O Papa e os fatos de treino
Leio
que o Papa Francisco, numa interpelação que fez aos casais de namorados (ia
escrever jovens namorados, mas creio
bem que a juventude não é para aqui chamada), exortou no sentido de se procurar
evitar a cultura do provisório e de
não se recear o compromisso. Acho que em abstrato a generalidade das pessoas
está de acordo com o Papa. No entanto, não sei se esse é o principal problema
que ocupa a cabeça de pelo menos boa parte dos “casais não casados” (sejam eles
mais ou menos jovens) - e note-se que uso a expressão não casados de forma muito ampla – que conheço e que me rodeiam.
O
que responderia se me perguntassem qual considero ser o principal obstáculo que
se levanta nas relações da gente da minha faixa etária? Desconfio que
escolhesse a opção “medo do compromisso”. Na verdade, julgo passar-se precisamente o contrário: nos ambientes em que me movimento (são os que conheço, não posso
falar de outros) grande parte das pessoas deseja
ardentemente, por vezes até quase maniacamente
um compromisso.
Esta
vontade quase irreprimível alberga várias facetas – que me parecem ser todas elas
negativas.
Por
um lado, a maior parte das pessoas com quem me dou regularmente (e com quem
falo destes assuntos) já se sente suficientemente adulta para temer cair no
precipício do ficar sozinho para sempre.
E como teme essa pena infernal! Faz tudo para evitar resvalar para o caldeirão
fumegante da solidão!
Por outro, algumas dessas mesmas pessoas já se
creem “demasiado crescidas para acalentarem ilusões”. É uma consequência
tenebrosa que o passar dos anos provoca em muito boa gente: entorpece-as,
mata-lhes a vivacidade, acinzenta-as e contribui para que se cubram de um manto
de inexpressividade. E lenta mas inexoravelmente vai-as tornando mais pálidas,
mais planas, mais chatas. A conversa
torna-se secante, a falta de iniciativa é um grilhão e motivo de fuga para os
que a rodeiam, a incapacidade de perseguir sonhos e metas espanta antigos
conhecimentos. Ninguém normal (penso
eu) considera cativante passar o tempo a falar de banalidades relacionadas com
obras na casa, tretas acerca de um emprego insípido (o problema destes
desistentes é que por o serem em regra não arranjam trabalhos motivantes ou se
os arranjam conseguem transformá-los em algo de verdadeiramente soporífero) ou
comida. Deus meu! Salvo se forem cozinheiros de profissão (e eu tenho uma
grande amiga que o é, e até eu, o nabo culinário que conhecem, me deleito a
falar de experiências gastronómicas com ela), não falem constantemente de comida! Não façam dos vossos relatos de
fim-de-semana relatos gastronómicos enfadonhos. Não há nada mais narcotizante
do que conversas do género:
- Então como correu o
feriado?
- Ah, passou-se. Estava
cansado/a, fiquei por casa, em pijama. Mas fiz uma bavaroise excelente e grelhei trutas com couscous.
Mas
será que as pessoas não sabem que mesmo que tenham sido isto a que efetivamente
se dedicaram devem ter pelo menos a honestidade de mentir um bocadinho e não
contar a verdade em toda a sua feia crueza? Porque é que acham que me interessa
saber se (i) estavam ou não cansados
e (ii) usam ou não pijama e quando o
fazem ou que (iii) quero saber detalhes
das suas patéticas experiências culinárias? Isto lembra-me a moda (felizmente
ultrapassada) que gosto de chamar a loucura
dos macarons. Em dado momento da minha vida, grande número de conhecidos
descobriu que havia macarons e
começou a tentar cozinhá-los. Dia e noite, semana após semana, mês depois de
mês, só se falava em texturas, sabores e outras subtilezas dos macarons. Começava-se a falar num filme,
a discutir qualquer tema, a mandar uma graçola… e tudo acabava inevitavelmente
numa orgia de macarons!
Em
conclusão: as pessoas tornam-se menos idealistas, menos interessantes e muito
mais desesperadas. Ora, por acabarem por tomar consciência de terem passado por
esse processo tornam-se também menos exigentes. Têm perfeita noção de que
perderam parte considerável do seu potencial de atração (não falo de pessoas
burras, como é óbvio). Sabem muitíssimo bem que nem com vinagre se caçam moscas
nem com (exclusivamente) serões de macarons
e conversa banal se encontra gente diferente e cativante. Mas conformam-se. A que leva isto? A
que desejem loucamente e o mais rapidamente possível encontrar um compromisso. Atenção: não falo de almas
gémeas ou de companhias ideais: é mesmo de um compromisso, seja ele com quem
for, venha ele como vier. Não é a pessoa que me estimula e que admiro?
Paciência: é uma pessoa e assim eu
não fico sozinho/a.
Portanto,
creio que a mensagem do Papa não se aplica a todos os casais que conheço. E o
que será pior? Duas pessoas interessantes não se comprometerem numa relação
duradoura ou duas pessoas que se tornaram desinteressantes fazerem-no apenas
por receio e comodismo?
Cada
um tem a sua opinião, mas eu confesso que acho a segunda alternativa bastante
assustadora.
Não
consigo – não consigo mesmo –
imaginar o que é passar parte importante dos meus dias com alguém que considere
pouco estimulante ou que não admire profundamente. Isto desde logo por duas
razões. Por um lado, por eu ter um feitio desgraçado e certamente ir gastar metade
do tempo a odiar-me a mim mesmo por não ter querido ousar ir mais longe e a
outra metade a odiar a tal pessoa por não a considerar ao meu “nível” ou
(pior!) ao nível a que eu acharia que deveria ter ascendido caso não tivesse
soçobrado a meio do caminho. Por outro, por eu só me conseguir manter numa
relação a sério com alguém que considere admirável e que por isso mesmo me
estimule constantemente a dar o melhor de mim mesmo. E a sentir-me bem com
isso. Águas turvas e paradas nunca foram o meu ideal nem me motivaram. Pode ser
uma pessoa radicalmente diferente de mim, pode ter interesses opostos, pode ser
o que quiser – mas tem de ser um desafio. Um agradável desafio, certamente, mas
um desafio. E um desafio a longo prazo, sem meta à vista. O problema aumenta
quando pensarmos que não iria ser só eu quem sairia amachucado desse
relacionamento semiforçado. Há que ser franco: eu iria fazer transformar a vida
dessa outra pessoa num pesadelo.
Hoje
de manhã, quando estava a dar o meu passeio pré-cafézada e escalava o Cidral,
vi um casal de ar sorumbático da minha idade. Cada um envergava o seu triste
fato-de-treino e uma expressão ainda mais tristonha e plana. Note-se que não estou a falar dos arredores da cidade nem de
pessoas que se podiam facilmente etiquetar de “suburbanas”. Sei que muita gente
que conheço pensaria quem me dera ser um
deles, estar tão à vontade com alguém que não tenha de me esforçar: o
compromisso basta e segura tudo. Eu pelo contrário pensei: Deus me livre de algum dia na minha vida
chegar a tal situação. Quando alguém gosta
de outra não lhe vai reservar sobretudo o seu ar mais desmazelado, pois
não? Acho que devia fazer exatamente o contrário!
O
temor de ficar sozinho e a consciência de que se está a ficar cada vez mais
desinteressante pode ter uma outra consequência perniciosa: querermos acreditar
com toda a força que a pessoa Y é a certa para nós e tudo fazermos para o
conseguirmos demonstrar (sobretudo a nós mesmos). Até forçarmo-nos a ser o que
nós somos. Trata-se de um cenário ainda mais horripilante: para além de
conformistas e desinteressantes tornamo-nos num caricato pastiche. Conheço vários casos do género: são uma triste sucessão
de cenas macabras ou quanto muito verdadeiramente hilariantes.
Como
resolver então este dilema que se coloca a tantos de nós? Creio que com uma
dose generosa de amor-próprio. Se não formos interessantes e tivermos plena
noção desse facto, como podemos sequer ter a louca pretensão de encontrar
alguém que o seja? Portanto, toca a pôr os talentos a render! Ou como escreve
Pierre Van Breemen num texto curioso que me enviaram: “A aceitação significa que as pessoas com quem vivo me atribuem um
sentimento de dignidade, o sentimento que eu tenho da estima. Elas sentem-se
felizes que eu seja o que sou. A aceitação significa que sou livre de ser eu
próprio. A aceitação significa que, apesar da necessidade de crescer, esta não é
forçada. Eu não tenho necessidade de ser uma pessoa que não sou. (…) Quando se aprecia uma pessoa por aquilo que
ela faz, ela não é única, qualquer pessoa pode fazer o mesmo trabalho, e talvez
melhor do que ela. Mas quando se ama uma pessoa por aquilo que ela é, então ela
torna-se uma personalidade única e insubstituível”. Um bocadinho moralista
de mais? Talvez. Utópico? Pode-se argumentar que sim. Eu acho sobretudo
bastante sensato e aconselhável: para cada um de nós e para quem nos rodeia.
Não se pode estar com alguém que não nos conhece e não nos aprecia pelo que
somos. E que não apreciamos pelo que essa pessoa é. É cobarde e injusto para
todos os envolvidos.
Se
alguma vez virem alguém parecido comigo vestido de fato de treino num domingo de
manhã, com a barba por fazer, a debater as trutas grelhadas da véspera e obras
na lareira enquanto carrego um módulo de uma peça qualquer do Ikea, voltem a cara. De duas uma: ou me estraguei
por completo e cedi (como tantos) ao desespero de uma normalização tristonha –
e não mereço o vosso cumprimento – ou é uma vez mais aquele tipo irritante (o
meu gémeo desconhecido) que se diverte a fazer-se passar por mim aparecendo em
lugares onde eu dificilmente estaria. Sim, o tal que andava na gandaia na rua da
Matemática, que nunca mais acabava o
curso e que se passeava regularmente de autocarro!
3 Comments:
mau, mas afinal qual é o problema de falar de obras na casa ou transportar módulos do IKEA?! discordo em absoluto. aproveito para assumir que também já pensei em fazer macarons, mas ainda não passei à prática. prometo que não te convidarei para a degustação.
Eu tenho uma prima que me diz de vez em quando que "precisa de falar de tolices". Ela é um excelente exemplo de que a vida não se resume só a macarons! ;)
This comment has been removed by the author.
Post a Comment
<< Home