ORGANISMO LUSO-TROPICAL
Hoje
assisti ao nascer do dia através da minha janela de carepas em pleno bairro das
Fontainhas. Entre as seis e as seis e meia (altura em que as badaladas solenes
da vizinha capela de S. Sebastião ferem o ar e declaram oficialmente aberto o
dia, nesta pequena parcela Goa que é maioritariamente católica e onde muitos
sabem falar português), os trinados dos pássaros foram-se tornando mais
audíveis (há um de que gosto particularmente – e já nem me recordava disto! –
pois sempre que termina qualquer dos seus longos gorjeios termina com outro,
muitíssimo mais breve, que me soa, incompreensivelmente, como um thank you um pouco mecanizado!), começou
a ouvir-se passar uma ou outra bicicleta, mais além um carro qualquer buzinando
loucamente, como é hábito local. À medida que, entre as carepas da minha
janela, o céu ia adquirindo um transitório mas magnífico (sobretudo no
contraste com o verde das árvores fronteiras) tom de azul forte, os sons
quotidianos tornam-se progressivamente percetíveis: senhoras varrendo a rua
fronteira, os vizinhos da frente a saírem para trabalhar, dois amigos que
trocam breves palavras à esquina.
A
noite foi curta, pois acabei por dormir menos do que queria. Cheguei ontem a
Goa, após uma viagem inevitavelmente demorada e cansativa, sentindo-me um pouco
apreensivo: como reagiria a este (ainda que breve, de pouco mais de duas
semanas) regresso? Apesar de pensar em Goa mais de 1/3 dos meus dias, já cá não
tornava desde 2008, altura em que vivi nestas paragens três meses e meio recheados
de momentos excelentes a par de fases difíceis e de bastante angústia: os
primeiros, contudo, tinham suplantado largamente as segundas, e fiquei a gostar
genuinamente destas paragens e gentes. Mas… e agora? Quando, por fim, o avião
começou a investir rumo a Dabolim, foi inevitável lembrar-me do choque que
senti no meu primeiro contacto com uma terra que ingenuamente imaginava
bordejada de coqueiros e repleta de casarões senhoriais (locupletados, por sua
vez, de cristos indo-portugueses e contadores carregados de porcelanas da
China) alternados com igrejas. E com mar e rios por todo o lado. Como vim a
perceber, algumas destas realidades existem efetivamente… no entanto, digamos
assim, não da forma que eu imaginava. Estava eu, deste modo, a braços com uma
pontinha de apreensão quando, ao pôr o pé em Dabolim, me senti – talvez
incongruentemente, talvez por desespero, talvez porque tenha mesmo ficado refém
de alguma forma dos fumos desta Índia
– absolutamente confortável, como que entrando em casa há muito conhecida. E assim
prossegui rumo ao táxi (excelente, a ideia dos pre-paid!), ao longo do percurso que nos separava de Pangim – o
qual continua, com escassos relances de paisagem ainda belos, entre os quais a
ilha de S. Jacinto, feioso, desordenado e bastante sujo –, reconhecendo
paragens e, também, os cheiros e o magnífico calor desta terra. Nos Afonsos,
fui otimamente recebido – graças aos bons ofícios do infatigável Delfim, cujo
dinamismo torna a vida dos portugueses que gostam e desejam vir a Goa muito
mais branda – pela Jeanette (a qual, lembrando-se de mim quando estava mais
gordo, não me reconheceu à primeira) e apreciei logo de imediato o quarto
amplo, espaçoso e limpo (com wc e, para minhas delícias, janela de carepas),
agora com uma novidade: ar condicionado. Pressurosa, a Jeanette logo o ligou e
explicou-me o funcionamento da máquina, e lá ficou a dita funcionando, enquanto
eu desemalava o que viera de Portugal. Vai
ser excelente à noite!, pensei.
Pois
bem… não foi! E porquê? Abra-se, antes de prosseguirmos, um breve parêntesis,
para frisar que eu ADORO calor. Mais do que aquelas pessoas que dizem, de forma
um tanto anódina, preferir o calor ao
frio, eu – e, aí, a par da minha mana, seguimos fielmente o nosso Pai, que
é do mesmo modelo – vivo mesmo muito bem com calor. Melhor dizendo: eu vivo
sobretudo bem com temperaturas altas. Trabalho melhor, sinto-me mais
bem-disposto, vejo o mundo em tons risonhos, e não tenho, em regra, especiais
dificuldades em concentrar-me ou em descansar (talvez seja em virtude deste comportamento
meridional – e aí já sem ser acompanhado por aqueles meus parentes – o gostar
tanto de acordar cedo e da alvorada, e o achar muito agradável, sempre que
possível, fazer uma meia hora de sesta depois do almoço). Como, aliás,
poderíamos nós sobreviver em Coimbra – ou, pelo menos na Coimbra de outrora,
onde os Verões abrasavam? Em compensação, nunca me dei muito bem com
ar-condicionado. Faz-me um bocado de dor de cabeça, entope-me o nariz, fico com
frio… uma seca, que talvez (quem sabe?) se deva ao facto de eu jamais ter tido
grande contacto com ambientes refrigerados desta forma.
Pois
bem… deitei-me com o ar condicionado ligado, estranhando o ter de dormir (foi a
primeira, e creio que última, vez) em Goa com um lençol e um cobertor (!!). Estava, porém, de tal forma cansado que me
virei para o lado e assim fiquei, como uma pedra. Mas uma “pedra Cabral” –
dessas que tem os genes do meu Pai – não resiste bem, já o vimos, a baixas
temperaturas e, umas três horas e meia volvidas, lá acordo eu com uma
desagradabilíssima sensação de frio, associada a uma fina dor-de-cabeça.
Obviamente, a primeira coisa que me veio à cabeça, depois de puxar o cobertor e
o lençol para o queixo, foi Mas quem é
que é o idiota que tem FRIO em Goa em março, ainda por cima em plena vaga de
calor?!? O que fazer, então? Os “ses” começavam a acotovelar-se na minha
cabeça: se desligar o
ar-condicionado, fico certamente sem frio e sem dor de cabeça (o que é bom!),
mas o quarto não se tornará numa fornalha demasiado incandescente até para mim?
Mas…e se eu abrir a janela, como fiz
toda a vida, até porque vi que ela tem uma rede mosquiteira? Hummmm… mas e se a rede tiver algum buraco (lá vou eu
investigar a dita rede, que me parece perfeita…contudo, e se me passou algum buraco à revista, e entra por lá qualquer
bicharoco mortífero?). E se recorrer à
tradicional ventoinha? (ligo-a, e também acho que fica excessivamente fresco).
Enfim… os que me conhecem imaginam bem o rosário de hipóteses e conjeturas que
me passaram pela mente e os milhentos cenários que desenhei, para acabar sempre
num impasse começado pelo inevitável e irritante e se? Recorri, neste transe – que ainda acabava, a continuar, por
me garantir uma encantadora constipação – a um meio que admito ser pouco
autónomo, mas que se revelou extremamente eficaz: pais, o que acham melhor fazer? Os meus progenitores, cientes da
minha patética e atávica fixação em fugir dos mosquitos eventualmente
portadores de malária (dessa, creio que nem o apreciar tanto esta terra jamais
me livrará) e achando certamente que eu deveria era deitar-me e descansar,
aconselharam-me de forma certeira e eficaz: faz um chá, toma um brufen (bye, dor de cabeça!), abre a janela (tem rede, não faz mal, não
sejas palerma, mas se ficares seguro aplica um pouco mais de repelente) e
DORME!
Este
é, aqui chegados, um caso em que se pode dizer: ainda bem que há pais! Embalado
pelo cheiro da noite, pelo calor e pelos sons distantes, recuperei outra parte
do meu sono!
Tudo
isto para concluir que, afinal, não me dou bem com o ar-condicionado! Sou, quem
sabe, talvez demasiado primitivo (ou, mesmo, pouco civilizado), mas aquilo
faz-me confusão. Uma janela aberta guarnecida com uma rede eficaz e o calor dos
trópicos são, para mim, um indutor de sono muito mais eficaz! ;)
Já
se ouve o cântico final, num concani não muito afinado…a missa em S. Sebastião
acabou e o dia começa nesta Goa pacata, quente, que é católica e trata os
portugueses como uns primos distantes que, de vez em quando, gostam de fazer
uma visita. É altura de saltar para o duche e, em seguida, tomar o
pequeno-almoço no terraço. Depois, há muito para fazer! Bom dia para todos
desde a outra Lisboa! J
2 Comments:
Bom dia!
Ainda bem que a viagem correu bem e que já te encontras instalado. Agora vê lá, não comeces já a comer batatinhas de arraial ao pequeno almoço, que o teu organismo, com a sua atual dieta, é capaz de não se dar bem.
Diverte-te!
E o que será mais estranho? Alguém conseguir ter calor em Goa, ou bastar abrir a janela uns breves momentos, para se anular todo o efeito do ar condicionado? :P
Diverte-te entre os teus papeis velhos :)
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