Saturday, July 28, 2012

ADEUS 405!


É hoje que – terminada a temporada de exames, com as clássicas pressões das provas para corrigir e notas para lançar (embora haja sempre lugar a descobertas apesar de tudo interessantes, designadamente quando o prof. tem de se armar em Champpolion e procurar, quantas vezes em vão, um sentido em pérolas literárias do absurdo como “verdade empírica que segue apenas diretrizes jurídicas, pelo que dogma (verdade)”!!!), tudo entremeado com dúvidas (há que admitir, por vezes bastante tontas ou, mesmo, incompreensíveis) dos alunos que, a meia dúzia de dias do final do ano, descobem que ainda tinham metade das ucs para fazer, e com direito à enxaqueca da praxe (parece que já passou! Uf!) – abandono o nº 405 da residência de Leiria, ou seja, aquilo a que eu chamo, atendendo à exiguidade do espaço (diretamente proporcional ao conforto, todavia), a minha “casinha” entre-Liz-e-Lena.
Já habitava entre estas quatro paredes – onde se acha uma pequena cozinha, um “open space”, um (micro, micro, micro) “walking closet” (como alguém lhe chamou, quando me mudei) e um wc – há três anos, e muitas foram os dias e as noites que aqui passei. Costumo dizer, convictamente, que, se não fosse este refúgio leiriense, a minha adaptação à cidade, onde já conheço uma boa meia dúzia de espaços e gentes, teria sido muito mais difícil e espinhosa! A genial ideia de, numa residência virada sobretudo para albergar alunos, criar uma ala votada para acomodação de professores locais (no sentido de portugueses) e/ou visitantes, partiu do IPL, para o que aproveitou confortabilíssimas instalações existentes no centro da cidade, a dois passos da Marquês de Pombal. Criava-se, assim, uma alternativa a outra bela ideia do Politécnico, esta direcionada para estadias mais breves e pontuais: a Pousadinha. No entanto (e talvez por as minhas temporadas em Leira não serem, em regra, breves nem pontuais), nunca me consegui adaptar tão bem à Pousadinha (que conheci primeiro) quanto à residência da Marquês. Muito menos central, a meu ver menos confortável, nomeadamente por ser tão impessoal, com funcionários menos dedicados, e um funcionamento que, por vezes, não era excelente (lembro-me bem do ridículo que era chegar mais tarde e ter de ir pedir a chave, não havendo ninguém para no-la entregar). Não, a Pousadinha não era do meu agrado… Já esta residência bem localizada e (dentro das contingências locais) mais urbana, a dois passos de tudo e servida por funcionários gentis, me cativou desde o início, e em qualquer uma das suas versões. Digo isto porque, no decorrer do, apesar de tudo curto, período em que cá passo parte da semana (ou seja, destes três anos), já conheci duas gerências: há um ano, o IPL optou por passar a gestão do empreendimento – que, com a nova administração, ganhou novo nome e novos funcionários (que em nada desmerecem os anteriores, os quais já tinham alcançado uma pontuação elevada com base nos meus critérios muito exigentes e apertados). Agora, a gestão cabe ao Eric & C.a, sendo que não deixou, também, de ser interessante acompanhar o primeiro ano desta novel pequena empresa.
Ao longo destes três anos, vivi bastante no 405: corrigi centenas e centenas de frequências na secretária em que escrevo este post (de direito da família, introdução ao direito, direito do urbanismo, introdução à administração pública, direitos reais, sociologia jurídica…), e outras tantas de relatórios. Aqui queimei pestanas e ganhei cabelos brancos a “marrar”, semana após semana, com todo o afinco possível, direito europeu. Aqui desenhei um pouco; aqui pensei e escrevi muito e muito sobre Goa, o seu direito e as suas elites; aqui compus meia dúzia de posts para este blogue e desesperei com o mau sinal da net. Houve momentos de angústia (não só devido ao direito europeu!), desde logo potenciados pela minha clássica propensão para a hipocondria (ao longo destes três anos, devo ter pensado um par de vezes que me finaria entre as “minhas” paredes da av. Humberto Delgado), mas muitos mais de satisfação. Por um lado, comecei a conhecer melhor, primeiro, a residência, depois, a rua, depois a avenida, depois a cidade, e estabeleci excelentes relações de vizinhança por todas estas paragens (desde o balcão onde entrego e recebo as chaves, ao café/padaria com os seus excelentes pães chamados “brasileiros” e ótimas sopas diárias, à frutaria da Gina, à farmácia Sanches, às livrarias e papelarias locais, à biblioteca Afonso Lopes Vieira, ao Clube de Ténis, onde tanto gosto de ir treinar duas vezes por semana, à câmara, à Lusiclara, onde, por indicação de “gente municipal”, comecei a comprar aquelas que são, efetivamente, as melhores brisas desta terra, e excelentes bolos secos, sendo atendido por uma família amabilíssima, ao sapateiro que me remenda, de forma milagrosa, “rombos” impossíveis nas sapatilhas, etc etc). Por outro, houve momentos marcantes, aqui passados: algumas boas notas obtidas, alguns momentos épicos na edição das “Famílias de Seia” (foi na “casinha” que passei a limpo as dedicatórias, e daqui eu e a Alex expedimos quilos e quilos de exemplares do livro, trazidos às pazadas para o meu quarto graças a um carrinho de mãos emprestado pelo Eric), meia dúzia de aventuras culinárias (como o “rebentamento no micro-ondas”, ou o “milagre do puré instantâneo não demasiado liquefeito”, uma proeza conseguida a meias com a Marta João, ainda que a muitos quilómetros de distância), alguns sustos (como quando acordei, a meio da noite, a sonhar que estava junto de um incêndio e, realmente, começou a cheirar imenso a queimado, soou o alarme e a doida da espanhola bêbada do andar de baixo, que tinha deixado queimar leite, começou aos gritos “fuego, fuego!”) e outros tantos momentos de boa-disposição. Aqui conheci professores e estudantes brasileiros e chineses. Entre os primeiros, havia um que (pasme-se!) dominava muito bem a história da vida de um velho tio botânico que, em tempos da corte no Brasil, ficou célebre por ter descoberto a “quina brasiliense” (genes herdados pela minha Mana bióloga, certamente!); entre os segundos, é impossível não me lembrar da chinesa que eu achava que passava os dias a trabalhar, até dando conta disso ao meu Pai, numa das vezes que ele por cá passou (“O Pai já viu o que ela estuda? É uma coisa brutal, sempre à secretária!”). O meu progenitor desconfiou de tanta dedicação, e da pose um tanto hirta à secretária, olhou-a de outro ângulo, e descobriu que, afinal… o que ela fazia era ver filmes atrás de filmes! Aqui tive, durante a primeira fase de gerência, de ralhar com alguns alunos mais indisciplinados, graças à minha voz grossa e ao facto de não ser anão (“Vocês portam-se mal, e nós chamamos o prof!” parecia, segundo mais tarde me disseram, ser uma ameaça de vez em quando esgrimida face a um aluno mais embirrento). E por aqui passaram vários livros que li, agora acomodados em Coimbra, sendo que nos recantos do 405 repousaram igualmente, ao longo deste período, resguardadas e bem arrumadas, meia dúzia de peças curiosas e antigas, no seu trânsito até ao rumo final: a casa PLCO.
Ao longo destes três anos, o 405 foi ganhando alguma alma e personalidade: coisas como a minha manta aos quadrados a servir de colcha, livros e jornais um pouco por todo o lado (mas tudo relativamente arrumado, ok?), uma “baixela” própria em tons de verde alface (desde pratos e talheres a tachos), meia dúzia de rabiscos a “demonstrar” que o espaço é de LCO, potes com lápis Giotto, uma faca de manteiga de Poiares, uma foto do mais recente encontro PL na Foz do Arelho ajudam a caracterizar o espaço. Coisas – todas elas – que, na verdade, facilmente se movem, prontas a encher outro espaço leiriense.
É hoje que volto costas ao 405. A política da residência, para o ano que vem (sim, para mim, os anos começam, efetivamente, em Setembro) é o abandono progressivo desta ala, em abono da que lhe é fronteira. Por isso, devo manter-me no mesmo piso, mas mudo-me para o 407. É um espaço em tudo semelhante ao que agora abandono, só que ao contrário. Ou seja, sentir-me-ei, no máximo, um pouco como a Alice, isto é, “do outro lado do espelho”.

Há um par de dias perguntavam-me: “Achas que vais ter pena de deixar o 405?”. A réplica veio pronta (creio que para alguma surpresa do interlocutor): “Na verdade, nenhuma. Novas etapas exigem novos espaços”. E há que ter sempre presente aquela máxima tão verdadeira: Se fizeres o que sempre fizeste, terás o que sempre tiveste. Isso chega-te? Bom, para mim, alma burguezona que se compraz sobretudo com o “ir mais além”, não me chega, definitivamente.
Por isso, adeus 405! Foi um prazer conhecer-te! De ti levarei excelentes recordações e a memória – afinal, há UMA coisa de que irei ter saudades – da vista fantástica para a ermida da Srª da Encarnação, que me acompanhou de perto ao longo destes anos TÃO cheios!

Sunday, July 22, 2012

"SPRINT" DOMINICAL FORÇADO EM LEIRIA


Quase que me sinto forçado a começar este post com um institucional “os factos aqui relatados correspondem à verdade, não tendo, de forma alguma, resultado da mente do autor”. Bom, ficam desde já advertidos: o que eu descrevo como tendo visto, foi efetivamente visto!
Todos os que, por vezes, têm de passar o fim-de-semana (e falo de fins-de-semana normais, ou seja, sem programa com amigos ou idas à praia planificadas de antemão, ou, mesmo, sem um qualquer almoço ou jantar familiar) longe de casa – e mesmo que estejam numa terra que já lhes diga alguma coisa (eu, por exemplo, tive uma amiga que, mesmo estando há mais de dez anos em Coimbra, e estremecendo a cidade, onde fizera, entretanto, inúmeros conhecimentos, odiava com todo o coração os fins de tarde e noites do Domingo, mitigando o mal estar que lhe causavam indo, invariavelmente, muitas vezes comigo, cinemar na sessão das 21.30) – sabem que estes são os dias mais longos da semana, no sentido de que são aqueles que demoram mais tempo a passar. Sobretudo os Domingos. Esteja-se numa cidade pequena ou grande (se bem que uma terra de menores dimensões possa ser mais problemática, por estar tendencialmente tudo fechado), tenha-se muito para trabalhar (mas também não se pode passar o Domingo inteiro a estudar, certo?), e mesmo que se combine uma cafézada com amigos, haverá, caso estejamos desprevenidos, sempre uma meia hora de (digamos assim) “angústia”. Ora, qual a estratégia para afugentar tal espectro? A resposta é óbvia: depende da pessoa! No entanto, aprendi há bastante tempo com a minha Mãe que o segredo-base (e isto funciona para todos, sejam quais forem os nossos gostos) é ter coisas planificadas para fazer. Ou seja, nada de projetar passar o dia a dedicarmo-nos ao ócio: em tais situações, a inevitável angústia fará, mais cedo ou mais tarde, a sua entrada em cena. Subtil a chegar, difícil de partir, como qualquer bom exemplar da sua espécie. Eu tento seguir sempre esse conselho avisado, e, em regra, não me tenho dado mal. Mas adoto para cada cidade/terra onde esteja uma estratégia diferente: a minha rotina (por exemplo, e para dar um certo estilo!) de Domingo não é diferente na “Lisboa do ocidente” e na “Lisboa do oriente”. Tal como não o é – e agora desço a voos mais prosaicos – entre-Lis-e-Lena, terra onde ocasionalmente passo uns Domingos (como foi o caso de hoje) e onde já vou conhecendo meia dúzia de coisas e de pessoas.
Leiria, aos Domingos, esvazia, com exceção das esplanadas da Praça Rodrigues Lobo e do Fórum, junto à ESTG. De resto, a urbe fica votada a meia dúzia de skaters junto à fonte luminosa, a uma mão-cheia de estudantes que tentam (dissimuladamente? ainda não percebi) fumar algo mais do que cigarros nos recessos da rua direita, ao par de bêbados da praxe de toda a cidade portuguesa (ainda agora, na minha volta pós-jantar, acabei de me cruzar com um, indignadíssimo por o Café Colonial estar fechado), aos apreciadores dos bifes da Camões e aos fregueses que entram e saem das igrejas e capelas.
Eu, hoje, estava resolvido a passar mais um Domingo típico de Luís-em-Leiria-cheio-de-coisas-para-estudar, e já tinha tudo programado a régua e esquadro (como tenho a mania de fazer, mesmo sabendo, de antemão, que a maior parte destas minhas planificações nunca se concretiza completamente). Ou seja, pondo em prática o conselho de “Domingo não angustiado é Domingo programado”. E as coisas foram correndo bastante conforme o previsto: acordei cedinho (tinha-me deitado a horas decentes na véspera: tese oblige) e lancei-me ao trabalho. Por volta das 11.15, pus-me a caminho da missa da Sé. Terminada esta, fui rumo ao único quiosque que conheço que está aberto aos Domingos na parte histórica da cidade (se calhar há mais outros 15, mas, enfim, eu só conheço ESTE), sito no (bastante sinistro, e ainda mais sinistro aos Domingos, quando nem a pizzaria nem o café lhe dão alguma animação) D. Dinis e, munido do “Público” (fiquei a saber, entre outras coisas, que a pobre Helena Cidade Moura tinha morrido, que o Santos Neves é descrito, pelo que percebi, como um lunático com laivos de génio mas pouca disciplina mental – ou seja, fujam dele! – e que o Albano Homem de Mello, criador dos excelentíssimos H3, já nem se importa muito com o bárbaro nome com que o batizaram), fui tomar um café ao “Martin & Thomas” (caso não conheçam, aconselho-vos vivamente esta pastelaria leiriense!). Bebido o café e tendo dado uma primeira vista de olhos ao jornal, pus-me, com a barriga já a roncar pelo almoço, a caminho de casa. Os roncos e o apetite crescente que os acompanhavam levaram-me a escolher o caminho mais curto, isto é, cruzar a Praça Goa, Damão e Diu (belo nome!! J), seguir por frente da igreja do Espírito Santo e pela fonte das Carrancas e, depois, cortar à direita, na António Santos Costa. A Santos Costa é uma rua estreita e relativamente íngreme (sobretudo quando venho carregado com livros, altura em que ainda me parece mais escarpada), outrora perfumada por um montão de glicínias que tinham controlado as ruínas de um velho casarão que lá havia. O casarão – ou o pouco que dele sobrava… – foi demolido (para meu pesar, que gosto muito de glicínias, e me deliciava com as baforadas bem-cheirosas que, graças a ela, dominavam a escalada da Santos Costa; mas, certamente, para bem da salubridade pública) e o terreno onde estivera implantado adaptado a parque de estacionamento, e a Santos Costa perdeu bastante do seu interesse. Desemboca esta artéria numa praça (praceta, para ser mais justo) dedicada à Rainha Santa, onde está uma escola primária toda sixties, que hoje tem graça pelo toque vintage que dá à zona. Para além da rua que eu vinha escalando, outras quatro vão ter à praça: João XXI (a mais próxima da escola), Henrique Sommer (artéria burguesa, a condizer com o nome, com antigas vivendas, na sua maioria curiosas e a precisar de restauro), Barreto Perdigão (de nome aristocrático, mas mais viela do que rua, e descendo até ao antigo liceu) e uma outra, da qual não me lembro do nome.
Pois bem, era Domingo, e soavam as 13.15 nos relógios de Leiria, que ecoavam nas ruas vazias e apenas batidas pelo sol. Não contando com um gato, não havia vivalma nas redondezas (ou seja, nem nas 5 ruas, até onde a minha vista alcançava, nem na praça) para além de mim. E eis que, ao chegar ao término da Santos Costa, vejo um rapaz, de barba, vestindo apenas as calças, com a camisa e a t-shirt debaixo do braço, as sapatilhas nos pés calçadas à pressa (com os atacadores por apertar volteando), a correr desalmadamente João XXI abaixo, atravessando num ápice a Praça Rainha Santa, e sempre olhando para trás, como se estivesse CHEIO de medo de estar a ser seguido. Sempre correndo, o mais que podia, corta para a Henrique Sommer, onde entra, a toda a brida, num prédio (eu sei qual foi o prédio, mas a solidariedade e a educação impedem-me de denunciar alguém cuja culpa não foi provada), cuja porta de entrada fecha com estrondo.
Foi, caros leitores, um momento… extraordinário! Inusitado na pacatez planeada do meu Domingo de estudo, inusitado na provinciana Leiria dos fins-de-semanas!
É óbvio que eu estava à espera de ver, segundos depois, o perseguidor no encalço do rapaz em tronco nú, mas… nada!

O que se terá passado? Bom, esta cena de filme talvez tenha uma explicação também de filme: o desalinho em que o rapaz estava, o facto de não ter tido tempo sequer para se vestir (pelo menos conseguiu pegar na camisa e calçar as sapatilhas), o ar apavorado olhando para ver se o seguiam… hummmm, desconfio bem que alguém andara experimentando cama alheia… Mas não sei, não há certezas. E ainda bem que não houve explicações, porque o insólito daquela cena de filme para as massas, mas vivida com um realismo impressionante (naturalmente, pois era real!) obrigou-me a conter uma gargalhada – pelo divertido do acontecimento picaresco, pelo inesperado daquela estranha visão – que, apesar de não estar prevista nos meus cuidadosos planos para o Domingo de hoje, me fez sentir mais vivo e bem disposto, e me deu tema para concluir a jornada deste dia 22 com mais um contributo para estes verdejantes Prazos do Serrazim! J

Saturday, July 21, 2012

Dois anos com... Zabi!



Celebram-se hoje os dois anos do dia em que a nossa Família se viu ampliada com um novo – e muito especial – e elemento: a Zabi! E passa, também, igual tempo em torno da data em que uma das minhas ilusões sobre o funcionamento das maternidades (motivada certamente pelo que os filmes e séries americanas nos induzem… ou por, na verdade, nunca, até então, ter verdadeiramente pensado sobre o assunto) caiu redondamente por terra: não, não se podem ir ver os novos membros da estirpe mal eles nascem (a não ser que se seja o progenitor da criança, naturalmente!). É preciso esperar até à hora de visitas seguinte, como se de uma visita a um qualquer amigo com o pé partido se tratasse! Ora, como a Zabi (já dando mostras de alguma identidade de carácter com a sua madrinha) nasceu a altas horas da noite, ainda tivemos de esperar uma boa temporada antes de lhe irmos dar um primeiro “olá”!
A esse “olá” seguiram-se muitos outros e, cada vez mais, a Zabi foi-se tornando  parte integrante – e importante – das nossas dinâmicas familiares. Refira-se, contudo, que se, por um lado, usufrui das benesses de ainda ser a única representante da nova geração (todos os olhares confluem para S. Ex.a, e todos os “recuerdos” e presentes para criancinhas que a parentela vai encontrando por onde passa são logo alvo da já clássica ponderação “Será que a Zabi ia gostar?”; isto não obstante haver alguma censura “saudável”, como quando me proibiram de comprar um xilofone numa feira semi-étnica realizada em Leiria, invocando a saúde mental dos pais da criança), por outro, a Zabi tem de ir satisfazendo as expectativas de pais, avós, tios, bisavós, primos, etc, etc… e não sei se isso lhe será sempre fácil! A Zabi tem de saber contar, brincar com o ábaco, distinguir taças chinesas de indianas (e já ir conhecendo alguma coisa de antiguidades – diz-se que um tal Tio Luís, que ela tem, jura que a sobrinha já demonstra simpatia por louça mandarim, o que, invoca, só pode ser genético), desenhar razoavelmente e identificar as cores. Tem de ser sociável, mas não ser demasiado show-off, tem de gostar de plantas e de praia, apreciar jornais (que ela aprecia verdadeiramente, sobretudo quando os amachuca!) e, claro, ser uma ávida leitora. Tem de saber jogar ao ringue e nadar, e um dia destes começar a treinar o seu ténis e a andar de bicleta. Tem de saber fundamentos de religião e de ser irrepreensivelmente bem educada, tem de aprender a começar a cozinhar, tem de … uf! tantas coisas as que todos os que a rodeiam anseiam por que ela aprenda!
E, no entanto, apesar de todo este afã, a Zabi constantemente nos surpreende, ao ficar cada vez mais crescida e despachada – mesmo quando se porta mal, e, para aprender a ter juízo, tem direito a um ralhete e a uma palmada (que ela contesta, por vezes, com um “Ai, Tio!” entre o zangado e o choroso).
Na sua qualidade de membro da nova geração, todos se comprazem, em paralelo, a ver como algumas das (boas e más, sejamos sinceros) características da família se vão perpetuando nesta rapariga alta e desempenada, com os seus caracóis escuros e revoltos e sorriso fácil.
Em primeiro lugar, todos sabíamos – mesmo os que talvez não desgostassem de ver nascer um rapaz – que IA SER uma rapariga! Não havia alternativa, não havia hipóteses de contornar o destino e a genética: há oito gerações que a família da Avó materna da Zabi, no seu ramo primogénito, apenas “produz” raparigas. Não ia ser nos nossos dias que se ia quebrar a “regra” de continuar a tradição.
Por outro lado, a Zabi representa (e só senti isso, na verdade, quando ela nasceu) efetivamente uma garantia de que a família se vai renovando (esperemos que só herde os aspetos positivos, e que os demais vão caindo no esquecimento – embora, aos poucos meses de vida, tenhamos logo constatado que, como boa Motta-Veiga, a Zabi transpira abundantemente da cabeça, dando assim continuidade a pesada herança que aflige muitos de nós!). Para orgulho do seu tio genealogista (e uma vez que o nome Isabel Abranches Borges da Gama da Rocha Pinto Leite Guedes Pinto Pereira Coutinho d’Azevedo Faria Ribeiro Pessoa de Aguiar Osório d’Almeida Mello e Senna da Motta-Veiga Cabral Real era, realmente, um bocadinho excessivo), usa, da banda materna, os apelidos Rocha e Cabral (e foi, aliás, na capela da VP, evocando a história várias vezes centenária daquele pequeno templo setecentista, especialmente encomendada, como é tradição, à padroeira da sua família, Nossa Senhora da Conceição da Rocha) que, assim, escapam certamente (mesmo que todos os mais morram num cataclismo, e só sobre a Zabi) à voragem dos anos. Oxalá – aventa o tio genealogista – que ela um dia case com um rapaz simpático, que não se importe muito em ceder um dos lugares dos “seus” apelidos na composição dos dos filhos do casal para também estes (ou, pelo menos, um deles) serem Rocha e Cabral.
Segundo diz certa lenda familiar (eventos importantes dão sempre azo ao surgimento destes ditos mais ou menos mitificados), o pai da criança – alma pacífica e cordata, que casou com uma “generala” e, por acréscimo, se tornou primo de outros dois “generais” – teria, talvez num momento de exasperação em resultado de algum encontro com este estado-maior em que todos adoram opinar e dar ordens, desejado que a futura filha se parecesse fisicamente com a mãe, mas que, no que ao feitio diz respeito, saísse ao progenitor. Doce e cândida ilusão: a Zabi é a cara do seu estremecido pai, mas de feitio tem muito, muito, muito de mini-general. Ou seja, o estado-maior um dia destes passa a contar com quatro elementos.

Outra das caraterísticas em que nos revemos na Zabi é no pantagruélico apetite da nova Cabral! Senhores, é um autêntico poço sem fundo! Mas, na verdade, outra coisa não era possível: a sua 4ª avó gostava tanto de bifes que, pouco antes de chegar aos noventa, e já praticamente sem dentes, ainda os enfrentava sem temor; a sua Avó materna, apesar de ser baixa e magrinha, comia com enorme prazer e abundância. E, do lado Motta-Veiga (sobretudo) e Cabral, lá estão, pelas paredes, esses rotundos avoengos, que testemunham à saciedade a largueza de suas mesas e estômagos. Claro que esta simpatia pelo que é comestível pode ter um lado menos simpático: e a Zabi (vítima, talvez, dos excessos da Mãe e dos Tios, um bocado preocupados com a herança familiar de tendência para facilmente se conseguir peso a mais) já vai sofrendo algumas ligeiras restrições, que ela enfrenta com o seu habitual sorriso, enquanto pede mais uma bolacha maria!
Pois bem, a Zabi celebra hoje dois anos de vida, entre muitos parentes e amigos, na casa dos seus avós paternos, no VS. Especialmente satisfeito por ter tido a ventura de contar com uma sobrinha como ela, o Tio babado só pode desejar – como aprendeu a pedir, muito pequeno, juntamente com a sua irmã, com o pai de ambos, e como até hoje (e se calhar até aos 100 anos!), diariamente rememora – que, tal como “o Luís e a Joana”, ela “cresça grande, linda e feliz”! PARABÉNS ZABI!!! J

Tuesday, July 17, 2012

A PROPÓSITO DA IDADE


O post de hoje prende-se, em boa medida, com a ira que sinto quando constato que alguns “espertalhões” se tentam aproveitar da boa-vontade (eufemismo para, muitas vezes, não recorrermos a expressões mais aviltantes tais como “indícios de senilidade”) de pessoas que ultrapassaram as oito ou nove décadas de vida.
Há uns dias atrás, uma senhora-octogenária-que-me-é-próxima, e à qual eu sirvo, ocasionalmente, de “consultor jurídico”, comunicou-me – através de meias-palavras e entre muitos rodeados – que tinha recebido a visita de um “empregado da PT” (segundo me dizia), o qual tinha sido “insolente”.
- Da PT? – estranhei eu – Mas o que cá veio fazer?
Estava lançada a pedra de toque para me servir mais um pedaço de informação:
- Sim, assim um rapaz novo, do tipo espertalhaço. Muito insolente. Disse-me que vinha antes do almoço, e só chegou depois – explicava a senhora-octogenária-que-me-é-próxima.
- Mas quando é que combinou com ele uma vinda cá a casa? – insistia eu.
A resposta não foi, naturalmente, imediata (nunca é, nem em Portugal, nem em Goa – deve ser por isso que há tanto em comum entre ambos):
- Foi almoçar cozido à portuguesa a Souselas, imagina tu! (para quem não saiba, Souselas é um arrabalde de Coimbra onde dominam as fabriquetas e as pequenas indústrias). E, quando chegou, batia na barriga a dizer “Que belo cozido cá canta. Eu sou homem de muito alimento!”
Já um pouco exasperado (e com pouca vontade de prosseguir em divagações gastronómicas baseadas em menus de tascas souselenses), cortei:
- Mas, senhora-octogenária-que-me-é-próxima, afinal o que é que ele CÁ VEIO fazer? Por que razão o chamou?
Finalmente, obtive uma resposta ligeiramente mais satisfatória:
- Ora, porque a menina do call center o mandou.
- QUE menina do call center?
- Ai, filho, que call center havia de ser?? Do da PT. A menina telefonou-me há uns dias, e foi muito simpática…
- Em que dia foi, senhora-octogenária-que-me-é-próxima?- perguntei eu, já a temer o pior.
- Deixa-me ver… olha, é fácil: foi no da procissão da Rainha Santa. A menina, que era uma amabilidade, até me perguntou porque é que tão pouca gente estava a atender os telefones em Coimbra nesse dia… e eu respondi-lhe que devia ser por causa da Rainha Santa!
- Bom, e o que queria essa menina?
- Na verdade, depois de falar um pouco comigo, queria oferecer uma ótima promoção: a partir de agora, passo a pagar 9 euros de telefone fixo por mês, desde que ligue apenas por números começados por dois.
Ora, eu sabia que a senhora-octogenária-que-me-é-próxima já tinha um excelente pacote PT, pelo que duvidei de tão inusitada vaga de generosidade.
- E o que lhe respondeu?
- Que estava interessada, claro! Filho, sabes perfeitamente que eu só ligo para telefones fixos, para os outros uso o telemóvel. Foi o que disse à menina “Ah! Todas as minhas chamadas deste número são para 2… são quase todas para **** (localidade onde nasceu a senhora-octogenária-que-me-é-próxima, e que é afamada pelos seus derivados de lacticínios)”. E a menina até me disse logo “Ah! ****, terra de bom queijo!”
E, voltando à mesma tecla:
- Eu bem te disse que a menina era uma simpatia. E lá lhe expliquei que agora os queijos já não são nada comparados com os de antigamente.
Mas eu não estava, desta vez (nem nunca, na verdade, pois detesto tal coisa – e dou graças a Deus por não ter herdado nenhuma das propriedades da família cuja renda era paga em carroças dos ditos! BLERGH!) interessado em queijo.
- Mas, senhora-octogenária-que-me-é-próxima, qual é a relação da menina com o homem que cá veio?
- Bom, a menina, depois de eu ter ficado interessada na promoção, informou-me de que um funcionário da PT vinha cá a casa, para eu lhe dar os meus dados pessoais.
(Ups! A senhora-octogenária-que-me-é-próxima esquecera-se de que a PT já tinha, naturalmente, os dados pessoais de que precisava).
- E foi o que aconteceu? Ou acabou por não lhe mostrar nada?
- Que ideia, filho! O homem era insolente (agora me lembro que reclamou ter de subir as escadas, dizendo “a senhora deve ter de pagar, quando quer que lhe tragam alguma coisa!”), mas eu tinha combinado com a menina. Por isso, mostrei-lhe o que me pediu. Mas nem imaginas o que aconteceu depois!
- O que foi?? – perguntei, já com receio do que aí viria
- Quando recolheu as informações, e antes de ir embora, disse-me “Agora são 10 euros, pela deslocação”. Imagina tu!
- O que lhe respondeu?
- Que não lhe pagava nem o cêntimo, porque tinha acordado com a menina, e que nunca ninguém vira um funcionário da PT a pedir para ser pago numa deslocação! Acho que vou telefonar para lá a reclamar.
(e eu a pensar: “se calhar ele NÃO ERA funcionário da PT!)
Continuava a senhora-octogenária-que-me-é-próxima:
- E ainda por cima, ele só me dizia que “era profissional liberal, e angariador de contratos”.
(Ai, ai!)
Foi aí que, não especialmente preocupado com os 10 euros, lancei as duas perguntas que me martelavam o cérebro:
- Senhora-octogenária-que-me-é-próxima, tem a certeza que ele era da PT?
- Tenho! – foi a resposta pronta.
- Ele estava identificado? Mostrou-lhe alguma identificação?
- Bem, não… mas como a menina era da PT…
- E tem a certeza de que a tal menina era funcionária da PT?
Nova réplica imediata, mas pouco satisfatória:
- Claro, filho! QUEM MAIS me telefonaria por causa da conta do telefone? E até sabia quanto é que eu tinha pago no mês passado!
As coisas estavam a escurecer, pelo que era forçoso passar à pergunta essencial nº 2:
- Que documentos lhe mostrou?
- Ah, o BI, coisas assim…
- E ASSINOU alguma coisa? (eu já adverti 150000000 a senhora-octogenária-que-me-é-próxima para não assinar nada sem ma mostrar antes, mas, com o seu feitio autoritário, ela muitas vezes quebra esta regra).
- Bem…. Pronto, já sei o que vai dizer, mas sim!
- O que era? Leu?
- Não! Ia lá agora ler aqueles papéis chatíssimos da PT!
- Mas eu já lhe disse que TEM de os ler, e para não os assinar assim, de olhos vendados. E não se importa de me mostrar o exemplar com que ficou?
- Que tontice, filho, não fiquei com exemplar nenhum!
- Assinou um contrato e não ficou com uma cópia?
- Que contrato, não assinei contrato nenhum!!
E, depois de breves segundos de apreensão:
- Filho, se calhar é melhor ligares para a PT…

É claro que não liguei à PT: fui a um dos seus balcões, zangadíssimo, pondo ainda a hipótese de ter sido aquele servidor a aproveitar-se da debilidade que os quase 90 anos da senhora-octogenária-que-me-é-próxima reclamam. No entanto, ao ser atendido, os meus piores receios foram confirmados: não tinha sido a PT a fazer aquele contacto (“Para quê”, perguntava o funcionário, “se a senhora-octogenária-que-lhe-é-próxima já tem um plano tão vantajoso?”), mas, provavelmente, um concorrente. Felizmente, deu (garantiram-me que sim) para cancelar o processo (basicamente, declarar que não se quer alterar nem o operador, nem o plano, não obstante quaisquer propostas em contrário, sem que eu seja consultado) e apresentar uma reclamação.
No entanto, o pior de tudo isto não foram os 10 euros (pagamento cuja exigência a senhora-octogenária-que-me-é-próxima considerava ter sido muito mais grave do que a assinatura de um eventual contrato) reclamados pelo funcionário “insolente”, mas o aproveitamento incrível – por parte da “menina” e do tal rapaz – das fraquezas que a velhice inapelavelmente acarreta. Eu sei que a senhora-octogenária-que-me-é-próxima é dotada de um feitio difícil, muitas vezes só se ouve a si mesma e tem pouca paciência para escutar gente que não conhece e considera ser “apenas” um funcionário da PT (e que, na sua ótica um tanto oitocentista, estará ao nível de um carteiro ou da senhora que lava as escadas – também eles “muito amáveis”). E sei que ela sabe perfeitamente que não pode andar por aí a distribuir assinaturas e a mostrar cartões – mas que, ciclicamente, quebra estes compromissos. Sei, também, que esta senhora-octogenária-que-me-é-próxima tem a sorte (?) de, dos três netos que conta, dois serem licenciados em direito e a outra uma “barra” em relações públicas.
No entanto, indigna, mas indigna mesmo – não só pela senhora-octogenária-que-me-é-próxima mas também pelas muitas e muitos outros que, mais desprotegidos, por esse país fora são engrolados por “meninas simpáticas” e rapazes que comem cozido à portuguesa – que haja gente sem uma pinga de carácter que, em vez de um trabalho limpo, se preste a estes joguinhos com idosos.
E isso, não há crise que justifique.
Fica o aviso, para todos os que têm também senhoras(es)-octogenária(os)-que-lhes-sejam-próximas(os).

Thursday, July 05, 2012

SENHORA GORDA COM CÃO PEQUENO QUER ENTRAR


Ontem à noite, os utentes habituais das rotas Coimbra-Leiria e Leiria-Coimbra (na verdade, os que embarcam às 22 sem qualquer desejo de ir ter a Vila Real de Santo António, que é o verdadeiro término da jornada, que calcorreia, então, meio Portugal) tiveram o prazer de embarcar numa camio novinha em folha – com cheiro a novidade e tudo, e contrastando violentamente com os chaços velhos e nauseabundos que, por vezes (embora cada vez mais raramente), nos apresentam – e o incómodo (não há bela sem senão) de partir com 10 minutos de atraso. A dita demora deveu-se a uma senhora imensa, de busto generosíssimo, estrangeira mas certamente há muitos anos a viver em Portugal que, acompanhada por um filho franzino que lhe trazia as malas, transportava com desvelo uma carteira colorida. Confesso que, sem me preocupar com o assunto mais do que o contraste da larguíssima e agitada progenitora com o filho esquelético e de semblante calmo, numa primeira e ligeiríssima análise, pensei que tantas denguices com a carteira se deviam ao simples facto de ela ser nova, ou especialmente cara, ou do particular agrado da sua possuidora.
Cedo, porém, me desenganei, sobretudo quando a dita senhora – que estava à minha frente na fila para entregar o bilhete ao condutor – começou a discutir animadamente com o mesmo. De novo tenho de admitir que, nos primeiros minutos, ignorei por completo o assunto. Estava demasiado entretido a trocar sms com a minha mana, e quem costuma recorrer a estes meios de transporte ganha algum calo, que se traduz, designadamente, numa dose suplementar de paciência para aturar os passageiros malucos. Por isso, pensei “Mais uma!”, e continuei a combinar a jornada “rainho-santesca” de hoje à noite.
No entanto, e com a passagem dos minutos acompanhada pelo elevar das vozes, comecei a perceber o que pretendia a senhora gorda, com sua pronúncia carregada de rrrs. Na verrrdade, ela querrria levarrr consigo o seu cãozinho… o qual, afinal, estava na dita carteira, que, na realidade, não era carteira nenhuma, mas uma requintada bolsa-para-transporte-de-micro-animais-domésticos (e, observando bem, cedo constatei ter a mesma uns respiradouros laterais, por onde se divisava o focinho triste do bicho, o qual devia estar já um tanto enjoado com o balançar do meio de transporte que a dona tinha selecionado para a sua jornada, devido ao gesticular enérgico da mesma).
Travava-se um diálogo intenso:
- Mas eu querrrro levarrr o cãozinho comigo, na camioneta.
E replicava, com evangélica resignação, o motorista
- Mas, minha senhora, não pode, o regulamento não permite…
- Mas eu querrrro! – grasnava ela, com uma autoridade que ninguém lhe reconhecia
- Mas seu eu já lhe disse… Não depende de mim!...
- Se eu não levarrr cãozinho comigo prefirrro ficarrr cá
- A senhora é que sabe. Mas olhe que não sei se lhe devolvem o dinheiro do bilhete…
- E eu já tenho as malas no porão
- Tiram-se… o seu rapaz trata-lhe disso, não é, rapaz? (e fitou o filho, silencioso e magro, certamente com vontade de se afastar dali, e esquecer os dramas de sua volumosa mãe)
- Mas eu querrro irrr parra o Algarrrve!
- Então embarque!
- Com o cãozinho??
- Sim, com o cãozinho… mas o cãozinho vai no porão, juntamente com as malas.
- Mas isso serr horrível! Ele morrrerrr!
- Que ideia! Morre lá agora! Tantos fazem isso! E é o que manda o regulamento.
- Não querrrro!!!!
- A senhora é que sabe! Mas nós temos de partir, já estamos bem atrasados (o resto da fila, diga-se, já dava mostras de impaciência). Parte, ou fica?
- E se eu pagarrr?
- A mim? – replicou o condutor, genuinamente indignado – para quê?
- Parrra levarrr cãozinho…
- A senhora não percebe o que está a dizer! E não, eu não quero dinheiro nenhum!
- Eu pagarrr bem, e ninguém fica a saberrr – dizia a interlocutora, talvez esquecendo-se do tom que falava e do grupo que a rodeava.
- A senhora deixe-se disso! – cortou, agastado, o motorista
Foi nessa altura que a dona do cãozinho procurou adotar nova técnica. Compondo uma expressão triste e compungida, disse, num sussurro todavia audível:
- Vá lá, é um favorrrzinho que me faz… Um só favorrrzinho!
O motorista nem a quis mais ouvir.
Foi então que uma rapariga, que tinha ido acompanhar o namorado ao cais (um rapaz de ar indolente, mas que, suspeito, gostava de dar ares de “académico”) resolveu, sem ter nada a ver com o assunto, intervir na conversa, pondo-se do lado da senhora gorda. Agressiva, atirou logo ao motorista:
- Mas porque é que não deixa o cão ir??!!
E concluiu logo, precipitada e insensata:
- O senhor não gosta é de animais!
O homem respondeu:
- Ó menina, eu até tenho vários cães! O regulamento é que não permite. O cãozinho da senhora vai bem no porão, garanto-lhe. Não pode ir juntamente com as pessoas…
- Mas porquê?
- É o regulamento! – replicou, pela enésima vez, o motorista – Eu NÃO decido nada!
- Ora, não ligue tanto ao regulamento!
- Isso, isso, vamos fazerrr o que diz a menina! – apoiava a gorda.
- Não pode ser – explicava o homem – imagine que há alguém alérgico…
A pseudo-ativista vibrou com este dado novo, e reagiu prontamente:
- Pergunta-se já as pessoas, e elas que decidam. As pessoas é que mandam!
- Mas EU sou alérgico – contestava o motorista
- Problema fácil de resolver… fica longe do cão!
- Ora, deixem-se dessas coisas! Saímos daqui a 3 minutos, a senhora decida-se. Se quiser, vá ali falar com o meu superior.
É realmente incrível como esta senhora gorda, alguns anos depois de cá estar, percebeu, de forma tão tristemente esclarecedora, como muitas das coisas funcionam entre nós. Queria quebrar regulamentos, para levar a sua pretensão avante. Não seguiu, contudo, a via adequada: informar-se das condições de transporte de animais atempadamente e, caso desgostasse das mesmas, apresentar uma reclamação contra um tratamento que considera prejudicial aos animais. Em paralelo, podia até escrever um artigo para um dos periódicos da cidade, ou, mesmo, pensar em realizar uma petição. Não foi, porém, nada disto o que fez. Daria certamente muito trabalho. Recorrendo à chico-espertice que, por vezes, ainda nos surpreende em várias esquinas e salões deste país, escolheu o último momento antes da partida da camioneta, para, assim, contar com um elemento de pressão adicional face ao motorista, que tem horários a cumprir. O facto de estar rodeada de gente também lhe podia ser favorável – não raro surgem almas como a namorada-do-pseudo-intelectual – e os gritos e os salamaleques, os estremecimentos e as histerias ajudaram. Finalmente, a nojenta hipótese de pagamento de uma “taxa extra”, e o repulsivo recurso ao “favorzinho” – muito bem repelidos, um e outro, pelo condutor – constituíram uma perfeita cobertura de cerejas podres neste bolo rançoso.
Não vou negar que me parece cruel transportar cães num porão pouco arejado. Não creio ser uma solução sequer ponderável, para mais tratando-se de animais frágeis, como aparentava ser o da senhora gorda. Na verdade, não me afetava nada que a mesma colocasse a sua bolsa-para-transporte-de-micro-animais-domésticos no assento junto do seu. No entanto, aplaudo – e aplaudo energicamente – a postura do condutor. O regulamento, salvo casos excecionais e devidamente fundamentados, deve ser para cumprir. E as coisas não se decidem em cima do joelho, nem recorrendo a subornos torpes ou a histerias fáceis.
Por isso, não gostei de, a meio da viagem, depois de a senhora ter tido, durante menos de 3 minutos, uma conversa com o tal superior, de ouvir um ganido ligeiro, vindo de uma bolsa-para-transporte-de-micro-animais-domésticos que uma gorda sentada nos bancos da frente trazia junto de sim.
A senhora gorda com o cão pequeno entrou, é certo. Ainda bem para o cão, mas ainda mal para a senhora. Na verdade, a punição adequada teria sido ter sido o cãozinho transportado na camio (desde que longe dos alérgicos) e a sua tonta proprietária ficado em terra, ou ido no porão. Talvez assim percebesse que histerias, “luvas” e “favorzinhos” têm de ter os dias contados entre nós.

Wednesday, July 04, 2012

MUNDOS PARALELOS




As breves reflexões de hoje, escritas entre o fim do jantar e a saída para ir apanhar a camio rumo a Leiria, foram-me inadvertidamente sugeridas por um comentário tecido por um amigo que muito prezo e respeito, E.. Poderia, ao invés deste par de considerações, ter enveredado pela matéria fascinante de como detesto fazer camas com edredões – e detesto MESMO, trata-se de um ódio profundo, difícil de desentranhar, mesclado com a minha incapacidade absoluta de acertar os ângulos daquela diabólica espécie de fronha gigantesca – ou pelo quanto gostei de ver o resultado final do manto “à Joana Vasconcelos” que várias almas trabalhadoras conimbricenses dedicaram à Rainha Santa.


O E. – rapaz que, como eu, gosta de Goa – aborda um tema que a todos nos diz bastante: como caracterizar aquela terra, que tem tantos ângulos sob os quais pode ser analisada? Sob a lupa da maior parte da sua população – esmagadoramente hindu e pouco ou nada interessada no que se passa em Portugal? Sob a perspetiva dos hippies de há umas décadas e dos fanáticos do trance dos dias que correm – gente que lá está como poderia estar em qualquer outro local, desde que lhe fornecessem os ingredientes adequados? Sob o prisma dos muitos indianos que, hoje, buscam aqueles areais para retemperarem forças durante as férias? Sob a mirada dos portugueses inadaptados que para lá fogem, na esperança de, longe de tudo e todos mas sentindo-se num ambiente que apesar de tudo pode ser exoticamente familiar, refazerem a sua vida e reordenarem a sua tola? Ou sob o ângulo do mundo cada vez mais brumoso das velhas elites católicas de Bardez, Salsete e Ilhas?

Pergunto eu: a grande vantagem deste perigoso cocktail não é, precisamente, poder escolher-se a visão e a abordagem que mais se conforma com o que nos faz sentir bem? Terá de haver uma visão dominante? Terá de haver um discurso oficial, uma grelha que nos imponha um rígido imperativo “Goa é assim”?
Eu – todos os que me conhecem o sabem – simpatizo profundamente com as ditas velhas elites católicas. Poderia carpir, numa linguagem eivada de pseudo-lamentos, a sua decadência e o seu desaparecimento dos palcos principais da Goa moderna. Mas, na verdade, eu não sei – e, provavelmente, nunca saberei – se lá fazem, hoje, efetivamente, falta. Poderia, por outro lado, diabolizar o seu legado. Mas, na verdade, eu estou longe de o considerar (ao tomá-lo como um todo) nocivo. Poderia, pura e simplesmente (como tantos fazem) ignorá-lo. Mas elas não deixam, pois, na sua discrição, são demasiado visíveis.

Tal como Orlando Ribeiro (entre vários outros) eu senti-me em casa junto deste pequeno grupo. À semelhança do grande geógrafo, experimentei as semelhanças – extraordinárias, pelo muito que os distancia e os aproxima – existentes entre ele e as velhas elites dos Açores ou das Beiras, que tão bem conheço.
Em 2006, um parente. E.O., publicou um vasto e precioso tratado sobre genealogias da Beira. O lançamento foi tão discreto quão cheio de significado. Toda a “fidalguia” da Beira convergiu a um obscuro solar perdido no meio de pinheirais e vinhedos para tomar parte na celebração. Não sei se aquelas dezenas de pessoas, que se tratam todas entre si por “primos”, mesmo que tenham em comum um 15º avô, sentiram todas o mesmo, mas creio bem que sim: “Deus meu, ao que nós chegámos”. No entanto, quem soube e não foi convidado apressou-se a dizer “os séculos passam e eles mantêm-se iguais”.
Nesse mesmo ano, Fonseca e Costa dá a conhecer um filme do qual gosto especialmente: “Viúva rica solteira não fica”. Tendo a Ínsua como cenário, é um retrato – cruel, muito mais cruel do que se possa imaginar – da “minha” Beira.

Em 2008, Miguel Gomes enche jornais com “Aquele querido mês de Agosto”. Expõe-se a realidade para lá dos muros da Ínsua, a crueza das relações, o patético de toda uma região, o kitsch que o verniz da(s) Ínsua(s) por um lado ameniza, mas por outro aumenta.
Fonseca e Costa fala da Beira de uma minoria; Gomes da das massas. Muitas outras minorias poderiam – e deveriam – ser exploradas por realizadores com a qualidade destes dois (o que, esperemos, talvez venha a suceder no futuro). No entanto, eu não posso “Fonseca e Costizar” o mundo, e impor-lhe uma Beira vista sob o ângulo da mesma; nem os adeptos de Gomes podem querer “Gomesmizar-me”: eu não quero e não deixo.

Não se passará o mesmo com Goa? Não se passará, aliás, o mesmo com todos os lugares do mundo de que gostamos porque são como os imaginamos… mesmo que essa visão seja apenas…parcial?