Friday, March 15, 2013

RESISTÊNCIAS


Tal como, certamente, terão feito as suas antecessoras desde há muito, todos os fins de tarde, em Pangim, as senhoras da família Mhamai Kamat – as senhoras Camotins, como eram outrora (e aportuguesadamente) chamadas – reúnem-se sentando-se numa fiada de umas cinco ou seis cadeiras dispostas em frente de uma das portas do grande – mas desgracioso – e antigo edifício que tradicionalmente alberga a morada da estirpe. 
Durante a anterior administração, quando assinava Camotim, esta linhagem soube tornar-se poderosa e, apesar de se ver obrigada a medrar numa terra em que o hinduísmo que professava não constituía o mais eficaz dos cartões-de-visita, riquíssima. Na Goa de outrora, onde os mercadores hindus funcionavam quase invariavelmente como bancos particulares disponíveis ao empréstimo de capitais (em troca de um juro confortável) a reinóis, descendentes e naturais a braços com aflições financeiras, os Camotins – e desde logo aqui se espelha o seu ascendente – faziam-no ao próprio Estado. Outro dos reflexos desta (consequente) relação privilegiada com o poder é a localização do casarão familiar, em parte fronteiro ao próprio palácio do Idalcão, onde o governo encontrou sede quando se determinou a transferência da capital desta terra que nos alberga para Pangim. 
Na Goa atual, já sem vice-reis endividados nem governadores e desembargadores reinóis, e dando corpo a um lógico e saudável ciclo de renovação e de agentes e privilégios, os agora Mhamai Kamat perderam praticamente todo o antigo esplendor, que andava associado à aura de riqueza e proximidade dos centros de decisão – e disso se parece ir lamentando o venerando edifício familiar, que, modelar enquanto exemplo do joint family system em Goa, se esboroa um pouco mais a cada ano que passa. Hoje, os Mhamai Kamat – dando mostras, afinal, de ainda manterem alguma da capacidade de adaptação e das habilidades ao nível do marketing que são apanágio de qualquer grande família comerciante – também vivem das memórias dos tempos em que eram Camotins: o seu notável arquivo acha-se no XCHR e é estudado por todos quantos gostam e se dedicam à história de Goa, e são publicados regularmente livros sobre o passado da linhagem. Assim, garantindo a permanência do seu legado e frisando a importância do seu passado, procuram conservar parte do antigo fulgor. 
No entanto – e mesmo eu, que ando sempre num afã em prol da conservação de todos os vestígios de outrora, consigo perceber isto (talvez por, lá no fundo, segundo diz o meu progenitor, ser um burguesão) –, tal opção cobra forçosamente uma fatura pesada: não há mal nenhum (antes pelo contrário, na minha ótica) em mantermos a memória da nossa identidade; no entanto, devemos fazê-lo de forma pró-ativa, de molde a usá-la em benefício de progressão no futuro, não enquanto travão que nos permita, apesar dos ventos soprando em sentido contrário, resistir às novidades. Isto é, creio que o sensato é mesmo fazê-lo enquanto investimento, não enquanto resistência. E é de resistências – digo-o eu, que nada percebo das dinâmicas hindus de Goa e nem sequer falo concanim (ou uma das versões do concanim, pois a língua, à semelhança do Estado que a alberga, está longe de ser uniforme, desdobrando-se antes num leque de variantes conforme castas, credos, origens que fazem cabelos brancos a qualquer neófito) – que sempre me recordo quando, pelo menos uma vez por dia, passo pelo casarão Camotim. No meio do bulício relativo (sempre se está na Índia) da zona da cidade onde se acha implantado – rodeado de serviços administrativos, pequeno comércio e a habitual confusão de trânsito provocada pela exigente trindade ausência de passeios em condições/ condutores demasiado temerários/ gente que constantemente se acotovela ao longo das artérias e se lança para a rua tentando cruzá-la, entre os constantes apitos e sirenes que (desde a mais caquética bicicleta ao skoda – porquê tantos skodas em Pangim, hoje?? – mais reluzente) a todo o momento ferem o ar – a Casa Camotim assume um semblante de relíquia de outras eras. Se é relíquia chorosa de dias de maior abastança, não sei… mas é certo que, a meu ver, não se consegue apartar suficientemente de uma nuvem de passadismo que nada tem a ver com pujança comercial.
Talvez por isso não saiba durantes quantos mais anos – já nem falo, prudentemente, em gerações! – as senhoras Camotins virão, depois das horas de calor mais inclemente, receber a brisa diária ocupando as cadeiras que, em pose praticamente inalterável, se perfilam diante de uma das muitas portas do seu rés-do-chão. Desta forma – reservada e com algum distanciamento, em atmosfera fresca – vão-se mantendo a par do que se passa em seu redor. 
Mas será que tanto basta? Chegará o procurarmos estar – enquanto recatadamente nos sentamos num ambiente doméstico que certamente nos é confortável – informados do que, no buliçoso mundo de lá fora, parece ir acontecendo? Creio bem que não, pelo que mantenho algumas dúvidas sobre se os vindouros transeuntes das ruas de Pangim, daqui a uma vintena ou trintena de anos, continuarão a disfrutar do estranho privilégio de observar, ainda que de relance, as senhoras Camotins enquanto estas, refasteladas, os observam a eles!


1 Comments:

At 3:20 AM, Blogger Joanight said...

skodas? pode ser mais um argumento válido para convencer o Pai :)

 

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