Wednesday, December 04, 2013

ROTINAS

Sou um absoluto fã de rotinas e delas depende – diga-se, em abono da verdade – em boa medida a minha sanidade mental quotidiana. É graças à minha devoção pelas rotinas que raramente sinto a estranha sensação de que muitos dos que me rodeiam se queixam quando afirmam estar a ser assoberbados pela realidade, sugados pelo dia a dia e constatam ao final da noite que pouco ou nada fizeram do que tinham planeado à mesa do pequeno-almoço.
 Não sei a razão desta propensão para a rotinização da minha vida, mas tenho algumas desconfianças. Por um lado, sou um tipo que não lida bem com pressões de última hora. Sabem o nervoso miudinho e o stress equivalente a mil pontadas de alfinetes que alguns asseveram ser indispensável para os levar a lançar mãos ou a terminar uma dada tarefa? O fator pressão-pois-o-tempo-está-a-chegar-ao-fim? Bom, eu não me integro de modo algum nessa tribo. Se me alertarem “tens meia hora para despachar isso, por isso toca a apressar”, é certo e sabido que – apesar de naturalmente dar o meu melhor para me desincumbir da obrigação (e de eventualmente até o fazer com sucesso) – não reagirei com alegria a esse “estímulo”. Sim, eu sei... seria um fiasco em qualquer programa do género do masterchef! Ora, a rotina, a ideia do trabalho que se faz por etapas, é de alguma maneira uma alternativa a tal modo de agir. Por outro lado, sou alguém que detesta (i) movimentos de pára-arranca e (ii) terminar uma coisa e não começar imediatamente a fazer outra. Note-se que esta faceta não se relaciona apenas com o trabalho (embora se reflita naturalmente também nessa parte da minha vida). Na verdade, repercute-se em muitos outros aspetos do meu quotidiano. Por exemplo, quando acabo de ler um livro começo imediatamente a degustar o seguinte. Posso ler apenas as primeiras três páginas, ou mesmo o primeiro parágrafo, do novo livro, mas sinto-me “desconfortável” se não o fizer. Ou quando acabo um determinado desenho, principio ato imediato a idealizar o próximo. O esquema é semelhante: muitas vezes não se trata de mais do que dois rabiscos ou de um esboço rápido. Mas é o começo de algo novo. Trata-se de certa maneira de uma aplicação ao quotidiano do velho adágio rei morto, rei posto. Finalmente, suspeito que esta minha “mania” se prende também com um misto educação/propensão natural. A minha progenitora (que creio ser do mesmo modelo) sempre me ensinou a não perder tempo, o que se traduz forçosamente em estar sempre a fazer alguma coisa. Isto é, em estar permanentemente a construir algo. Note-se que esta filosofia não se aplica somente à esfera laboral. Na verdade, transcende-a muitíssimo. O próprio ócio é suscetível de ser produtivo. À sombra do velho lema da Trisavó Joaninha (só se aborrece quem é estúpido), o qual creio ter sido temperado com os genes terrivelmente empreendedores dos manos Freire da Cruz e de Mathias bem como com uma exegese profunda da parábola dos talentos, tudo é encarado como obra em construção. Um perene edificar que é muito gratificante e envolvente – e por vezes bastante recompensador. Queres algo que não tens? Não chores nem te lamentes. Lança as mãos e trata de o conseguir. Falhaste à primeira? Toca a voltar a tentar! Não sejas uma formiga! Reage, força, e vai em frente! Assim, para se viver intensamente nesta filosofia – que é a minha por educação e por opção – criar e manter rotinas são opções sensatas. Já me disseram que esta minha faceta tem algo de tenebroso. “Não vês que essa necessidade de estar sempre a fazer algo, a construir algo – nem que seja mais um desenho, ou plantar mais um pinheiro, ou conseguir ganhar mais pontos no ténis, ou encontrar mais um argumento – é perigosamente capitalista?” – perguntaram-me certa vez. “Mais, que é a verdadeira essência do capitalismo?”. Enfim, não sei verdadeiramente o que responder. Mas se assim for, não há maneira de lhe fugir. Entre ser o Luís e ser alguém-que-se-recusa-a-ser-o-que-é-por-medo-de-ser-rotulado não há indecisões de escolha, certo?
As rotinas são consequentemente uma potencial prisão ou uma porta para a autonomia. Podem ser nocivas caso as “percamos” e não as consigamos retomar. Ou quando nos aferramos a rotinas sem sentido e que nos são danosas. Tal é suscetível de nos fazer sentir semi-errantes e implicar mau-humor, alguma instabilidade e resultados menos risonhos do que se esperaria. O antídoto para o combate deste “perigo” é simples: ir adaptando as rotinas (só um verdadeiro novato na matéria é que julga que um ser verdadeiramente rotineiro não cria novas soluções para cada situação e não as vai moldando e aperfeiçoando) e ter na algibeira meia dúzia de alternativas às quais se possa lançar mão nas alturas em que as rotinas falham.
Podem por outro lado ser inestimáveis por nos permitirem viver em praticamente todo o lado sem que nos sintamos mal com a vida ou deslocados. O segredo é em cada nova situação/contexto forjar uma nova rotina. Garanto-vos, por experiência pessoal, que resulta. Há no entanto que ter força de vontade e contar com um ego forte. Alguém rotineiro faz as suas rotinas, ainda que (é claro) as adapte à  vida que deseja. Um tontinho sem amor-próprio nem objetivos não o consegue fazer: tem sempre de ir atrás dos demais, perdendo-se entre as rotinas diferentes que aqueles seguem.
Pois bem, hoje depois do almoço senti-me por breves momentos um bocado “perdido” por me ter afastado das minhas rotinas leirienses habituais. Vários fatores concorreram para este estado estranho. Antes de mais, por estar a decorrer o II ciclo de aulas abertas resultantes de uma parceria do curso de AP com a câmara municipal de Leiria (que voltei a organizar este ano, e que estão a correr super bem!), demorarei um dia mais na cidade. Em regra, abandono as margens do Lis às 4ªs. Por isso, na minha cabeça às 15 horas devia estar a sair da cidade. O que não aconteceu. Por outro lado, hoje – ao contrário do que sucede todas as 4ªs feiras bem cedo – não tive treino de ténis. O treinador está com gripe e naturalmente não pôde aparecer. E eu passei parte da manhã a pensar que me tinha esquecido de trazer a raquete ou que a tinha deixado em algum lugar pelo caminho! Paralelamente, a aula aberta de hoje foi verdadeiramente bem-sucedida pelo que se arrastou muito mais do que previsto. Resultado: cheguei a casa francamente depois do que era normal (e a tentar combater a ideia recorrente de que já estava atrasado para arrumar a mala e ir embora!) e acabei por não conseguir dormir a minha meia-hora regimentar de sesta. À semelhança do meu caro amigo ZMN, sou um defensor convicto das virtudes da sesta. No meu caso, meia hora de repouso faz milagres pois quando acordo sinto-me quase tão fresco e pronto a voltar a lançar-me ao trabalho como de manhã. Por fim, também houve uma alteração no regime das sopas. Eu explico. Todos os dias a dupla de irmãs que explora o bar da nossa residência faz sopas variadas para quem as quiser comprar. Eu sou um cliente fiel desde o primeiro dia e em regra compro sempre uma dose para cada refeição. As ditas manas – que provavelmente também gostam de rotinas – usualmente fazem os mesmos tipos de sopa (será que se pode dizer tipos de sopa??) todas as 2ªs, 3ªs e por aí em diante. Assim, eu sei que às 2ªs é caldo verde, às 3ªs sopa de peixe e às 4ªs sopa de legumes. Acresce que as manas quando em regra se encomendam duas doses de sopa para um mesmo dia não as entregam em dois recipientes individuais mas num maior. Até aqui tudo ok. Ora, hoje não só a sopa não era habitual como era canja! Blergh! Todos os que me conhecem sabem que não sou propriamente um apreciador de canja. Mais: as manas, sempre inexcedíveis, procuraram que a minha canja tivesse alguns extras de que os apreciadores da dita gostam mas eu detesto. Assim, continha pedaços enormíssimos de cebola (bleeeeeeeergh!) e… duas patas de galinha (bleeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeergh!)! Quando extraí tais coisas da caixa da sopa (lamento, mas não comi nenhum destes complementos), a bancada da cozinha parecia a mesa de trabalho de um aprendiz de macumba. Ainda tive vontade de dizer “Enganaram-se no Cabral: o meu Pai é que gosta de canja”, mas isso não me ia valer de nada pois duvido muitíssimo que o meu progenitor viesse a Leiria apenas para degustar patas de galinha e nacos de cebola em canja.  
Tudo isto me desconcertou um bocado. Estava em Leiria quando não devia, não tinha dormido a sesta, a raquete não estava às costas (como era suposto) e o almoço constara de canja-macumba! Tentei rabiscar um pouco mas, ao contrário do que é habitual, os resultados não foram 100% eficazes. Urgia assim tentar outra via. E, como bom amante de rotinas, recorri a uma das minhas soluções de recurso.
Quando a nossa rotina é alterada, nada melhor do que uma injeção forte de algo que gostemos muito, estejamos habituados a fazer e nos concentre por completo! Um par de horas depois, saímos com a sensação de que avançámos no trabalho e de que as coisas voltaram ao normal! No meu caso, e em Leiria, a nova “sala” da biblioteca municipal é um remédio eficaz!
Há um par de anos, uma professora lisboeta doou ao município não só a sua rica biblioteca “ultramarina”, muitíssimo bem fornecida de obras relativas à Índia, Moçambique e Macau, mas também as mobílias e outras peças chinesas que trouxe da sua passagem pela Cidade do Santo Nome de Deus. O município teve a feliz ideia de aceitar o espólio e a sorte de contar com a dedicação de um técnico que desde então se devota a pôr em ordem o grande mas confuso legado. Imaginem a chegada ininterrupta de caixotes e caixotes de livros e documentos sem ordem alguma: um desafio fascinante mas exigente, certo? Praticamente desde o primeiro momento que recorro a esse magnífico e improvável “filão oriental” nascido num local tão inesperado e sirvo um pouco de “consultor” dos arquivistas e bibliotecários encarregados desta empreitada.
Recentemente abriu-se uma sala exclusivamente dedicada ao fundo – e, para mim, é uma maravilha lá trabalhar. Desde logo, tem imensos livros que uso nas minhas pesquisas, parte deles muito difícil de encontrar em Portugal. Por outro lado, dispõe de um grupo de técnicos impecáveis, com quem me dou bastante bem. Por fim, está disposta de uma maneira perfeita para aí desenvolver a minha investigação. Isto porque não só dispõe de mesas modernas e confortáveis para trabalharmos como também conta com uma parte decorada com os móveis de tamarindo enegrecido e madrepérola macaístas dos quais tanto gosto e que me fazem sempre sentir em casa. Ninguém os usa, mas estão lá e de lá não saem. Exatamente como me é confortável.
Por isso, hoje, esse foi o meu antídoto: enfrentar a descoordenação resultante de uma quebra de rotina com uma dose forte de algo que rotineiramente faço com todo o prazer. Fui até à biblioteca, troquei meia dúzia de palavras com o Miguel, sentei-me na secretária simples mas funcional e trabalhei afincadamente em torno do padre Salvador Baptista Canã – um dos meus deputados BCs oitocentistas que tão bem se sentia no Chiado como na Praça das Sete Janelas de Pangim. Atrás de mim (eu sabia, não precisava de confirmar) estava o conforto das estantes atulhadas de velhos cartapácios “goeses” e os floreados móveis de uma Macau de outros tempos. Ao lado da minha mesa de linhas retas havia apenas um rolo chinês parecido com os do Lótus Azul e com os do apartamento do Tintim em Bruxelas (na Rua do Lavrador, 26, já se sabe).
Nada podia ser mais familiar, reconfortante, produtivo… e rotineiro!
Às seis saí da biblioteca curado! Um café no Vasco das Raivas (outra rotina), um cartucho de castanhas a cheirar a outono (outra!) e um giro rápido pelas livrarias e o Eddie Vedder no mp3 (mais duas rotinas!) foram o complemento posterior perfeito!

Afinal tudo continua a funcionar na perfeição! ;)