Monday, February 03, 2014

ÍTACA DISTANTE

Poder-se-ia pensar que agora que começo finalmente a sentir um discreto aligeiramento da pesada carga que durante anos carreguei aos ombros passaria a dormir melhor. Nada disso. Se bem que já não sofra das crises de insónia que me atacavam no passado (e que não deixam saudades), venho desde há algum tempo padecendo daquilo que na minha ignorância sobre a matéria julgo poder chamar sonhos catarse. Ou seja: agora durmo efetivamente mas passo as noites às voltas com cocktails desordenados e frenéticos do que de bom e mau se passou na minha vida ao longo dos últimos anos. Por um lado, não deixa de ser interessante perceber o que é que o meu subconsciente gravou desse período (admita-se porém que a maioria das recordações que resolveu arquivar não são fáceis nem brandas) e como resolveu ordenar todas essas sensações; por outro, estes exercícios involuntários cansam. A minha sorte é que realmente adoro a aurora e começar a trabalhar antes de o dia raiar; caso contrário, teria a vida mais complicada.
Por estranho que possa parecer (mas não sou eu o tipo que gosta de descobrir relações e padrões nos contextos mais bizantinos?) associei estes recentes malabarismos (palavra que não escolhi ao acaso, pois realmente têm origem em causas malabares) do meu subconsciente a uma conversa tida ontem com uma amiga à frente de umas chávenas de café. Num fim de tarde chuvoso e deprimente, suspirávamos solidariamente contra alguns espinhos existenciais que considerávamos serem parte do duro fado que há que suportar estoicamente até ao momento radioso em que, como que por artes mágicas, os entraves ruirão e os portões das existências perfeitas e ridentes que projetamos para o futuro se escancararão à nossa frente. Sentíamo-nos como que forçados a prosseguir uma longa travessia do deserto, cansados da monotonia das dunas atrás de dunas, encarando já sem grande entusiasmo as tempestades de areia e ansiando não por um oásis modesto com um charco onde pudéssemos parar umas horas mas pelo mar que se espera encontrar no término da caminhada. E por dar uma série de valentes mergulhos nesse mar, obviamente!
Foi neste impasse que a minha amiga lançou uma questão simultaneamente interessante e inquietante. É verdade que estamos empenhados em despachar a travessia, é certo que procuramos dar o nosso melhor e evitar tombos na areia, é inegável que nos temos (como acontece a toda a gente, aliás) defrontado com algumas barreiras difíceis de ultrapassar e até as temos saltado airosamente. No entanto, será que isso basta? Será suficiente continuar a caminhada metódica e pacientemente ou há também que investir noutras frentes e reagir de outras formas? Isto é, haverá uma altura em que se começa a sentir que não chega andar apenas a prosseguir marcha com a preocupação de não nos desviarmos do trilho? Haverá uma altura em que – receio terrível! – acabemos por nos conformar com a caminhada e deixemos de nos preocupar acima de tudo com o seu término? Poderemos (nós e todos os da nossa geração que seguem percursos idênticos) cair na tentação de mais ou menos intencionalmente nos quedarmos pelo caminho – tentando acreditar na patranha de que se não é confortável nem aquilo que imaginávamos, pelo menos não é “mau de todo” e até já “sabemos com o que contar”? Ou seja: estaremos nós a bordejar o precipício escarpado da desistência e deveremos por isso adotar precauções especiais para não nos despenharmos? Ou será que esta é apenas uma das etapas da dita caminhada pelas quais temos de passar forçosamente? Tratar-se-á de um indício de que estamos a concluir o périplo? Ou um sinal alarmante de que a meta se distancia?
O precipício em questão tem algo do mar das sereias de Ulisses. Convém não prestar grande atenção aos ruídos que nos chegam aos ouvidos: podemos perder tempo e perder o norte. Quanto às “sereias” que nos rodeiam, são de várias espécies. Atrás dos seus cantares esconde-se o derrotismo suave que parece tingir tanto do nosso país, os conselhos incompreensíveis do governo, a falta crónica de fundos de que quase todos sofremos, uma crise que alegadamente tem os dias contados mas que serve de motivo para vermos cada vez mais o fundo às algibeiras, o facto de termos trabalhos absorventes, exigentes e sem horários nem fins-de-semanas, as “caras metades” idealizadas que teimam em não aparecer (ou, quando aparecem, em não se comportarem conforme o desejado), o laxismo de muitos, a indiferença hostil de outros. E – tão ou mais grave do que as “sereias” – há os companheiros de jornada que vão cedendo à tentação e se vão deixando ficar pelo caminho. Muitas vezes são aqueles de quem nunca esperaríamos uma desistência. Vão-se conformando – e isso causa estranheza e algum temor (“Se ele não aguentou, conseguirei eu chegar ao fim?”).
Eu – e creio bem que a minha amiga também – julgo contudo que Ítaca é que é o destino. É difícil lá chegar? Paciência! Têm de se atravessar desertos com oásis fugazes e miragens falaciosas? Toca a apressar o passo para os deixarmos quanto antes! Há mares coalhados de sereias tentadoras e perigosas? Olhos no alvo, cera nos ouvidos (bem aconselhou Circe) e conservemo-nos solidamente amarrados aos mastros (cada um tem os seus)! Não desistir, não desesperar (por muito que apeteça), não resignar.
E estar atento aos sinais de aproximação da terra. Talvez os sonhos catarse sejam um deles!
Tudo isto sem esquecer (roubo a frase ao conhecido poema de Constantine Cavafy):
“Have Ithaka always in your mind.

Your arrival there is what you are destined for”.


2 Comments:

At 1:14 AM, Anonymous Ni said...

hmmm.. eu acho que esses sonhos catarse são o teu cérebro a s-u-p-l-i-c-a-r para que mudes de deserto ahaha
Sim, porque vai haver sempre um deserto para atravessar. Convém é, a bem da nossa sanidade mental, irmos trocando de ares, e encontrando uns oásis pelo caminho! ;)

 
At 5:03 AM, Blogger jm said...

Que Ítaca guie os nossos passos e seja o caminho, e, que o cansaço dos dias não nos vença e nos permita ir desfrutando da viagem!bj

 

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