles anos. Os amigos continuaram connosco, a memória persiste em ser treinada (cada dia um pouco mais), o ritmo de trabalho manteve-se (quando não se intensificou) e os professores deixaram de ser docentes para passarem muitas vezes a conselheiros, a quem se pode recorrer quando necessário e que nos recebem com afabilidade. Ou seja, se os (comparativamente poucos) aspetos positivos se mantiveram para além e independentemente daqueles anos, o que há a chorar, chegada esta época? O que há a lamentar? Carpir as maratonas de estudo a contra-relógio guiando-nos por manuais intragáveis? Prantear pelos suores frios que nos atacavam antes das provas (Deus meu! O clic-clac das portas dos Gerais a serem abertas ainda hoje me causa calafrios, por me lembrar o stress que um ruído semelhante me provocava, antes de saber qual teria sido a nota da oral em que, apesar de ser de melhoria, eu achava invariavelmente que ia chumbar!)? Lamentar a confiança em nós mesmos que se tentou dinamitar (e que saiu um bocado aleijada, e demorou o seu tempo até recuperar a pujança inicial)? Lastimar aquelas dezenas e dezenas de caras anónimas que enxameiam as fotos do curso e que nos fazem pensar Mas quem diabo é ESTE??!!?? Eu não me lembro sequer de jamais o ter visto! (e vimo-nos, durante cinco anos!).
Não.
Meus caros, não tenho, nem jamais terei, prazer nenhum em rememorar tais coisas. Com os meus amigos de faculdade, munidos do que aprendemos na faculdade, vivi momentos muito mais divertidos, muito mais interessantes, muito mais intensos, depois da faculdade.
Compreendo os que têm uma postura radicalmente diferente da minha e choram melancólicos esses anos. Porventura, foram mais venturosos do que eu, que os não soube (ou não consegui) aproveitar. E, assim sendo, percebo que, nesta época, apreciem sacudir as velhas fitas já um bocadinho bafientas e tirar o bolor dos vetustos álbuns de memórias.
As minhas fitas e os meus álbuns permanecerão no contador (indo-português) da minha memória (não conto deitá-las fora!), numa gaveta das mais rentes ao chão. Têm o seu lugar, mas muito se passou depois delas.
Não voltaria um dia atrás – e, certamente, jamais o faria para tornar aos tempos daquelas fotos amareladas, no meio de uma multidão de caras de que já não faço a mais pequena ideia a quem pertençam (e nem me interessa muito saber, na verdade) e, apesar do semblante sorridente que eventualmente possa ostentar, stressadíssimo com a bodega da matéria que tinha de estudar para a frequência que aí viria.