Tuesday, March 19, 2013

LOUTOLIM


Uma das coisas que todos os que gostamos desta pequenina e muito particular parcela do subcontinente indiano e a estudamos depressa aprendemos é que não existe uma só Goa, mas sim uma pluralidade delas, que se acotovelam – por vezes, harmoniosamente, noutras com alguma má vontade e fricções – em paragens quer das Velhas, quer das Novas Conquistas. Tal pode ser encarado, creio, ou como uma bênção ou a título de quase maldição. Porquê? Por um lado, é suscetível de ser benéfico para aqueles que anseiam por um primeiro contacto com o caleidoscópio indiano (que aqui encontram relativamente bem representado e, sobretudo, sem os extremos e excessos que, noutros pontos do país, certamente aterrariam os que ainda não estão acostumados às suas particularidades), para aqueles a quem a difusão generalizada em determinada sociedade de uma forma de estar e de pensar é vista como sinal de monotonia (e entre nós, ocidentais, persiste sempre a tendência de idealizarmos uma Índia tudo menos enfadonha) e depressa aborrece, para os vários que – acossados nos seus próprios países natais, torturados por alucinações mais ou menos estrambólicas e perseguindo sonhos igualmente bizarros (e Goa está repleta deles, desses europeus meios desvairados que a buscam em busca de uma vida fácil e “livre” das críticas que, a fazerem tais opções, lhes seriam depressa lançadas nas suas terras natais) almejam simplesmente fugir – e, finalmente, para os que estão já acostumados a viver num autêntico melting pot cultural.
Em paralelo, tamanha diversidade pode constituir um óbice para os que, admirando ou desejando conhecer sobretudo uma ou algumas destas várias Goas que coabitam num mesmo espaço, se vêm forçados a, por vezes, conviver com (e nas) outras Goas, as quais provavelmente nem sequer estimam tanto. Claro está que tais contingências podem – e devem, a meu ver – ser analisadas sempre desde um angulo risonho: o facto de sermos quase forçosamente confrontados com outras realidades e maneiras de ver o mundo que não se compaginam (mais: que, por vezes, parecem ser radicalmente opostas e, mesmo, bastante agressivas para com elas) com as nossas perspetivas torna-nos mais ricos, mais resistentes e mais tolerantes. Ou seja, concorre para, pelo menos em teoria, nos transformarmos em pessoas melhores. No entanto, corre-se sempre, em tal enquadramento, um risco suplementar: sendo certo que nem todas as Goas coexistentes partilham do mesmo destaque na vida quotidiana local – algumas delas são claramente dominantes – podemos por vezes não encontrar, ou perder de vista, depois de a termos vislumbrado, a Goa de que gostamos no mare magnvm em que a mesma se acha imersa. Basta pensar num par de exemplos. No meu caso, não tenho grande simpatia pela Goa dos europeus drogadaços que para cá vêm fazer as figuras tristes que não lhes são consentidas nas suas terras natais; no entanto, ela está por aí, omnipresente. Por outro lado, identifico-me, como é compreensível, muito mais com a Goa católica do que com a hindu. Nada tenho contra os hindus (contra os europeus drogadaços a história já pode ser diversa…), mas não conheço o suficiente a sua religião, a sua língua, a sua mundividência para as compreender. No entanto, a maioria dos que me rodeiam e muitos daqueles com quem trato diária e regularmente são hindus.
Assim sendo, creio que é fundamental, para cada um de nós que vem a esta pequena parcela do subcontinente em busca de saber mais sobre a Goa que prefere, não só jamais deixarmos de a procurar como, depois de encontrarmos, saber onde se acha mais solidamente implantada para, de vez em quando – e também por motivos “terapêuticos” (se a virmos e sentirmos pouco, ainda acabamos por duvidar da sua existência efetiva) – lá irmos, tomarmos uma boa colherada da sua essência e, depois, revigorados e bem-dispostos, tornarmos ao melting pot habitual. No meu caso, uma dessas “bolhas” da Goa que estremeço particularmente é Loutolim. Loutolim, a dois passos do magnífico seminário de Rachol e a três da atualmente menos magnífica Margão (lamento, mas não considero que a outrora Atenas do Concão constitua um caso de sucesso urbanístico), é, a par de Talaulim de Santana, Rachol e Candolim um dos vários epicentros de onde promanaram as elites naturais católicas que estudo e que, para o bem e para o mal, constituem a minha Goa (a qual, está claro, não se esgota nelas, mas muitas vezes se ancora na sua maneira de ver o mundo) – sendo que, de entre tais localidades, é provavelmente aquela que, mercê de uma série de contingências, logrou conservar até hoje esse perfil de forma mais íntegra. Talaulim e Rachol acabaram por sucumbir a epidemias, Candolim em boa medida não resistiu às investidas turísticas… sobra-nos Loutolim. E é aqui que, desde logo, se encontram vários dos casarões que, espelhando a soberba, o poder, a erudição e – porque não dizê-lo? – grau de portuguesismo dessas linhagens (que têm o condão de tão à vontade estarem em pleno Chiado como nas suas verdejantes paragens ancestrais) vão, geração após geração, visitante após visitante, criando pasmo nos que por lá passam (Orlando Ribeiro, por exemplo, foi um dos que não conseguiu resistir ao seu fascínio). Não é só (ou sobretudo) pelo seu tamanho – a Índia está cheia de edifícios de muito maiores proporções – nem pela riqueza arquitetónica ou de interiores (as quais, contudo, são óbvias) que estas casas largas e de semblante simultaneamente solene e confortável se impõem. O que as destaca, a meu ver, a par e para além de todos aqueles predicados, é o facto de espelharem uma Índia e uma Goa muito especial. Uma Índia e uma Goa em acelerado desaparecimento (o certo é que, sejamos francos, falamos de um grupo que jamais foi muito numeroso) – sendo que, contudo, desaparecimento e extinção são realidades muito distintas – e        que, por vezes, hoje, está mais densamente representada nas artérias lisboetas do que nas suas congéneres de Pangim, Margão ou Mapuçá, mas que é a Índia e a Goa de que mais gosto. Para mim, Goa passa muito por cadeiras Voltaire numa varanda confortável de balaustrada ornada para a qual abrem longas fiadas de portadas lavradas (algumas delas ainda com as suas carepas) que nos levam a bibliotecas venerandas e ricas (com o reconfortante cheiro que estas sempre têm) pelas quais passaram gerações de homens de leis e eclesiásticos, a capelas com imagens de S. José Vaz e dos mártires cuncolenses (bem como uma ocasional e estimada pequena relíquia xavieriana) e a salões imponentes, onde as memórias dos mandós de outrora ecoam entre os arabescos dos pesados móveis indo-portugueses de teca, os retratos espalhados pelas paredes (cujas molduras são, naturalmente, sustentadas pelas célebres mãos de madeira que qualquer bom caixilho goês deve exibir), os lustres sempre um bocadinho empoeiradas e as porcelanas de Macau. Nos salões e nas câmaras destas moradas eu encontro, não raro, móveis de torcidos, cadeiras de preguinhos e louça mandarim que me fazem, por sua vez, sentir – estranhamente, poder-se-á dizer – em casa.
De todos os vastos solares de Loutolim (Quadros, Costas, Mirandas, etc, etc) há um de que gosto especialmente. Não se trata, certamente, do mais antigo, nem do de semblante mais aristocrático (no sentido de exibir uma aura de velha fidalguia de província) e, se o meu Pai cá estivesse, talvez me arguisse de que tal escolha refletia os meus gostos burguesões; no entanto, é uma casa de que gosto imenso e para a qual sinto ter, de alguma forma, uma dívida. Falo da morada histórica dos Figueiredos, agora parcialmente convertida (de forma discreta, mantendo todo o bom gosto e o ar de casa de família que lhe associo) em espaço museológico. Estivemos – eu, o Zé Ferreira e a Rachel Miller – lá no passado sábado, fomos magnificamente recebidos pela sempre inexcedível M. de Lourdes Figueiredo de Albuquerque (que tão bem representa a estirpe do Vicente João de Figueiredo a quem Tomás Ribeiro tantos elogios endereçou nas suas Jornadas), e eu respirei fundo e tomei uma daquelas boas colheradas da minha Goa de que acima falo. Essa é, na verdade, a minha dívida a Loutolim em geral, àquela casa em particular, e também aos loutolenses que primeiro me falaram delas, com manifesto entusiasmo, e me exortaram a lá ir (e aqui há que fazer especial menção a Percival e ao Pedro): é lá que, sempre que quero e sempre que preciso, posso ir, encher os pulmões e ganhar alento… porque, afinal, a Goa de que gosto existe e persiste!


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