Sunday, May 06, 2012

Burtoniana

Estou a reler o Goa and the blue mountains, de Richard Burton... e sinto sempre o mesmo: é uma pena (uma deliciosa pena, se assim se pode dizer) que este homem escreva tão bem e de forma tão divertida... para dizer tanto mal de Goa e das minhas estremecidas elites brâmanes e chardós católicas!
PVG, numa crónica que ficou célebre de entre as "Cartas de cá" que foi dando à prensa nas páginas do "Público", tratou-o de forma duríssima: "Foi então que (os ingleses) começaram a desprezar os portugueses por sistema. Já os (nos?) desprezavam aleatoriamente, mas, a partir dos primeiros anos de Oitocentos, passaram a considerar os portugueses sempre piores que pretos: mestiços, ou seja, preguiçosos, incompetentes e, para cúmulo, católicos. É exemplar a prosa de Richard Burton, o explorador e intelectual que escreveu sobre Goa em 1859. São algumas das mais odientas linhas alguma vez escritas contra o Portugal decadente, tropical, pobre, de pele escura e uniforme roto que alguma vez foram postas no papel.".É impossível, ao ler-se esta obra, não sentir o mesmo: uma indignação surda que cresce em torno das considerações acres, da sobranceria, da mofa que este jovem britânico vindo de Bombaim faz daquela que por tantas vezes gostamos de imaginar (mesmo sabendo que não era bem essa a verdade...) a "Roma do Oriente". Os militares decadentes, o governador demasiado próximo, a redução das elites católicas a um bando de bêbados que batem nas mulheres, sabem latim e têm muito prazer em servir de guias ao "sahib" inglês... o escárnio perante a imortal Velha Goa, o considerar tudo pequeno, provinciano, pobre, acabado. E, sobretudo, o dizê-lo com algum espírito. E, mais ainda, o sabermos que muito do que disse pode ter um lado verdadeiro... ou, mesmo, que grande parte daquelas linhas são certeiras. É tudo uma questão de ângulo, um jogo de reflexos (ou de "contraluces", aproveitando-me de um termo castelhano que considero extremamente eficaz). Burton não viu as coisas pelo nosso ângulo: viu destroços onde ainda hoje divisamos ruínas românticas, viu criações horrendas em vez das maravilhas artísticas ditas indo-portuguesas que tanto apreciamos, viu porcos e imundície nas ruas de uma Pangim onde reconhecemos muitas das nossas vilas, viu barbarismos ridículos no nosso kitsh latino (generosamente temperado com o seu congénere do Concão). Viu tudo o que vemos, ainda hoje, mas com outros olhos. "Viu mal" - gritamos! "Não é nada disso!" Mas, se calhar, Burton mirou Goa como a maioria das pessoas que não a meia dúzia de portugueses e goeses que ainda estão um bocadinho rodeados pelos "fumos da Índia" (esses fumos inebriantes que nos intoxicam docemente desde Albuquerque) a olham. Como, ainda hoje, os seus conterrâneos, quando passeiam entre os palmares da "Outra Lisboa", em vez de se assombrarem com a sequência de abóbadas e campanários e com as cruzes implantadas em todas as direcções, apenas perguntam "PARA QUÊ tantas igrejas, tantos conventos, tão grandes mosteiros? E qual a razão para tamanho orgulho neles?". 
Quando releio Goa and the Blue Mountains tento perceber este ponto de vista, e acho que até consigo fazê-lo com algum proveito.
Mas, Burton, Burton... jamais te perdoarei o "odiento" (para usar as palavras de PVG) retrato que fazes dos BCs! E tenho sempre de controlar a vontade de gritar, dos altos do Monte da Bela Vista, à sombra do beato-brâmane-católico (conceito que não quiseste compreender) José Vaz: 
"Não percebeste NADA!"
Mesmo sabendo que este meu ponto de vista é tão parcial como o teu!

0 Comments:

Post a Comment

<< Home