Sunday, February 23, 2014

O Papa e os fatos de treino

Leio que o Papa Francisco, numa interpelação que fez aos casais de namorados (ia escrever jovens namorados, mas creio bem que a juventude não é para aqui chamada), exortou no sentido de se procurar evitar a cultura do provisório e de não se recear o compromisso. Acho que em abstrato a generalidade das pessoas está de acordo com o Papa. No entanto, não sei se esse é o principal problema que ocupa a cabeça de pelo menos boa parte dos “casais não casados” (sejam eles mais ou menos jovens) - e note-se que uso a expressão não casados de forma muito ampla – que conheço e que me rodeiam.
O que responderia se me perguntassem qual considero ser o principal obstáculo que se levanta nas relações da gente da minha faixa etária? Desconfio que escolhesse a opção “medo do compromisso”. Na verdade, julgo passar-se precisamente o contrário: nos ambientes em que me movimento (são os que conheço, não posso falar de outros) grande parte das pessoas deseja ardentemente, por vezes até quase maniacamente um compromisso.
Esta vontade quase irreprimível alberga várias facetas – que me parecem ser todas elas negativas.
Por um lado, a maior parte das pessoas com quem me dou regularmente (e com quem falo destes assuntos) já se sente suficientemente adulta para temer cair no precipício do ficar sozinho para sempre. E como teme essa pena infernal! Faz tudo para evitar resvalar para o caldeirão fumegante da solidão!
 Por outro, algumas dessas mesmas pessoas já se creem “demasiado crescidas para acalentarem ilusões”. É uma consequência tenebrosa que o passar dos anos provoca em muito boa gente: entorpece-as, mata-lhes a vivacidade, acinzenta-as e contribui para que se cubram de um manto de inexpressividade. E lenta mas inexoravelmente vai-as tornando mais pálidas, mais planas, mais chatas. A conversa torna-se secante, a falta de iniciativa é um grilhão e motivo de fuga para os que a rodeiam, a incapacidade de perseguir sonhos e metas espanta antigos conhecimentos. Ninguém normal (penso eu) considera cativante passar o tempo a falar de banalidades relacionadas com obras na casa, tretas acerca de um emprego insípido (o problema destes desistentes é que por o serem em regra não arranjam trabalhos motivantes ou se os arranjam conseguem transformá-los em algo de verdadeiramente soporífero) ou comida. Deus meu! Salvo se forem cozinheiros de profissão (e eu tenho uma grande amiga que o é, e até eu, o nabo culinário que conhecem, me deleito a falar de experiências gastronómicas com ela), não falem constantemente de comida! Não façam dos vossos relatos de fim-de-semana relatos gastronómicos enfadonhos. Não há nada mais narcotizante do que conversas do género:
- Então como correu o feriado?
- Ah, passou-se. Estava cansado/a, fiquei por casa, em pijama. Mas fiz uma bavaroise excelente e grelhei trutas com couscous.
Mas será que as pessoas não sabem que mesmo que tenham sido isto a que efetivamente se dedicaram devem ter pelo menos a honestidade de mentir um bocadinho e não contar a verdade em toda a sua feia crueza? Porque é que acham que me interessa saber se (i) estavam ou não cansados e (ii) usam ou não pijama e quando o fazem ou que (iii) quero saber detalhes das suas patéticas experiências culinárias? Isto lembra-me a moda (felizmente ultrapassada) que gosto de chamar a loucura dos macarons. Em dado momento da minha vida, grande número de conhecidos descobriu que havia macarons e começou a tentar cozinhá-los. Dia e noite, semana após semana, mês depois de mês, só se falava em texturas, sabores e outras subtilezas dos macarons. Começava-se a falar num filme, a discutir qualquer tema, a mandar uma graçola… e tudo acabava inevitavelmente numa orgia de macarons!
Em conclusão: as pessoas tornam-se menos idealistas, menos interessantes e muito mais desesperadas. Ora, por acabarem por tomar consciência de terem passado por esse processo tornam-se também menos exigentes. Têm perfeita noção de que perderam parte considerável do seu potencial de atração (não falo de pessoas burras, como é óbvio). Sabem muitíssimo bem que nem com vinagre se caçam moscas nem com (exclusivamente) serões de macarons e conversa banal se encontra gente diferente e cativante. Mas conformam-se. A que leva isto? A que desejem loucamente e o mais rapidamente possível encontrar um compromisso. Atenção: não falo de almas gémeas ou de companhias ideais: é mesmo de um compromisso, seja ele com quem for, venha ele como vier. Não é a pessoa que me estimula e que admiro? Paciência: é uma pessoa e assim eu não fico sozinho/a.
Portanto, creio que a mensagem do Papa não se aplica a todos os casais que conheço. E o que será pior? Duas pessoas interessantes não se comprometerem numa relação duradoura ou duas pessoas que se tornaram desinteressantes fazerem-no apenas por receio e comodismo?
Cada um tem a sua opinião, mas eu confesso que acho a segunda alternativa bastante assustadora.
Não consigo – não consigo mesmo – imaginar o que é passar parte importante dos meus dias com alguém que considere pouco estimulante ou que não admire profundamente. Isto desde logo por duas razões. Por um lado, por eu ter um feitio desgraçado e certamente ir gastar metade do tempo a odiar-me a mim mesmo por não ter querido ousar ir mais longe e a outra metade a odiar a tal pessoa por não a considerar ao meu “nível” ou (pior!) ao nível a que eu acharia que deveria ter ascendido caso não tivesse soçobrado a meio do caminho. Por outro, por eu só me conseguir manter numa relação a sério com alguém que considere admirável e que por isso mesmo me estimule constantemente a dar o melhor de mim mesmo. E a sentir-me bem com isso. Águas turvas e paradas nunca foram o meu ideal nem me motivaram. Pode ser uma pessoa radicalmente diferente de mim, pode ter interesses opostos, pode ser o que quiser – mas tem de ser um desafio. Um agradável desafio, certamente, mas um desafio. E um desafio a longo prazo, sem meta à vista. O problema aumenta quando pensarmos que não iria ser só eu quem sairia amachucado desse relacionamento semiforçado. Há que ser franco: eu iria fazer transformar a vida dessa outra pessoa num pesadelo.
Hoje de manhã, quando estava a dar o meu passeio pré-cafézada e escalava o Cidral, vi um casal de ar sorumbático da minha idade. Cada um envergava o seu triste fato-de-treino e uma expressão ainda mais tristonha e plana. Note-se que não estou a falar dos arredores da cidade nem de pessoas que se podiam facilmente etiquetar de “suburbanas”. Sei que muita gente que conheço pensaria quem me dera ser um deles, estar tão à vontade com alguém que não tenha de me esforçar: o compromisso basta e segura tudo. Eu pelo contrário pensei: Deus me livre de algum dia na minha vida chegar a tal situação. Quando alguém gosta de outra não lhe vai reservar sobretudo o seu ar mais desmazelado, pois não? Acho que devia fazer exatamente o contrário!
O temor de ficar sozinho e a consciência de que se está a ficar cada vez mais desinteressante pode ter uma outra consequência perniciosa: querermos acreditar com toda a força que a pessoa Y é a certa para nós e tudo fazermos para o conseguirmos demonstrar (sobretudo a nós mesmos). Até forçarmo-nos a ser o que nós somos. Trata-se de um cenário ainda mais horripilante: para além de conformistas e desinteressantes tornamo-nos num caricato pastiche. Conheço vários casos do género: são uma triste sucessão de cenas macabras ou quanto muito verdadeiramente hilariantes.
Como resolver então este dilema que se coloca a tantos de nós? Creio que com uma dose generosa de amor-próprio. Se não formos interessantes e tivermos plena noção desse facto, como podemos sequer ter a louca pretensão de encontrar alguém que o seja? Portanto, toca a pôr os talentos a render! Ou como escreve Pierre Van Breemen num texto curioso que me enviaram: “A aceitação significa que as pessoas com quem vivo me atribuem um sentimento de dignidade, o sentimento que eu tenho da estima. Elas sentem-se felizes que eu seja o que sou. A aceitação significa que sou livre de ser eu próprio. A aceitação significa que, apesar da necessidade de crescer, esta não é forçada. Eu não tenho necessidade de ser uma pessoa que não sou. (…) Quando se aprecia uma pessoa por aquilo que ela faz, ela não é única, qualquer pessoa pode fazer o mesmo trabalho, e talvez melhor do que ela. Mas quando se ama uma pessoa por aquilo que ela é, então ela torna-se uma personalidade única e insubstituível”. Um bocadinho moralista de mais? Talvez. Utópico? Pode-se argumentar que sim. Eu acho sobretudo bastante sensato e aconselhável: para cada um de nós e para quem nos rodeia. Não se pode estar com alguém que não nos conhece e não nos aprecia pelo que somos. E que não apreciamos pelo que essa pessoa é. É cobarde e injusto para todos os envolvidos.

Se alguma vez virem alguém parecido comigo vestido de fato de treino num domingo de manhã, com a barba por fazer, a debater as trutas grelhadas da véspera e obras na lareira enquanto carrego um módulo de uma peça qualquer do Ikea, voltem a cara. De duas uma: ou me estraguei por completo e cedi (como tantos) ao desespero de uma normalização tristonha – e não mereço o vosso cumprimento – ou é uma vez mais aquele tipo irritante (o meu gémeo desconhecido) que se diverte a fazer-se passar por mim aparecendo em lugares onde eu dificilmente estaria. Sim, o tal que andava na gandaia na rua da Matemática, que nunca mais acabava o curso e que se passeava regularmente de autocarro!

3 Comments:

At 6:27 AM, Blogger coisasnumacaixa said...

mau, mas afinal qual é o problema de falar de obras na casa ou transportar módulos do IKEA?! discordo em absoluto. aproveito para assumir que também já pensei em fazer macarons, mas ainda não passei à prática. prometo que não te convidarei para a degustação.

 
At 8:02 AM, Blogger LCO said...

Eu tenho uma prima que me diz de vez em quando que "precisa de falar de tolices". Ela é um excelente exemplo de que a vida não se resume só a macarons! ;)

 
At 8:03 AM, Blogger LCO said...

This comment has been removed by the author.

 

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