RESISTÊNCIAS
Tal
como, certamente, terão feito as suas antecessoras desde há muito, todos os
fins de tarde, em Pangim, as senhoras da família Mhamai Kamat – as senhoras Camotins, como eram outrora (e
aportuguesadamente) chamadas – reúnem-se sentando-se numa fiada de umas cinco
ou seis cadeiras dispostas em frente de uma das portas do grande – mas
desgracioso – e antigo edifício que tradicionalmente alberga a morada da
estirpe.
Durante a anterior administração, quando assinava Camotim, esta
linhagem soube tornar-se poderosa e, apesar de se ver obrigada a medrar numa
terra em que o hinduísmo que professava não constituía o mais eficaz dos
cartões-de-visita, riquíssima. Na Goa de outrora, onde os mercadores hindus
funcionavam quase invariavelmente como bancos particulares disponíveis ao
empréstimo de capitais (em troca de um juro confortável) a reinóis, descendentes e naturais a braços com aflições
financeiras, os Camotins – e desde logo aqui se espelha o seu ascendente – faziam-no
ao próprio Estado. Outro dos reflexos desta (consequente) relação privilegiada
com o poder é a localização do casarão familiar, em parte fronteiro ao próprio
palácio do Idalcão, onde o governo encontrou sede quando se determinou a
transferência da capital desta terra que nos alberga para Pangim.
Na Goa atual,
já sem vice-reis endividados nem governadores e desembargadores reinóis, e dando corpo a um lógico e
saudável ciclo de renovação e de agentes e privilégios, os agora Mhamai Kamat perderam praticamente todo
o antigo esplendor, que andava associado à aura de riqueza e proximidade dos
centros de decisão – e disso se parece ir lamentando o venerando edifício
familiar, que, modelar enquanto exemplo do joint
family system em Goa, se esboroa um pouco mais a cada ano que passa. Hoje,
os Mhamai Kamat – dando mostras,
afinal, de ainda manterem alguma da capacidade de adaptação e das habilidades
ao nível do marketing que são
apanágio de qualquer grande família comerciante – também vivem das memórias dos
tempos em que eram Camotins: o seu notável arquivo acha-se no XCHR e é estudado
por todos quantos gostam e se dedicam à história de Goa, e são publicados
regularmente livros sobre o passado da linhagem. Assim, garantindo a permanência
do seu legado e frisando a importância do seu passado, procuram conservar parte
do antigo fulgor.
No entanto – e mesmo eu, que ando sempre num afã em prol da
conservação de todos os vestígios de outrora, consigo perceber isto (talvez
por, lá no fundo, segundo diz o meu progenitor, ser um burguesão) –, tal opção cobra forçosamente uma fatura pesada: não
há mal nenhum (antes pelo contrário, na minha ótica) em mantermos a memória da
nossa identidade; no entanto, devemos fazê-lo de forma pró-ativa, de molde a
usá-la em benefício de progressão no futuro, não enquanto travão que nos
permita, apesar dos ventos soprando em sentido contrário, resistir às
novidades. Isto é, creio que o sensato é mesmo fazê-lo enquanto investimento, não enquanto resistência. E é de resistências –
digo-o eu, que nada percebo das dinâmicas hindus de Goa e nem sequer falo
concanim (ou uma das versões do concanim, pois a língua, à semelhança do Estado
que a alberga, está longe de ser uniforme, desdobrando-se antes num leque de
variantes conforme castas, credos, origens que fazem cabelos brancos a qualquer
neófito) – que sempre me recordo quando, pelo menos uma vez por dia, passo pelo
casarão Camotim. No meio do bulício relativo (sempre se está na Índia) da zona
da cidade onde se acha implantado – rodeado de serviços administrativos,
pequeno comércio e a habitual confusão de trânsito provocada pela exigente
trindade ausência de passeios em condições/ condutores demasiado temerários/
gente que constantemente se acotovela ao longo das artérias e se lança para a
rua tentando cruzá-la, entre os constantes apitos e sirenes que (desde a mais
caquética bicicleta ao skoda – porquê
tantos skodas em Pangim, hoje?? –
mais reluzente) a todo o momento ferem o ar – a Casa Camotim assume um semblante de relíquia de outras eras. Se é
relíquia chorosa de dias de maior abastança, não sei… mas é certo que, a meu
ver, não se consegue apartar suficientemente de uma nuvem de passadismo que
nada tem a ver com pujança comercial.
Talvez por isso não saiba durantes
quantos mais anos – já nem falo, prudentemente, em gerações! – as senhoras Camotins virão, depois das
horas de calor mais inclemente, receber a brisa diária ocupando as cadeiras
que, em pose praticamente inalterável, se perfilam diante de uma das muitas
portas do seu rés-do-chão. Desta forma – reservada e com algum distanciamento,
em atmosfera fresca – vão-se mantendo a par do que se passa em seu redor.
Mas
será que tanto basta? Chegará o procurarmos estar – enquanto recatadamente nos
sentamos num ambiente doméstico que certamente nos é confortável – informados
do que, no buliçoso mundo de lá fora, parece ir acontecendo? Creio bem que não,
pelo que mantenho algumas dúvidas sobre se os vindouros transeuntes das ruas de
Pangim, daqui a uma vintena ou trintena de anos, continuarão a disfrutar do
estranho privilégio de observar, ainda que de relance, as senhoras Camotins enquanto estas, refasteladas, os observam a eles!
1 Comments:
skodas? pode ser mais um argumento válido para convencer o Pai :)
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