Monday, June 01, 2015

Dia da Criança

Nunca liguei particularmente ao Dia da Criança, apesar de, sendo o mais velho dos muitos primos de uma família numerosa, ter vivido sempre rodeado por elas. Acho até um bocadinho tonto o folclore que se faz a propósito da data: de certa maneira, lembra-me aquelas empresas em que se opta por organizar uma grande festa anual para os trabalhadores em vez de melhorar as suas condições de trabalho quotidiano.
No entanto, é inegável que as crianças jogam um papel extraordinário na nossa existência. Hoje, quando vinha do ténis, e depois de ter discutido um pouco a utilidade efetiva da efeméride, pus-me a pensar na criança com quem atualmente mantenho um contacto mais próximo. Isto é, a minha sobrinha Zabi, E a verdade é que a Zabi desempenha uma função muito importante na vida do seu Tio por várias razões. Quais?
Para que desenrolemos à desgarrada contos longos e incoerentes:
- Começo eu. Era uma vez uma menina…
- Chamada Chiara
- Chiara Renata Ambrósia Sofia Ludmila Camila Teodora Adelaide Cipriana da Paixão Martins.
- Não Tio! Ninguém se chama assim!
- Ora, ninguém se chama Chiara.
- Chama sim. Ela é Chiara Rita Joana Mariana. Só!
- da Paixão Martins. E vivia na Ilha de Chorão, em Goa.
- Onde era pescadora.
- Nas margens do Mandovi.
- E tocava viola, e sabia todas as músicas da Violetta.
- E bebia chá todas as manhãs.
- Misturado com Chocapic. E Estrelitas! E M&Ms!
- E tinha um espelho.
- Que estava partido porque um dia um monstro entrou em casa dela e partiu-o.
- E a Chiara ficou muito zangada com o monstro, pois o espelho era bem antigo, do século XVIII e de Veneza.
- E quis matar o monstro.
- Mas o monstro afinal era simpático e apenas se assustou quando se viu refletido no espelho. Ele não sabia que era assim tão feio. E na verdade vinha somente desafiar a Chiara para jogar ténis com ele… desde que ela tivesse feito os trabalhos de casa antes, é claro.
- Mas a Chiara queria ir ver o Frozen.
- Ver o Frozen em vez de ir jogar ténis? Que parvoíce! Que falta de gosto! O monstro nem queria acreditar!
Etc, etc, etc…(e o facto de ambos gostarmos de desenhar ajuda a “dar corpo” aos personagens que vão aparecendo).
Para que o móvel faqueiro se transforme e deixe de servir apenas para arrumar coisas – função pouco interessante à qual se prestam todos os seus congéneres. E que um dos dragões “Henrique II” que ornam as suas portas se transmute em dragão da Zabi, que protege a porta da Zabi, a qual só pode ser aberta com a mão ou graças à palavra-chave da Zabi e onde se guardam alguns pertences da Zabi.
Para que as escadas até ao sótão sejam os cerros de Pondá, e a todo o momento – em cada patamar, atrás de uma qualquer porta, dissimulado por certa planta – esteja a ameaça do marata que ataca ou dos ranes que até nem são más pessoas.
Para que porta de ferro que protege o corredor do sótão se transforme numa penitenciária, a Zabi em terrível guarda prisional e eu em pobre preso choroso que volta à sua cela, sempre a tentar fugir da vigilante. Ou que o longo corredor se converta em pista de corridas, de forma a acirrar a competitividade de ambos. Ou que, munidos de uma lanterna, nos atrevamos a ir até aos confins do mesmo – lá ao fundo, onde está escuro: o escuro que já não tememos, pois a luz que a Zabi transporta transforma todos os monstros e receios em pó.
Para que um simples chocolate esquecido no louceiro desde o Natal se transforme no infeliz Pai Natal cativo de um chinês de teca e barriga protuberante que o mantém debaixo de olho. Mas o Santa nada tem a temer: os soldados e cavaleiros de um pote Satsuma seu vizinho depressa saltarão da porcelana para o vir resgatar.
Para que uma banal bandeja antiga e brilhante de latão da China se transmute num espelho através do qual conseguimos falar com Macau. Ou a afegã de um quadro pintado pela Avó da Zabi nos traga notícias frescas da Arábia e até dê umas achegas sobre a vida do Menino Jesus (um tema que interessa sempre à Zabi).
Para que as amêndoas da Páscoa se transformem em remédios. Mas cuidado com a escolha: não se podem tomar demasiados, nem fazer misturas estranhas. A Drª Zabi é quem prescreve.
Para que a garagem fria se converta num cenário do Frozen e a Zabi na Elsa e na Anna (alternando constantemente entre as duas) e eu – que nunca vi nenhum episódio daquilo – tenha de fingir que sou o Olaf (que penso ser um boneco de neve).
Para que os terraços sobre a garagem dos vizinhos se tornem numa casa e os Tios se transformem nos filhos desordeiros da “mãe” Zabi – uma mãe severa, que quer que a prole ande sempre em linha e não faça fita quando tem de ir visitar os primos que moram no terraço – ups, casa! – seguinte.
Para que a mesa de jantar se metamorfoseie na sala da Zabi no João de Deus, e por artes mágicas apareçam os colegas da Zabi e esta se transmute ora na sua professora, ora na funcionária da cantina, ora na porteira, ora em quem bem lhe apetecer.
Para que o canto ao lado da grande cómoda da entrada, onde a Zabi se gosta de esconder, se transforme numa gruta escura e comprida, onde o som se ouve ao loooooooonge e faz eco.
Para que o velho baú da entrada se converta numa velha arca do tesouro que veio de Seia. O problema é que nunca conseguimos descobrir a combinação encantada para a abrir.
Para que o chorão do jardim – que é a árvore preferida da Zabi – chore porque não gosta nada que lhe cortem o cabelo, apesar de sempre que o fazem ele voltar a crescer ainda mais bonito do que antes.
Para que a Zabi, quando está zangada, não afete um ar de pouco amigos mas sim faça “cara de Manuel Eduardo”. E tenho a certeza de que aquele velho Motta-Veiga, do alto da sua moldura, exibindo a borla de lente de Teologia e as rendas de cónego da Sé, sorri sempre que ela o faz. Tal como o Tio da Zabi, feliz pela sobrinha em que também fervilha uma imaginação transbordante, que a partir do quotidiano ordinário cria cenários extraordinários e que não parece ter vontade nenhuma em ceder ao cinzentismo redutor e uniformizador que tanta gente anda por aí a pregar como sendo fonte de excelsas virtudes.

Que queira sempre dar o seu melhor, sempre inteira, sempre competitiva, sempre fiel a si mesma, nunca reduzindo as coisas e as pessoas a uma vulgaridade chata e monótona. Seja agora em criança seja quando for uma mulher adulta, feliz e despachada. E que jamais menospreze a criatividade e o poder revigorante da imaginação – fundamental tanto para as crianças como para os adultos … apesar de estes tantas vezes terem vergonha em o admitir.