SENHORA GORDA COM CÃO PEQUENO QUER ENTRAR
Ontem à noite, os utentes habituais das rotas Coimbra-Leiria e Leiria-Coimbra (na verdade, os que embarcam às 22 sem qualquer desejo de ir ter a Vila Real de Santo António, que é o verdadeiro término da jornada, que calcorreia, então, meio Portugal) tiveram o prazer de embarcar numa camio novinha em folha – com cheiro a novidade e tudo, e contrastando violentamente com os chaços velhos e nauseabundos que, por vezes (embora cada vez mais raramente), nos apresentam – e o incómodo (não há bela sem senão) de partir com 10 minutos de atraso. A dita demora deveu-se a uma senhora imensa, de busto generosíssimo, estrangeira mas certamente há muitos anos a viver em Portugal que, acompanhada por um filho franzino que lhe trazia as malas, transportava com desvelo uma carteira colorida. Confesso que, sem me preocupar com o assunto mais do que o contraste da larguíssima e agitada progenitora com o filho esquelético e de semblante calmo, numa primeira e ligeiríssima análise, pensei que tantas denguices com a carteira se deviam ao simples facto de ela ser nova, ou especialmente cara, ou do particular agrado da sua possuidora.
Cedo, porém, me desenganei, sobretudo quando a dita senhora – que estava à minha frente na fila para entregar o bilhete ao condutor – começou a discutir animadamente com o mesmo. De novo tenho de admitir que, nos primeiros minutos, ignorei por completo o assunto. Estava demasiado entretido a trocar sms com a minha mana, e quem costuma recorrer a estes meios de transporte ganha algum calo, que se traduz, designadamente, numa dose suplementar de paciência para aturar os passageiros malucos. Por isso, pensei “Mais uma!”, e continuei a combinar a jornada “rainho-santesca” de hoje à noite.
No entanto, e com a passagem dos minutos acompanhada pelo elevar das vozes, comecei a perceber o que pretendia a senhora gorda, com sua pronúncia carregada de rrrs. Na verrrdade, ela querrria levarrr consigo o seu cãozinho… o qual, afinal, estava na dita carteira, que, na realidade, não era carteira nenhuma, mas uma requintada bolsa-para-transporte-de-micro-animais-domésticos (e, observando bem, cedo constatei ter a mesma uns respiradouros laterais, por onde se divisava o focinho triste do bicho, o qual devia estar já um tanto enjoado com o balançar do meio de transporte que a dona tinha selecionado para a sua jornada, devido ao gesticular enérgico da mesma).
Travava-se um diálogo intenso:
- Mas eu querrrro levarrr o cãozinho comigo, na camioneta.
E replicava, com evangélica resignação, o motorista
- Mas, minha senhora, não pode, o regulamento não permite…
- Mas eu querrrro! – grasnava ela, com uma autoridade que ninguém lhe reconhecia
- Mas seu eu já lhe disse… Não depende de mim!...
- Se eu não levarrr cãozinho comigo prefirrro ficarrr cá
- A senhora é que sabe. Mas olhe que não sei se lhe devolvem o dinheiro do bilhete…
- E eu já tenho as malas no porão
- Tiram-se… o seu rapaz trata-lhe disso, não é, rapaz? (e fitou o filho, silencioso e magro, certamente com vontade de se afastar dali, e esquecer os dramas de sua volumosa mãe)
- Mas eu querrro irrr parra o Algarrrve!
- Então embarque!
- Com o cãozinho??
- Sim, com o cãozinho… mas o cãozinho vai no porão, juntamente com as malas.
- Mas isso serr horrível! Ele morrrerrr!
- Que ideia! Morre lá agora! Tantos fazem isso! E é o que manda o regulamento.
- Não querrrro!!!!
- A senhora é que sabe! Mas nós temos de partir, já estamos bem atrasados (o resto da fila, diga-se, já dava mostras de impaciência). Parte, ou fica?
- E se eu pagarrr?
- A mim? – replicou o condutor, genuinamente indignado – para quê?
- Parrra levarrr cãozinho…
- A senhora não percebe o que está a dizer! E não, eu não quero dinheiro nenhum!
- Eu pagarrr bem, e ninguém fica a saberrr – dizia a interlocutora, talvez esquecendo-se do tom que falava e do grupo que a rodeava.
- A senhora deixe-se disso! – cortou, agastado, o motorista
Foi nessa altura que a dona do cãozinho procurou adotar nova técnica. Compondo uma expressão triste e compungida, disse, num sussurro todavia audível:
- Vá lá, é um favorrrzinho que me faz… Um só favorrrzinho!
O motorista nem a quis mais ouvir.
Foi então que uma rapariga, que tinha ido acompanhar o namorado ao cais (um rapaz de ar indolente, mas que, suspeito, gostava de dar ares de “académico”) resolveu, sem ter nada a ver com o assunto, intervir na conversa, pondo-se do lado da senhora gorda. Agressiva, atirou logo ao motorista:
- Mas porque é que não deixa o cão ir??!!
E concluiu logo, precipitada e insensata:
- O senhor não gosta é de animais!
O homem respondeu:
- Ó menina, eu até tenho vários cães! O regulamento é que não permite. O cãozinho da senhora vai bem no porão, garanto-lhe. Não pode ir juntamente com as pessoas…
- Mas porquê?
- É o regulamento! – replicou, pela enésima vez, o motorista – Eu NÃO decido nada!
- Ora, não ligue tanto ao regulamento!
- Isso, isso, vamos fazerrr o que diz a menina! – apoiava a gorda.
- Não pode ser – explicava o homem – imagine que há alguém alérgico…
A pseudo-ativista vibrou com este dado novo, e reagiu prontamente:
- Pergunta-se já as pessoas, e elas que decidam. As pessoas é que mandam!
- Mas EU sou alérgico – contestava o motorista
- Problema fácil de resolver… fica longe do cão!
- Ora, deixem-se dessas coisas! Saímos daqui a 3 minutos, a senhora decida-se. Se quiser, vá ali falar com o meu superior.
É realmente incrível como esta senhora gorda, alguns anos depois de cá estar, percebeu, de forma tão tristemente esclarecedora, como muitas das coisas funcionam entre nós. Queria quebrar regulamentos, para levar a sua pretensão avante. Não seguiu, contudo, a via adequada: informar-se das condições de transporte de animais atempadamente e, caso desgostasse das mesmas, apresentar uma reclamação contra um tratamento que considera prejudicial aos animais. Em paralelo, podia até escrever um artigo para um dos periódicos da cidade, ou, mesmo, pensar em realizar uma petição. Não foi, porém, nada disto o que fez. Daria certamente muito trabalho. Recorrendo à chico-espertice que, por vezes, ainda nos surpreende em várias esquinas e salões deste país, escolheu o último momento antes da partida da camioneta, para, assim, contar com um elemento de pressão adicional face ao motorista, que tem horários a cumprir. O facto de estar rodeada de gente também lhe podia ser favorável – não raro surgem almas como a namorada-do-pseudo-intelectual – e os gritos e os salamaleques, os estremecimentos e as histerias ajudaram. Finalmente, a nojenta hipótese de pagamento de uma “taxa extra”, e o repulsivo recurso ao “favorzinho” – muito bem repelidos, um e outro, pelo condutor – constituíram uma perfeita cobertura de cerejas podres neste bolo rançoso.
Não vou negar que me parece cruel transportar cães num porão pouco arejado. Não creio ser uma solução sequer ponderável, para mais tratando-se de animais frágeis, como aparentava ser o da senhora gorda. Na verdade, não me afetava nada que a mesma colocasse a sua bolsa-para-transporte-de-micro-animais-domésticos no assento junto do seu. No entanto, aplaudo – e aplaudo energicamente – a postura do condutor. O regulamento, salvo casos excecionais e devidamente fundamentados, deve ser para cumprir. E as coisas não se decidem em cima do joelho, nem recorrendo a subornos torpes ou a histerias fáceis.
Por isso, não gostei de, a meio da viagem, depois de a senhora ter tido, durante menos de 3 minutos, uma conversa com o tal superior, de ouvir um ganido ligeiro, vindo de uma bolsa-para-transporte-de-micro-animais-domésticos que uma gorda sentada nos bancos da frente trazia junto de sim.
A senhora gorda com o cão pequeno entrou, é certo. Ainda bem para o cão, mas ainda mal para a senhora. Na verdade, a punição adequada teria sido ter sido o cãozinho transportado na camio (desde que longe dos alérgicos) e a sua tonta proprietária ficado em terra, ou ido no porão. Talvez assim percebesse que histerias, “luvas” e “favorzinhos” têm de ter os dias contados entre nós.
2 Comments:
não posso acreditar que o "superior" desautorizou o motorista e deixou entrar o cão. surreal!
Ainda bem que não sou a única com a mania das regras e dos regulamentos, Luís. E o que eu me passo quando as pessoas decidem não se sentar nos lugares marcados, inventando desculpas atrás de desculpas? A falta de civismo é um flagelo, mas há quem não entenda que a base da sociedade está no cumprimentos dos mais básicos deveres.
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