Regresso às aulas no encalço de uma faca de pão
Uf!
Chega ao fim o primeiro dia do segundo semestre. Se por um lado estes momentos
de retorno da normalidade letiva constituem um suave bálsamo após a avalanche
de frequências e exames para corrigir, por outro são uma prova difícil para o
mais entusiasta dos profs. Sobretudo para aqueles que, como eu, têm aulas
(literalmente) das 8 às 20. Note-se que não me queixo por começar a debater
sociologia jurídica pouco depois de o dia nascer – na verdade, todos os que me
conhecem sabem que eu gosto de dar
aulas cedo. Mas a verdade é que enquanto não me habituo aos novos fusos e crio
novas rotinas acabo sempre a jornada um bocado esfalfado. Para mais, os inícios
de semana acarretam sempre aqueles mil e um pequenos périplos quotidianos que
até são agradáveis quando não feitos a contrarrelógio. Ir ao supermercado, ir
comprar laranjas e tomates à frutaria da D. Gina, renovar os livros da
biblioteca, passar pela livraria e levantar a coletânea de legislação que tinha
encomendado, ir ao pão, etc., etc. A isto há que associar vários extras: os novos horários do ténis; a
histeria mais ou menos contida dos alunos que estão no turno 1 e querem mudar
para o turno 2, ou vice-versa, ou que pura e simplesmente se acham tão
baralhados que não sabem o que querem e pedem o que já têm; discussões sobre
temas tão “fascinantes” como de-que-forma-chavemos-de-conseguir-arranjar-verba-para-comprar-quatro-rolos-de-papel-crepe;
um exame chegado de fresco de Macau; o novíssimo lote de métodos de avaliação e
as suas incontáveis subtilezas; organizar os dossiês das novas ucs, as fichas
dos alunos, as pastas a deixar na Associação de Estudantes… Repito: uf!!
Ora,
como é habitual, e apesar de ter já tudo delineado e preparado de véspera, hoje
cedo quando acordei para dar uma última vista de olhos à aula das 8 tive uma
ideia que me pareceu interessantíssima (este tipo de ideias geralmente
aparecem-me de manhãzinha, mal desperto) e digna de aplicação imediata na aula.
Mãos à obra!, pensei. Em má hora o
fiz, pois já tenho anos suficientes de docência para saber de cor uma verdade
universal: há uma enorme tendência para
nos primeiros dias as coisas falharem e surgirem os imprevistos mais inusitados.
É por isso que convém ter tudo preparado de antemão; é por isso que nestas
datas nos devemos esforçar por amordaçar a imaginação e silenciar as ideias que
teimem em surgir. Deixemo-las marinar, façamo-las aguardar por melhor ocasião,
tratemos de subtilmente as iludir e assim fazer com que vão para outra banda. Em
data de recomeço, só se deve levar a cabo o que foi rigorosamente delineado.
Caso contrário, livrar-nos-emos mais dificilmente dos entraves que certamente
aparecerão e tentarão fintar um reinício equilibrado e indolor.
Como
era óbvio e previsível, hoje tive a minha dose de estorvos a afastar. Começaram
cedo. Primeiro, uma lâmpada fundida. É certo que não é mal que mate, mas
irrita. Depois, uma internet soluçante – o que me impedia de concretizar a tal
ideia interessantíssima que teimava em querer levar avante. Finalmente, o mistério da faca do pão. Como toda a
gente, tenho uma faca do pão. No entanto, já não como toda a gente, sou um
bocado paranoico no uso dos meus utensílios de cozinha. Isto é, tenho várias
facas com fins determinados: uma para cozinhar (enfim, eu não sei verdadeiramente cozinhar, mas para cortar vegetais e coisas
assim), outra para os bolos, outra para o pão and so long. E irrita-me um bocado quando tenho de usar uma para um
propósito diferente daquele que eu lhe atribuí. Há como que uma castificação das facas: a faca dos bolos
nasceu para cortar bolo e fica impura se tocar em tomate; a faca do pão tem por
vocação última enfrentar e abrir todos os tipos de pão e não se conspurca com
ovos cozidos cortados às rodelas; etc. É uma parvoíce, eu sei, mas é o que é.
Pois bem, hoje bem cedo a faca do pão desaparecera. Procurei-a por toda a minha
micro-cozinha, trepei inclusive a uma cadeira para vasculhar os fundos dos
armários, tentei perceber onde é que a teria colocado se fosse a senhora da
limpeza… tudo sem resultados. Lá me conformei (o cronómetro não perdoava),
tentei convencer-me de que num momento de distração tinha deitado a faca para o
lixo, e enterrei-a mentalmente. Pensei que em jeito de elogio fúnebre ainda
podia perguntar por ela às senhoras da limpeza, mas que o que tinha mesmo de
fazer era arranjar uma subsituta. E depressa.
Passou
a primeira aula, transcorreu a segunda aula, atenderam-se pedidos de catadupas
de alunos e organizaram-se papéis rebeldes que pareciam nascer descontroladamente
secretária fora, ponderou-se o grave tema do papel crepe e eis que, no final da
manhã e transcorrida a primeira metade da jornada letiva, o tema faca do pão ressuscita. Mal entrei no
supermercado, foi a ideia que me assaltou: NÃO
posso de maneira nenhuma sair daqui sem uma faca do pão. Já bastou ter de usar
a faca da cozinha para cortar pão hoje de manhã. Lá me dirigi para a secção
de… como lhe irei eu chamar? “Cutelaria” é demasiado pomposo para meia dúzia de
facas expostas num quarto de prateleira, “utilidades do lar” é bastante
pindérico, “coisas de cozinha e afins” excessivamente informal… Bom, dirigi-me
para a secção indicada (assim não se compromete nada nem ninguém) em busca de
uma boa substituta da minha faca desaparecida. Confesso que encarei logo com
prazer uma enorme e pesada faca do pão que se destacava entre as suas vizinhas
raquíticas. No entanto, a dita não tinha preço e lá tive eu de, faca em riste,
ir em busca de uma funcionária que fosse simpática e arranjasse maneira de mo
descobrir. Como sempre sucede nestas alturas, parecia que os empregados tinham
todos feito greve. Por fim, encontrei uma rapariga que empurrava indolentemente
um carrinho de caixotes e abalancei-me rapidamente no seu encalço.
Aparentemente não fui o único: uma senhora com ar bastante rezingão na qual nem
sequer notara tinha tido a mesma ideia. Ora, a rapariga reparou primeiro em mim
do que na senhora rezingona (quem sou eu para criticar o seu bom gosto!) e
prontificou-se a despachar o dossiê faca (matéria
de importância nacional) antes do problema meramente paroquial de lacticínios
que a senhora lhe colocava. Resultado: enquanto a funcionária demandava o valor
da minha eventual futura faca tive de suportar olhares enfurecidos. Era forçoso
admitir que a estúpida da questão da faca estava a demorar mais tempo e a
arranjar mais problemas do que devia. Eternidades depois a funcionária lá
regressou, eu fiquei satisfeito com o valor em questão, comprei a faca e vim
com ela para casa.
Não fiz mau negócio.
– pensava para comigo mesmo, tentando iludir a minha veia Mathias – Tive de comprar uma faca mas acabei por
arranjar um quase dois em um: em caso extremo, esta super-faca é praticamente uma
arma. Pensamentos muito adequados para serem tidos numa cidade tão violenta
como a pacata Leiria é, confesse-se!
Ao
chegar a casa, encontrei as senhoras da limpeza e – por mero descargo de
consciência e por uma pinga de respeito pela antecessora da minha nova faca “turbo”
– perguntei-lhes se porventura sabiam onde é que ela poderia estar.
Responderam-me que não a tinham visto e eu não me preocupei mais com o assunto.
Agora que tinha uma faca muito mais impressionante, a sua modesta predecessora
parecia ter recuado para um escaninho distante da minha memória. Claro que quando
me dirigi à cozinha, mesmo que não precisasse de cortar pão nenhum, não
descansei enquanto não dei uso à novel faca. Satisfeito com o seu desempenho, atirei
o assunto para trás das costas. Mais um
dos ridículos micro-entraves de princípio de semestre ultrapassado, concluí.
Costumo
dormir uma pequena sesta depois do almoço. É uma forma de compensar as minhas
noites curtas e um meio extraordinário de revitalizar o meu cérebro. Depois de
uma escassa meia hora de sono sinto-me como novo e pronto para enfrentar a
segunda metade do dia. Ora, por assim ser as pessoas que conhecem este meu
hábito têm geralmente o cuidado de não me importunar nessa altura. Mas
naturalmente a maioria dos que me rodeiam ignora-o. Assim, quando estava a
dormir placidamente, sou subitamente acordado por umas batidas vigorosas na
porta! Pensei que era alguém para fazer alguma reparação, ou um engano… e
dirigi-me um bocado mal-humorado para a porta. Quando a abri, quem descubro eu
à soleira? A senhora da limpeza, com um sorriso nos lábios e a minha velha faca na mão!
-
É esta a sua faca, professor? Pedimos
imensa desculpa, mas confundimo-la com as nossas, que usamos nas limpezas.
E
deixou-me com o meu utensílio de cozinha na mão.
Peguei na velha faca do pão, olhei para ela e – maldição! – já não me parecia adequada para faca do pão. Tinha
servido entretanto (mesmo que não tivesse sido efetivamente utilizada para esse
serviço, a verdade é que fora afetada ao mesmo) como reles faca de limpeza.
Bolas! Deixaram-me com um problema entre mãos. Depois de a lavar
cuidadosamente, para que me iria ela servir?
Terminei
a sesta interrompida, depois do que me lancei com vigor ao trabalho e concluí a
jornada com mais uma aula. A história da faca era já mais do que passado
remoto.
Quando
cheguei a casa, cansado e a apetecer-me um duche e jantar, ao abrir a gaveta
dos talheres lá me deparei com as duas facas do pão que agora tenho no meu
micro T0 leiriense. Se calhar constituem um bom presságio para o semestre que
principia. Esperemos que, à semelhança das facas, o novo período que agora
se enceta não só nos permita conservar as coisas boas do passado (mesmo que elas
pareçam um tanto escondidas) mas também nos possibilite encontrar coisas ainda melhores. Tão melhores que as suas predecessoras, ainda que sejam sempre bem-vindas e
lembradas com uma ponta de simpatia, se tornem pequeninas e obsoletas!
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