ÍTACA DISTANTE
Poder-se-ia
pensar que agora que começo finalmente a sentir um discreto aligeiramento da
pesada carga que durante anos carreguei aos ombros passaria a dormir melhor.
Nada disso. Se bem que já não sofra das crises de insónia que me atacavam no
passado (e que não deixam saudades), venho desde há algum tempo padecendo
daquilo que na minha ignorância sobre a matéria julgo poder chamar sonhos catarse. Ou seja: agora durmo
efetivamente mas passo as noites às voltas com cocktails desordenados e frenéticos do que de bom e mau se passou
na minha vida ao longo dos últimos anos. Por um lado, não deixa de ser
interessante perceber o que é que o meu subconsciente gravou desse período
(admita-se porém que a maioria das recordações que resolveu arquivar não são
fáceis nem brandas) e como resolveu
ordenar todas essas sensações; por outro, estes exercícios involuntários cansam. A minha sorte é que realmente
adoro a aurora e começar a trabalhar antes de o dia raiar; caso contrário,
teria a vida mais complicada.
Por
estranho que possa parecer (mas não sou eu o tipo que gosta de descobrir
relações e padrões nos contextos mais bizantinos?) associei estes recentes
malabarismos (palavra que não escolhi ao acaso, pois realmente têm origem em causas malabares) do meu subconsciente a
uma conversa tida ontem com uma amiga à frente de umas chávenas de café. Num
fim de tarde chuvoso e deprimente, suspirávamos solidariamente contra alguns
espinhos existenciais que considerávamos serem parte do duro fado que há que
suportar estoicamente até ao momento radioso em que, como que por artes
mágicas, os entraves ruirão e os portões das existências perfeitas e ridentes
que projetamos para o futuro se escancararão à nossa frente. Sentíamo-nos como que
forçados a prosseguir uma longa travessia do deserto, cansados da monotonia das
dunas atrás de dunas, encarando já sem grande entusiasmo as tempestades de
areia e ansiando não por um oásis modesto com um charco onde pudéssemos parar
umas horas mas pelo mar que se espera encontrar no término da caminhada. E por
dar uma série de valentes mergulhos nesse mar, obviamente!
Foi
neste impasse que a minha amiga lançou uma questão simultaneamente interessante
e inquietante. É verdade que estamos empenhados em despachar a travessia, é
certo que procuramos dar o nosso melhor e evitar tombos na areia, é inegável
que nos temos (como acontece a toda a gente, aliás) defrontado com algumas
barreiras difíceis de ultrapassar e até as temos saltado airosamente. No
entanto, será que isso basta? Será
suficiente continuar a caminhada metódica e pacientemente ou há também que
investir noutras frentes e reagir de
outras formas? Isto é, haverá uma altura em que se começa a sentir que não
chega andar apenas a prosseguir marcha com a preocupação de não nos desviarmos do trilho?
Haverá uma altura em que – receio terrível! – acabemos por nos conformar com a caminhada e deixemos de
nos preocupar acima de tudo com o seu término? Poderemos (nós e todos os da nossa
geração que seguem percursos idênticos) cair na tentação de mais ou menos
intencionalmente nos quedarmos pelo caminho – tentando acreditar na patranha de
que se não é confortável nem aquilo que imaginávamos, pelo menos não é “mau de
todo” e até já “sabemos com o que contar”? Ou seja: estaremos nós a bordejar o
precipício escarpado da desistência e deveremos por isso adotar precauções
especiais para não nos despenharmos? Ou será que esta é apenas uma das etapas
da dita caminhada pelas quais temos de passar forçosamente? Tratar-se-á de um
indício de que estamos a concluir o périplo? Ou um sinal alarmante de que a
meta se distancia?
O
precipício em questão tem algo do mar das sereias de Ulisses. Convém não prestar grande atenção aos ruídos que nos chegam aos ouvidos: podemos perder
tempo e perder o norte. Quanto às “sereias” que nos rodeiam, são de várias
espécies. Atrás dos seus cantares esconde-se o derrotismo suave que parece
tingir tanto do nosso país, os conselhos incompreensíveis do governo, a falta
crónica de fundos de que quase todos sofremos, uma crise que alegadamente tem
os dias contados mas que serve de motivo para vermos cada vez mais o fundo às
algibeiras, o facto de termos trabalhos absorventes, exigentes e sem horários
nem fins-de-semanas, as “caras metades” idealizadas que teimam em não aparecer
(ou, quando aparecem, em não se comportarem conforme o desejado), o laxismo de
muitos, a indiferença hostil de outros. E – tão ou mais grave do que as “sereias”
– há os companheiros de jornada que vão cedendo à tentação e se vão deixando
ficar pelo caminho. Muitas vezes são aqueles de quem nunca esperaríamos uma
desistência. Vão-se conformando – e isso
causa estranheza e algum temor (“Se ele não aguentou, conseguirei eu chegar
ao fim?”).
Eu
– e creio bem que a minha amiga também – julgo contudo que Ítaca é que é o
destino. É difícil lá chegar? Paciência! Têm de se atravessar desertos com
oásis fugazes e miragens falaciosas? Toca a apressar o passo para os deixarmos
quanto antes! Há mares coalhados de sereias tentadoras e perigosas? Olhos no
alvo, cera nos ouvidos (bem aconselhou Circe) e conservemo-nos solidamente amarrados
aos mastros (cada um tem os seus)! Não desistir, não desesperar (por muito que
apeteça), não resignar.
E
estar atento aos sinais de aproximação da terra. Talvez os sonhos catarse sejam um deles!
Tudo
isto sem esquecer (roubo a frase ao conhecido poema de Constantine Cavafy):
“Have Ithaka always in your mind.
Your arrival there is what you are destined for”.
2 Comments:
hmmm.. eu acho que esses sonhos catarse são o teu cérebro a s-u-p-l-i-c-a-r para que mudes de deserto ahaha
Sim, porque vai haver sempre um deserto para atravessar. Convém é, a bem da nossa sanidade mental, irmos trocando de ares, e encontrando uns oásis pelo caminho! ;)
Que Ítaca guie os nossos passos e seja o caminho, e, que o cansaço dos dias não nos vença e nos permita ir desfrutando da viagem!bj
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