LOUTOLIM
Uma
das coisas que todos os que gostamos desta pequenina e muito particular parcela
do subcontinente indiano e a estudamos depressa aprendemos é que não existe uma
só Goa, mas sim uma pluralidade delas, que se acotovelam – por vezes,
harmoniosamente, noutras com alguma má vontade e fricções – em paragens quer
das Velhas, quer das Novas Conquistas. Tal pode ser encarado,
creio, ou como uma bênção ou a título de quase maldição. Porquê? Por um lado, é
suscetível de ser benéfico para aqueles que anseiam por um primeiro contacto
com o caleidoscópio indiano (que aqui encontram relativamente bem representado
e, sobretudo, sem os extremos e excessos que, noutros pontos do país,
certamente aterrariam os que ainda não estão acostumados às suas
particularidades), para aqueles a quem a difusão generalizada em determinada
sociedade de uma forma de estar e de pensar é vista como sinal de monotonia (e
entre nós, ocidentais, persiste sempre a tendência de idealizarmos uma Índia
tudo menos enfadonha) e depressa aborrece, para os vários que – acossados nos
seus próprios países natais, torturados por alucinações mais ou menos
estrambólicas e perseguindo sonhos igualmente bizarros (e Goa está repleta
deles, desses europeus meios desvairados que a buscam em busca de uma vida
fácil e “livre” das críticas que, a fazerem tais opções, lhes seriam depressa
lançadas nas suas terras natais) almejam simplesmente fugir – e, finalmente, para
os que estão já acostumados a viver num autêntico melting pot cultural.
Em
paralelo, tamanha diversidade pode constituir um óbice para os que, admirando
ou desejando conhecer sobretudo uma ou algumas destas várias Goas que coabitam
num mesmo espaço, se vêm forçados a, por vezes, conviver com (e nas) outras Goas, as quais provavelmente nem
sequer estimam tanto. Claro está que tais contingências podem – e devem, a meu
ver – ser analisadas sempre desde um angulo risonho: o facto de sermos quase
forçosamente confrontados com outras realidades e maneiras de ver o mundo que
não se compaginam (mais: que, por vezes, parecem ser radicalmente opostas e,
mesmo, bastante agressivas para com elas) com as nossas perspetivas torna-nos
mais ricos, mais resistentes e mais tolerantes. Ou seja, concorre para, pelo
menos em teoria, nos transformarmos em pessoas melhores. No entanto, corre-se
sempre, em tal enquadramento, um risco suplementar: sendo certo que nem todas
as Goas coexistentes partilham do mesmo destaque na vida quotidiana local –
algumas delas são claramente dominantes – podemos por vezes não encontrar, ou
perder de vista, depois de a termos vislumbrado, a Goa de que gostamos no mare magnvm em que a mesma se acha
imersa. Basta pensar num par de exemplos. No meu caso, não tenho grande
simpatia pela Goa dos europeus drogadaços que para cá vêm fazer as figuras
tristes que não lhes são consentidas nas suas terras natais; no entanto, ela
está por aí, omnipresente. Por outro lado, identifico-me, como é compreensível,
muito mais com a Goa católica do que com a hindu. Nada tenho contra os hindus
(contra os europeus drogadaços a história já pode ser diversa…), mas não
conheço o suficiente a sua religião, a sua língua, a sua mundividência para as
compreender. No entanto, a maioria dos que me rodeiam e muitos daqueles com
quem trato diária e regularmente são hindus.
Assim
sendo, creio que é fundamental, para cada um de nós que vem a esta pequena
parcela do subcontinente em busca de saber mais sobre a Goa que prefere, não só
jamais deixarmos de a procurar como, depois de encontrarmos, saber onde se acha
mais solidamente implantada para, de vez em quando – e também por motivos
“terapêuticos” (se a virmos e sentirmos pouco, ainda acabamos por duvidar da sua
existência efetiva) – lá irmos, tomarmos uma boa colherada da sua essência e,
depois, revigorados e bem-dispostos, tornarmos ao melting pot habitual. No meu caso, uma dessas “bolhas” da Goa que
estremeço particularmente é Loutolim. Loutolim, a dois passos do magnífico
seminário de Rachol e a três da atualmente menos magnífica Margão (lamento, mas
não considero que a outrora Atenas do
Concão constitua um caso de sucesso urbanístico), é, a par de Talaulim de
Santana, Rachol e Candolim um dos vários epicentros de onde promanaram as
elites naturais católicas que estudo
e que, para o bem e para o mal, constituem a minha Goa (a qual, está claro, não se esgota nelas, mas muitas
vezes se ancora na sua maneira de ver o mundo) – sendo que, de entre tais
localidades, é provavelmente aquela que, mercê de uma série de contingências,
logrou conservar até hoje esse perfil de forma mais íntegra. Talaulim e Rachol
acabaram por sucumbir a epidemias, Candolim em boa medida não resistiu às
investidas turísticas… sobra-nos Loutolim. E é aqui que, desde logo, se
encontram vários dos casarões que, espelhando a soberba, o poder, a erudição e
– porque não dizê-lo? – grau de portuguesismo dessas linhagens (que têm o
condão de tão à vontade estarem em pleno Chiado como nas suas verdejantes
paragens ancestrais) vão, geração após geração, visitante após visitante,
criando pasmo nos que por lá passam (Orlando Ribeiro, por exemplo, foi um dos
que não conseguiu resistir ao seu fascínio). Não é só (ou sobretudo) pelo seu
tamanho – a Índia está cheia de edifícios de muito maiores proporções – nem
pela riqueza arquitetónica ou de interiores (as quais, contudo, são óbvias) que
estas casas largas e de semblante simultaneamente solene e confortável se
impõem. O que as destaca, a meu ver, a par e para além de todos aqueles
predicados, é o facto de espelharem uma Índia e uma Goa muito especial. Uma
Índia e uma Goa em acelerado desaparecimento (o certo é que, sejamos francos,
falamos de um grupo que jamais foi muito numeroso) – sendo que, contudo, desaparecimento e extinção são realidades muito distintas – e que, por vezes, hoje, está mais densamente representada nas
artérias lisboetas do que nas suas congéneres de Pangim, Margão ou Mapuçá, mas
que é a Índia e a Goa de que mais gosto. Para mim, Goa passa muito por cadeiras
Voltaire numa varanda confortável de
balaustrada ornada para a qual abrem longas fiadas de portadas lavradas
(algumas delas ainda com as suas carepas) que nos levam a bibliotecas
venerandas e ricas (com o reconfortante cheiro que estas sempre têm) pelas
quais passaram gerações de homens de leis e eclesiásticos, a capelas com
imagens de S. José Vaz e dos mártires cuncolenses (bem como uma ocasional e
estimada pequena relíquia xavieriana) e a salões imponentes, onde as memórias
dos mandós de outrora ecoam entre os
arabescos dos pesados móveis indo-portugueses de teca, os retratos espalhados
pelas paredes (cujas molduras são, naturalmente, sustentadas pelas célebres
mãos de madeira que qualquer bom caixilho goês deve exibir), os lustres sempre
um bocadinho empoeiradas e as porcelanas de Macau. Nos salões e nas câmaras
destas moradas eu encontro, não raro, móveis de torcidos, cadeiras de preguinhos e louça mandarim que me
fazem, por sua vez, sentir – estranhamente, poder-se-á dizer – em casa.
De
todos os vastos solares de Loutolim (Quadros, Costas, Mirandas, etc, etc) há um
de que gosto especialmente. Não se trata, certamente, do mais antigo, nem do de
semblante mais aristocrático (no sentido de exibir uma aura de velha fidalguia
de província) e, se o meu Pai cá estivesse, talvez me arguisse de que tal
escolha refletia os meus gostos burguesões;
no entanto, é uma casa de que gosto imenso e para a qual sinto ter, de alguma
forma, uma dívida. Falo da morada histórica dos Figueiredos, agora parcialmente
convertida (de forma discreta, mantendo todo o bom gosto e o ar de casa de família que lhe associo) em
espaço museológico. Estivemos – eu, o Zé Ferreira e a Rachel Miller – lá no
passado sábado, fomos magnificamente recebidos pela sempre inexcedível M. de
Lourdes Figueiredo de Albuquerque (que tão bem representa a estirpe do Vicente
João de Figueiredo a quem Tomás Ribeiro tantos elogios endereçou nas suas Jornadas), e eu respirei fundo e tomei uma daquelas boas colheradas da minha Goa de que acima falo. Essa é, na
verdade, a minha dívida a Loutolim em geral, àquela casa em particular, e
também aos loutolenses que primeiro me falaram delas, com manifesto entusiasmo,
e me exortaram a lá ir (e aqui há que fazer especial menção a Percival e ao
Pedro): é lá que, sempre que quero e sempre que preciso, posso ir, encher os
pulmões e ganhar alento… porque, afinal, a Goa de que gosto existe e persiste!
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