ADEUS 405!
É hoje que – terminada
a temporada de exames, com as clássicas pressões das provas para corrigir e
notas para lançar (embora haja sempre lugar a descobertas apesar de tudo
interessantes, designadamente quando o prof. tem de se armar em Champpolion e
procurar, quantas vezes em vão, um sentido em pérolas literárias do absurdo
como “verdade empírica que segue apenas
diretrizes jurídicas, pelo que dogma (verdade)”!!!), tudo entremeado com
dúvidas (há que admitir, por vezes bastante tontas ou, mesmo, incompreensíveis)
dos alunos que, a meia dúzia de dias do final do ano, descobem que ainda tinham
metade das ucs para fazer, e com direito à enxaqueca da praxe (parece que já
passou! Uf!) – abandono o nº 405 da residência de Leiria, ou seja, aquilo a que
eu chamo, atendendo à exiguidade do espaço (diretamente proporcional ao
conforto, todavia), a minha “casinha” entre-Liz-e-Lena.
Já habitava entre estas
quatro paredes – onde se acha uma pequena cozinha, um “open space”, um (micro, micro, micro) “walking closet” (como alguém lhe chamou, quando me mudei) e um wc
– há três anos, e muitas foram os dias e as noites que aqui passei. Costumo
dizer, convictamente, que, se não fosse este refúgio leiriense, a minha
adaptação à cidade, onde já conheço uma boa meia dúzia de espaços e gentes,
teria sido muito mais difícil e espinhosa! A genial ideia de, numa residência
virada sobretudo para albergar alunos, criar uma ala votada para acomodação de
professores locais (no sentido de portugueses) e/ou visitantes, partiu do IPL,
para o que aproveitou confortabilíssimas instalações existentes no centro da
cidade, a dois passos da Marquês de Pombal. Criava-se, assim, uma alternativa a
outra bela ideia do Politécnico, esta direcionada para estadias mais breves e
pontuais: a Pousadinha. No entanto (e talvez por as minhas temporadas em Leira
não serem, em regra, breves nem pontuais), nunca me consegui adaptar tão bem à
Pousadinha (que conheci primeiro) quanto à residência da Marquês. Muito menos
central, a meu ver menos confortável, nomeadamente por ser tão impessoal, com
funcionários menos dedicados, e um funcionamento que, por vezes, não era
excelente (lembro-me bem do ridículo que era chegar mais tarde e ter de ir
pedir a chave, não havendo ninguém para no-la entregar). Não, a Pousadinha não
era do meu agrado… Já esta residência bem localizada e (dentro das
contingências locais) mais urbana, a dois passos de tudo e servida por
funcionários gentis, me cativou desde o início, e em qualquer uma das suas
versões. Digo isto porque, no decorrer do, apesar de tudo curto, período em que
cá passo parte da semana (ou seja, destes três anos), já conheci duas
gerências: há um ano, o IPL optou por passar a gestão do empreendimento – que,
com a nova administração, ganhou novo nome e novos funcionários (que em nada
desmerecem os anteriores, os quais já tinham alcançado uma pontuação elevada
com base nos meus critérios muito exigentes e apertados). Agora, a gestão cabe
ao Eric & C.a, sendo que não deixou, também, de ser interessante acompanhar
o primeiro ano desta novel pequena empresa.
Ao longo destes três
anos, vivi bastante no 405: corrigi centenas e centenas de frequências na
secretária em que escrevo este post (de
direito da família, introdução ao direito, direito do urbanismo, introdução à
administração pública, direitos reais, sociologia jurídica…), e outras tantas
de relatórios. Aqui queimei pestanas e ganhei cabelos brancos a “marrar”,
semana após semana, com todo o afinco possível, direito europeu. Aqui desenhei
um pouco; aqui pensei e escrevi muito e muito sobre Goa, o seu direito e as
suas elites; aqui compus meia dúzia de posts para este blogue e desesperei com
o mau sinal da net. Houve momentos de
angústia (não só devido ao direito europeu!), desde logo potenciados pela minha
clássica propensão para a hipocondria (ao longo destes três anos, devo ter
pensado um par de vezes que me finaria entre as “minhas” paredes da av.
Humberto Delgado), mas muitos mais de satisfação. Por um lado, comecei a
conhecer melhor, primeiro, a residência, depois, a rua, depois a avenida,
depois a cidade, e estabeleci excelentes relações de vizinhança por todas estas
paragens (desde o balcão onde entrego e recebo as chaves, ao café/padaria com
os seus excelentes pães chamados “brasileiros” e ótimas sopas diárias, à
frutaria da Gina, à farmácia Sanches, às livrarias e papelarias locais, à
biblioteca Afonso Lopes Vieira, ao Clube de Ténis, onde tanto gosto de ir
treinar duas vezes por semana, à câmara, à Lusiclara, onde, por indicação de
“gente municipal”, comecei a comprar aquelas que são, efetivamente, as melhores
brisas desta terra, e excelentes bolos secos, sendo atendido por uma família
amabilíssima, ao sapateiro que me remenda, de forma milagrosa, “rombos”
impossíveis nas sapatilhas, etc etc). Por outro, houve momentos marcantes, aqui
passados: algumas boas notas obtidas, alguns momentos épicos na edição das
“Famílias de Seia” (foi na “casinha” que passei a limpo as dedicatórias, e
daqui eu e a Alex expedimos quilos e quilos de exemplares do livro, trazidos às
pazadas para o meu quarto graças a um carrinho de mãos emprestado pelo Eric),
meia dúzia de aventuras culinárias (como o “rebentamento no micro-ondas”, ou o
“milagre do puré instantâneo não demasiado liquefeito”, uma proeza conseguida a
meias com a Marta João, ainda que a muitos quilómetros de distância), alguns
sustos (como quando acordei, a meio da noite, a sonhar que estava junto de um
incêndio e, realmente, começou a cheirar imenso a queimado, soou o alarme e a
doida da espanhola bêbada do andar de baixo, que tinha deixado queimar leite,
começou aos gritos “fuego, fuego!”) e
outros tantos momentos de boa-disposição. Aqui conheci professores e estudantes
brasileiros e chineses. Entre os primeiros, havia um que (pasme-se!) dominava
muito bem a história da vida de um velho tio botânico que, em tempos da corte
no Brasil, ficou célebre por ter descoberto a “quina brasiliense” (genes
herdados pela minha Mana bióloga, certamente!); entre os segundos, é impossível
não me lembrar da chinesa que eu achava que passava os dias a trabalhar, até
dando conta disso ao meu Pai, numa das vezes que ele por cá passou (“O Pai já viu o que ela estuda? É uma coisa
brutal, sempre à secretária!”). O meu progenitor desconfiou de tanta
dedicação, e da pose um tanto hirta à secretária, olhou-a de outro ângulo, e
descobriu que, afinal… o que ela fazia era ver filmes atrás de filmes! Aqui
tive, durante a primeira fase de gerência, de ralhar com alguns alunos mais
indisciplinados, graças à minha voz grossa e ao facto de não ser anão (“Vocês portam-se mal, e nós chamamos o prof!”
parecia, segundo mais tarde me disseram, ser uma ameaça de vez em quando
esgrimida face a um aluno mais embirrento). E por aqui passaram vários livros
que li, agora acomodados em Coimbra, sendo que nos recantos do 405 repousaram
igualmente, ao longo deste período, resguardadas e bem arrumadas, meia dúzia de
peças curiosas e antigas, no seu trânsito até ao rumo final: a casa PLCO.
Ao longo destes três
anos, o 405 foi ganhando alguma alma e personalidade: coisas como a minha manta
aos quadrados a servir de colcha, livros e jornais um pouco por todo o lado
(mas tudo relativamente arrumado, ok?), uma “baixela” própria em tons de verde
alface (desde pratos e talheres a tachos), meia dúzia de rabiscos a
“demonstrar” que o espaço é de LCO, potes com lápis Giotto, uma faca de
manteiga de Poiares, uma foto do mais recente encontro PL na Foz do Arelho
ajudam a caracterizar o espaço. Coisas – todas elas – que, na verdade,
facilmente se movem, prontas a encher outro espaço leiriense.
É hoje que volto costas
ao 405. A política da residência, para o ano que vem (sim, para mim, os anos
começam, efetivamente, em Setembro) é o abandono progressivo desta ala, em
abono da que lhe é fronteira. Por isso, devo manter-me no mesmo piso, mas
mudo-me para o 407. É um espaço em tudo semelhante ao que agora abandono, só
que ao contrário. Ou seja, sentir-me-ei, no máximo, um pouco como a Alice, isto
é, “do outro lado do espelho”.
Há um par de dias
perguntavam-me: “Achas que vais ter pena
de deixar o 405?”. A réplica veio pronta (creio que para alguma surpresa do
interlocutor): “Na verdade, nenhuma.
Novas etapas exigem novos espaços”. E há que ter sempre presente aquela
máxima tão verdadeira: Se fizeres o que sempre fizeste, terás o que sempre
tiveste. Isso chega-te? Bom, para mim, alma burguezona que se compraz sobretudo
com o “ir mais além”, não me chega, definitivamente.
Por isso, adeus 405!
Foi um prazer conhecer-te! De ti levarei excelentes recordações e a memória –
afinal, há UMA coisa de que irei ter saudades – da vista fantástica para a ermida
da Srª da Encarnação, que me acompanhou de perto ao longo destes anos TÃO
cheios!
2 Comments:
quem sabe se o 407 não tem ainda melhor vista?
casulo rules!! :P
Que agradável surpresa a de descobrir este blog! Esperamos que o 407 inspire um novo post. Quem sabe pela nova vista?! ;)
Post a Comment
<< Home