LUÍS E O MAINATO
Se
eu vivesse efetivamente no século XIX
(Deus me livre de tal coisa!, apesar de, na verdade, passar boa parte dos meus
dias a pensar em episódios oitocentistas e a “dialogar” e procurar compreender
a gente daquelas eras) e, porventura, me perguntassem quais seriam os primeiros
10 conselhos que daria a alguém que se pretendesse instalar em Goa para aqui
passar uma temporada, certamente diria:
-
Saiba V.Ex.a que deve tomar, quanto
antes, um mainato. Mas tenha cuidado com o que escolhe. Se V. Ex.a nisso vir
algum préstimo, posso porém aconselhar um ou outro cujos serviços me parecem
particularmente recomendáveis. Os mainatos são colaboradores preciosos e
(talvez também por isso) poderosos: há que saber tratá-los bem.
Ora,
apesar de mais de um século depois muitas coisas terem – felizmente! –
conhecido profundíssimas alterações, a importância de se escolher um bom mainato em terras de Goa mantém-se. Há
anos, quando cá vim pela primeira vez e me instalei na remota e piscatória
Betim, depressa contratei (não se veja nisto qualquer assomo de pompa, pois a
modéstia da minha vida naquela terra contrastava fortemente com qualquer assomo
de vaidade) a Nati para me dar uma ajuda na limpeza dos meus “salões” e um mainato para me ir lavando a roupa. Diga-se desde já, que, dos dois, a Nati depressa se revelou a
escolha mais acertada : o mainato era
homem de humores, que ora estava ora não estava, ora cumpria os prazos ora os ignorava, ora desaparecia (e certa vez desapareceu semanas, alegadamente para ir
passar férias a Hyderabad, conservando alguma roupa da minha Mãe, que,
fiando-se na palavra filial, lha confiara e só com alguma dificuldade a
recuperou) ora mandava ir trabalhar em seu lugar qualquer membro da infindável
parentela que o assessorava, expressando-se num inglês pior do que básico e
marcando as minhas camisas com enormes “PPP” a esferográfica, os quais pareciam
avivar-se à medida que, com as lavagens, as cores das mesmas iam esmaecendo.
Eu, que gosto de cores fortes (pelo que são geralmente as que uso), cheguei a
Goa com um lote de camisas e pólos vermelhonas, azulonas, claramente verdes,
etc… e retornei, passados três meses e meio, com um guarda-roupa composto por
peças em modestos tons beges!
Quando
me mudei de Betim para Pangim – e desde então não há, a meu ver, bairro mais
ridente nesta terra do que as Fontainhas, de onde aliás escrevo o presente post – abandonei sem remorsos o meu mainato rural para o substituir por um
congénere mais urbano que depressa encontrei a dois passos de casa, à entrada
de S. Tomé, numa das lojas do piso térreo do solar dos Costa Campos.
Entendemo-nos bem e rapidamente. O mainato
de S. Tomé era um rapaz novo, mais constante do que o das margens bardesanas,
melhor cumpridor de prazos e (comparativamente) brando quer com as lavagens que
empalidecem quer com as marcas que apunha na roupa que lá deixava. Em regra,
estava na loja (mas esse está longe de ser um aspeto que nós,
portugueses, possamos criticar!) uma meia hora mais tarde do que devia e
terminava a jornada um tanto aquém do anunciado (mas depressa qualquer um dos
seus clientes se apercebia que era apenas necessário operar uma pequena mudança
de horário: em vez de partir do princípio que mantinha as portas abertas das 8
às 9, como anunciava, era mais seguro considerar que o fazia das 9 às 8); no entanto, rarissimamente se enganava nos dias de entrega de roupa e trocava as peças dos
diferentes clientes. E era simpático. Por tudo isso, quando agora tornei a Goa,tornei a recorrer aos seus serviços e, gradualmente, tenho vindo a
recordar o decálogo do mainato –
conjunto precioso de regras que convém não infringir, sob o risco de se irritar
ou entristecer o dito personagem e ver-se, em consequência, sem um par de
camisas importantíssimo ou com uma chamuscadela extra do ferro na manga de uma
delas. Ei-lo:
1. o
mainato JAMAIS contradiz claramente o
seu cliente. Na verdade, reproduz apenas (ou, noutros casos, limita-se a anuir
vagamente) aquilo que o cliente deseja ouvir. Por tal, seja sobretudo um bom
ouvinte e procure perceber mais do que dar ordens ou emitir opiniões tontas;
2. o
mainato JAMAIS trabalhará
apressadamente a pedido do seu cliente. Não adianta dizer que precisa
desesperadamente de um par de calças ou de uma dada t-shirt para a hora x. Se der, o mainato tê-las-á pronta; se não
conseguir, paciência;
3. leve
sempre dinheiro trocado para pagar; nem lhe passe pela cabeça tentar saldar uma
pequena dívida de 30 rupias (preço da lavagem e passagem a ferro de um par de
camisas) com uma nota de 500. Não só é ridículo da sua parte, como até pode
parecer prepotente e embaraçoso para o mainato;
4. JAMAIS
questione diretamente o mainato sobre
como é que a roupa é lavada. É verdade que parece ser mais ou menos claro, pelo
menos por vezes, não haver muita intervenção de água e sabão no processo. Mas
porventura terá conhecimentos suficientes para poder afirmar que, nesta parte
do mundo, a lavagem “tradicional” com água e sabão é a mais eficaz?
5. JAMAIS
lamente a perda de cores da roupa. Esse é um dado adquirido, que deve ter
presenta antes de vir para a Índia e
recorrer aos serviços do mainato;
6. não
lamente a qualidade da passagem a ferro! Eu tenho imenso respeito pelos
serviços do meu mainato nesse domínio,
apesar das camisas ligeiramente chamuscadas: se me pusessem aquele ferro
primitivo que ele usa (bom, na verdade, se me pusessem qualquer ferro de engomar…) nas mãos, o resultado seria 70 vezes
pior;
7. não
pressione o seu mainato a passar a
roupa antes de ele considerar estar a mesma em condições. Caso contrário pode
receber as peças engomadas, mas encharcadas! E sabe o que acontece aos
tecidos húmidos nestes climas, não sabe?
8. não
vocifere contra as marcas que o mainato apõe
na sua roupa, a fim de as identificar. Pode, naturalmente, negociar as dimensões das mesmas, bem como o lugar onde ele as
insere (nas etiquetas é a melhor sugestão, a meu ver), mas tenha sempre
presente que é melhor uma camisa marcada do que uma camisa trocada!
9. não
pretenda JAMAIS saber onde é a sua roupa guardada antes de a mandarem lavar.
Provavelmente, fica num canto pouco aliciante da loja que é melhor nem sequer
conhecer;
10. finalmente,
não se esqueça que um mainato pode ser
(na verdade, acho que deve ser) um
associado precioso. Não estou, com isto, a sugerir que se torne no melhor amigo
dele, nem que vão beber uma cerveja juntos; no entanto, grave na sua cabeça que
de uma relação de amistosa cordialidade nascem sempre frutos benéficos!
Se
seguirmos este decálogo – o que é mais simples do que parece à primeira vista –
está ultrapassada uma das dificuldades do quotidiano em terras estranhas.
Porque, lavada com mais ou menos água, engomada com maior ou menor primor e
marcada com intensidade ou discrição, poucas sensações há tão reconfortantes
como vestir uma camisa limpa!
1 Comments:
:)
nada como ser sempre simpático e saber estar onde quer que estejamos!
só não percebi bem a parte de não gostares de roupa bege ahahah
e adorei a placa! é mesmo de Goa?
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