Uf!
O dia acabou, por fim – jornada longa, de início da época das frequências, com
os alunos frenéticos com dúvidas de última hora, cansados e irritadiços pelas
horas suplementares de estudo e as noites mal dormidas em virtude do trabalho
acumulado que é preciso despachar o melhor e o mais rapidamente possível – e,
como sempre me acontece nestas alturas (em que a terrível enxaqueca acena, como
que a dizer “Abusa, abusa, e amanhã terás
notícias sérias a meu respeito”), não me apetece fazer nada de especial.
Por isso, depois do jantar, e antes de retornar à base, andei a deambular um
bocado pelo facebook (divertimento
barato e inofensivo para quem quer torrar, em actividades pouco exigentes, um
quarto de hora generoso). Por vezes, naquele espaço, encontram-se fotos, posts e comments que, possivelmente graças a uma conjunção de atividade cerebral
descompassada, descompressão e coincidência, nos fazem pensar mais do que três
minutos em determinado assunto. Desta feita, o que me despertou a atenção –
pasmem – foi uma longa série de fotos de uma casa para arrendar. A casa está
totalmente mobilada, com todos os pertences de quem a habita e foi – acho que
um tanto despudoradamente (não fosse ela tão anódina a ponto de motivar a
composição desta prosa) – ferozmente fotografada para ser anunciada a eventuais
interessados em lá morar durante um período relativamente curto, provavelmente
durante a ausência dos seus proprietários.
Há,
aqui chegados, que fazer duas clarificações: por um lado, não é estranho que eu
tenha reparado numa sequência de fotos deste género (eu gosto efetivamente de
casas, de ver como são construídas e divididas); por outro, enquanto amante
confesso e impenitente de velharias, não resisto a “cheirar” (da forma mais
discreta possível, naturalmente) os interiores que se me deparam, na mira de
por lá encontrar qualquer peça curiosa (quem gosta de antiguidades e afins sabe
que metade do saber acumulado resulta de ver e padronizar o mais possível). Portanto,
era quase inevitável que, deparando-me com as mesmas, fosse ver as fotos – não por
querer arrendar o imóvel, mas para perceber como ele era.
No
entanto, o que me impressionou, no caso desta casa (o jogo barato de palavras
indicia que estou verdadeiramente cansado! :p) não foram as suas divisões e
vistas desafogadas mas feiosas, mas o pouco carisma que delas exalava. Eu (por
motivos absolutamente alheios à minha pessoa: as coisas já eram mais ou menos
assim quando apareci) estou habituado a casas a transpirar personalidade e
negligenciando o que é “clean”, ou
regulamentar, ou insípido, ou (não me lembro de outra palavra, desculpem a
franqueza), mesmo, banal. Não falo de interiores luxuosos, nada disso!, nem de
habitações esplendorosas, mas apenas de espaços muito vividos, repletos de objetos
também eles muito vividos e carregados de historietas, escorados em livros e,
acima de tudo, brutalmente personalizados. Pensemos num par de exemplos.
Na
casa das fotos, vê-se a secretária do dono do imóvel – que, tal como eu, é
jurista e dedica-se sobretudo à investigação e à docência. O móvel é anonimamente
correto e frio, hirto na sua regimental cor de faia, sem mais objetos pessoais que uma foto, uma jarra
(acho eu…) e meia dúzia de canetas e livros. Que diferença da minha velha
escrivaninha – vasta mas já bastante surrada depois de anos de uso intenso, herdada do meu Pai. Está locupletada de lápis e material de escritório, as suas
gavetas e escaninhos repletos com fragmentos da minha vida desde sempre (e também
alguns da vida dos meus familiares e amigos mais próximos). Por todo o móvel
acumulam-se pequenas insignificâncias que o personalizam: aqui um barco numa
garrafa, peça rudimentar feita há que tempos pela minha Tia T. segundo as
instruções da Perlin. Ficou perfeito?
Não. Mas a minha tia tinha na altura para aí uns 14 anos, e eu 7, e adorei
aquele barco parecido com as histórias de piratas. Ali um desenho do meu Tio
ZN, acolá um outro, da minha Tia I. Ao lado, um barco que o meu Pai me trouxe
há centúrias de uma viagem à Madeira e o globo que tenho desde que me lembro,
ao qual está encostada uma fotografia de uma família goesa de oitocentos. Atrás
de tudo, uma representação barata dos meus queridos painéis de S. Vicente, que refletem
uma antiga caixa de rapé que pertenceu a um antepassado qualquer. Dentro de uma
caixa de laca lascada, vinda da Covilhã, milhares de pequenos nadas sem
interesse nenhum, mas importantíssimos para mim. E isto entre muitas e muitas
outras coisas!
Na
casa das fotos, dá-se destaque a uma estante com livros, que me pareceu magra e
pouco mexida. Em minha casa, e na maioria das casas dos que me são próximos, os
livros são sempre mais do que as prateleiras e jamais permanecem imóveis e
intocados durante muito tempo, para além de se acotovelarem, freneticamente, em
todos os espaços disponíveis. Mas não se limitam a isso: à frente dos livros há
fotos e algumas outras peças – mas nunca em quantidades suficientes para nos
impedirem de acedermos com toda a liberdade aos volumes. Os livros mudam de
posição, de divisão, de estante e prateleira com bastante frequência; perdemo-los,
encontramo-los e voltamos a perdê-los. Na foto da casa, todos têm as lombadas
imaculadas e cara de serem lidos com quase reverência; em minha casa, muitos
estão já parcialmente gastos pelo uso e pelas muitas mãos pelas quais já
passaram.
Na
casa das fotos, os móveis da sala são iguais aos de mil outras salas, e quase
parecem viver enclausurados na obsessão de não saírem um milímetro dessa
normalidade. Por cima da mesa cor-de-faia há uma taça cor-de-faia. No sofá
desmaiado não há uma almofada. O aparador estilo-sem-estilo tem meia dúzia de
louças de estilo-sem-estilo. Talvez tudo tenha sido caríssimo, talvez tudo seja
design, mas o que é que distingue
aquelas peças das demais? Em minha casa, a mesa está gasta e usada, e as
cadeiras também, mas estão-no saudavelmente, pelos muitos que por lá passaram.
Nos louceiros da zona de jantar há pilhas de pratos e chávenas e copos que
contam pilhas de histórias e historietas. São todos diferentes uns dos outros,
e cada um representa uma faceta dos que lá habitam. As nossas refeições são
espiadas por damas chinesas em galanteios de porcelana mandarim, por cavaleiros agressivos de olhos em bico, por senhoras
japonesas passeando em jardins, por chávenas que ecoam o bruaahh dos salões senenses de princípios do século passado, por
compoteiras que lembram doces, por pratos que só de os vermos nos fazem
recordar sobremesas especiais, por uma lamparina pequenina que os Avós
trouxeram da sua primeira ida a Roma, no ano santo, em 1950, por um gato de
Delft, etc., etc. Os sofás estão cobertos de almofadas às riscas, onde apetece
sentar e preguiçar. E muito do que lá está, quer seja antiguidade vetusta, quer
seja inovação tecnológica de ontem, é personalizado. Creio que deve ser
uma das consequências de fazer parte de uma família grande e assaz criativa.
Assim de repente, lembro-me da cadeira da minha Mana. É uma cadeira velha, que
já existia muito antes de ela existir, e só lá em casa há quatro iguais. Mas há
uma que é dela, e todos sabemos que é aquela (tem um dos “arrebiques” do
espaldar ligeirissimamente partido), e é lá que a minha irmã costuma deixar o
seu casaco e carteira. Ou da mesinha da Mãe: uma velha mesa gate leg (ou holandesa), com uma
gavetinha onde a minha progenitora, na infância, guardava os seus pertences.
Hoje, a minha Mãe tem dezenas de gavetas, e não precisa daquela para nada, mas,
mesmo assim, ela mantém o seu estatuto. Ou, no hall, a gaveta do Pai, estreita e profunda, na enorme cómoda que lá
está. Acho que jamais a abri sem o Pai me mandar ir lá buscar alguma coisa. Ou
a almofada do Luís, que os Pais me trouxeram de Paris. E a mania – ou o hábito,
porque estas coisas vão acontecendo, sem pressões – vai-se prolongando à medida
que as gerações se renovam. Até mesmo a minha sobrinha pequenina já tem a porta
da Zabi (uma porta exatamente ao seu nível, de um velho móvel faqueiro Henrique
VIII agora adaptado a outros fins, onde a Zabi gosta de esconder alguns dos
seus “tesouros” e que tem gravado um dragão a que ela acha graça), e a tacinha
da Zabi com os peixinhos de plástico da Zabi. E os exemplos podiam
multiplicar-se.
Na
casa das fotos, os quadros são todos bastante anónimos (serigrafias banais, um
mapa do século XVIII repetido até à exaustão pelas paredes de muitas outras
casas) ou, então, fotografias dos donos, desde a sua infância até à atualidade.
Em minha casa, as paredes estão pejadas de quadros feitos pelos membros da
família que gostam de rabiscar, ou então por outras telas e aguarelas que
contam alguma história: ofertas de amigos dos Pais, velhos salvados de outras moradas
da família, coisas assim. Existem muitas fotos – o que se justifica por sermos
muitos – e estão longe de se limitar a uma geração. Na sala, por exemplo,
percorrem-se laaaargas décadas, de forma um tanto desordenada, desde os meus
trisavós até à Zabi. E as molduras estão longe de ser todas uniformes. Algumas,
pobres delas!, estão já meias desconjuntadas, e quase nenhuma combina com as
que estão ao lado. Velhas molduras orientais emparceiram com caixilhos contemporâneos,
fotografias tiradas em modernas máquinas digitais ombreiam com velhos
daguerreótipos.
Na
casa das fotos, tudo é correto, arrumado, bonitinho, exatamente como deve ser.
Na casa das fotos, na verdade, tudo é aborrecidíssimo! Eu, quando vejo uma casa
assim, penso que os seus donos devem ser um tédio; e imagino o desconfortável
que me sentiria se, ao regressar depois de um dia intenso de trabalho, me
deparasse com aquele ambiente tão inofensivo quão politicamente correto. Se
vivesse numa casa destas, não teria uma almofada minha ao lado do meu candeeiro (o
tal que compraram expressamente para que eu lesse melhor encostado ao meu canto
do sofá) nem o cantinho da mesa que também é “meu”, onde repousa a revista e o
livro que estou a ler na altura. Atrás de mim não se levantariam, até quase ao
teto, estantes repletas de livros (onde ruge um velho leão da China – chorando
a morte de uma Macau que se desvaneceu ou urrando de prazer por se encontrar
num ambiente amável?) – basta esticar a mão e puxar um! À minha frente, na
velha de mesa de jogo, vários pares de olhos de várias épocas e gerações não me
fitariam e, em cima, o quadro do Hipólito Andrade representando uma viela da
baixinha não teria qualquer significado.
Provavelmente,
se os donos da casa das fotos vissem a minha, morriam: achá-la-iam, decerto, “demasiado
personalizada”. Eu, se tivesse de viver na deles, sufocava com tanto anonimato.
Dizem
que viver num ambiente inócuo só tem vantagens. Acredito… mas, assim de
repente, não me lembro de nenhuma!