Tuesday, January 01, 2013

O(S) OUTRO(S) SERRAZIN(S)


Hoje, dia 1 de janeiro, passam exatamente 161 anos (sei-o de fonte segura porque fui confirmar às Famílias de Seia) desde o nascimento da minha trisavó Clara Augusta. Esta avoenga – a que muitos  associam o semblante duro da mais difundida das suas fotografias (tirada já na velhice, durante umas férias passadas, como não podia deixar de ser, na Figueira), que conheço em vários tamanhos e formatos, desde a versão gigantesca para exibir nas paredes à foto “tipo passe”, e que reproduzo em anexo – nasceu numa pequena localidade junto à vila de Poiares cujo nome invulgar ainda diz algo a quase todos nós: Risca-Silva. E a Risca-Silva faz, efetivamente, jus àquela denominação, uma vez que o seu “caminho do meio” rasga, de uma forma relativamente reta, um vasto planalto outrora (há não sei quantas centúrias… para aí no século XVI) pouco explorado. Foi na Risca-Silva que esta antepassada cresceu e teve a ventura de poder estudar as poucas letras que, à data, se consideravam aconselhadas para as meninas da sua geração. Ficou, aliás, a memória do quanto a Avó Clara Augusta gostava da escola (“de ir à mestra”, como então se dizia), aonde se deslocava acompanhada da sua criada Carolina. Mais: pedida em casamento aos 13 anos por um primo mais velho (na verdade, primo direito do seu pai) que morava no vasto casarão defronte do seu – enlace relativamente ao qual sempre se sugeriu ter a afeição do noivo caminhado a par com o desejo de desfrutar da vasta herança que Clara Augusta um dia receberia (e que ainda se veio a engrossar mais após a morte precoce do seu único irmão) – terá recusado, alegando precisamente o seu prazer em ir à escola, o qual, se porventura casasse, lhe passaria a estar vedado. O pedido foi repetido no ano seguinte, tendo a resposta sido similar, e só perante a terceira proposta do persistente primo/noivo é que a filha do abastado “Mil Anjos” (homem tão rico quão piedoso) enfim acedeu. O persistente pretendente não deu apenas esta prova de saber o que queria da vida: Mathias Pedroso de Lima – o senhor capitalista – foi um homem que, antes de receber o capital paterno, que permaneceu indiviso até à morte de sua mãe, e (sobretudo) do sogro, soube arrancar de bastante pouco uma enorme fortuna, muito ancorada em negócios de cera e azeite, aos quais se veio a juntar uma impressionante riqueza fundiária em grande parte herdada daqueles maiores e por si sabiamente arredondada. Tinha, diziam, um talento extraordinário para o que comummente se costuma chamar fazer dinheiro. Na Risca-Silva, ainda há bem pouco tempo se cantarolava “Se a Mathias deres um tostão verás que, dentro de dias, ele terá um milhão”. Clara Augusta teria, assim, passado, literalmente, para o outro lado da rua (do já referido caminho do meio) de uma casa rica para outra casa ainda mais rica, tendo, alegadamente, contribuído, com a sua piedade severa e génio económico (os dois traços que melhor caracterizavam esta família, que vivia repartida entre a produção de riqueza e as exigências da fé), para o progresso de toda essa fartura. E aí terá vivido a maior parte da sua vida, temperada com ocasionais estadias em Coimbra e o clássico período anual de vilegiatura na Figueira (para onde seguia toda a família e a necessária criadagem, embarcando no porto da Raiva, em barcas serranas), tido os seus muitos filhos (três rapazes e nove raparigas) e morrido. O seu casamento representou a união entre os dois grandes ramos dos Pedroso que existiam naquela insignificante Poiares – “durante décadas, a vila mais pequena do país”, dizia o meu Avô, mas que, nas últimas décadas, mercê também da sua proximidade a Coimbra, cresceu espantosamente –: os Pedroso de Carvalho da chamada casa do Balteiro e os Pedroso de Lima da Vendinha e da Risca-Silva. Uns e outros andavam por aquelas bandas há já muitos séculos: da gente do Balteiro (uma terra ainda mais pequena do que a Risca-Silva) perde-se o rasto nos já remotos anos de 1560; quanto à Risca-Silva, nessa altura já se achava por tais paragens uma D. Filipa Pedroso. Falamos, pois, de cerca de 450 anos de história vividos à sombra dos pinheiros poiarenses, o que não deixa de ser uma fatia de tempo significativa. Durante tamanho período, e até onde chegam as crónicas familiares, houve um pouco de tudo. Episódios felizes e crises sérias, épocas de enorme abastança (como aquela em que Clara Augusta viveu) e fases de apertos económicos sérios (o que sucedeu, designadamente, durante a infância do seu sogro), momentos de glória (o primeiro a usar o apelido PL a, durante o consulado de Pombal, ascender à cátedra de direito natural da faculdade de leis conimbricense; Joaquim José assumindo o posto de castelão-governador de Diu; o padre José Joaquim pugnando pela causa liberal e pela ereção de Poiares em concelho, o general alçando-se a ministro; as firmas familiares a crescerem brutalmente) e outros de manifesta decadência, algumas histórias trágicas, outras hilariantes (onde está o tesouro da prima Marquinhas, ainda hoje perdido na Risca-Silva? Quem deslindar o mistério conseguirá finalmente descobri-lo?), outras ainda pura e simplesmente bastante tristes. Houve, assim, permanentemente, uma ligação. Por vezes mais intensa, noutras alturas muito débil, mas sempre presente.
Eu, pessoalmente, lembro-me perfeitamente de ir algumas vezes com o meu Avô – neto de Clara Augusta – a Poiares. O Avô possuía uma fração já verdadeiramente insignificante dos vastíssimos domínios daqueles seus antepassados, mas ainda assim eu divertia-me bastante a acompanhá-lo. Durante a viagem (jornada curta, Poiares fica a uns 20 minutos de Coimbra), pela velha Estrada da Beira – sendo que o Avô conhecia aquela parcela de olhos fechados, tantas vezes a fizera –, eu deveria apontar os nomes das terras por onde passássemos, para os ir fixando. A verdade é que me entretinha com isso e os memorizei efetivamente. Uma vez em Poiares, por vezes íamos à velha Risca-Silva, onde se erguiam (e erguem) as casas da família, e eu ainda sei perfeitamente qual é a janela do antigo quarto do Avô; outras passávamos pela Ribeira do Moinho, e pelo menos uma vez fomos em busca de uns moinhos propriamente ditos (uma vez que nunca vi nada que se parecesse com um moinho na ribeira do mesmo!). De vez em quando, surgiam pessoas que conheciam o Avô, algumas das quais ainda o tratavam por menino, o que a mim (que era novo e achava que o meu Avô era tudo menos uma criança) me parecia verdadeiramente insólito. Gente que se me afigurava como que vinda de outro mundo, que media as distâncias em horas (por não saber ler nem contar) ou que, na falta de porta-moedas, guardava os trocos em lencinhos com as pontas atadas. Foi nessas viagens, creio eu, que aprendi a lengalenga dos tostões transformados em milhões e que o “Avô Mil-Anjos” era assim conhecido por ser “tão pio, tão pio, tão pio, que nem a praguejar usava a palavra diabo, e dizia “com mil anjos!”. Nessas incursões também costumávamos percorrer algumas das propriedades do Avô, que invariavelmente achava que estavam muito mal tratadas e aproveitadas, o que (penso eu agora…) talvez o apoquentasse um pouco. No entanto, na altura, o que eu sobretudo apreciava era ir conhecer aqueles vestígios da antiga opulência da Risca-Silva e do Balteiro, que tinham nomes esquisitos, sendo um deles… Serrazim. E lembro-me perfeitamente de o Avô dizer (e sempre que lá torno isso vem-me à memória) que se, no ponto mais alto do Serrazim, acenássemos com uma bandeira, seríamos vistos com toda a facilidade na outra propriedade que o Avô tinha na colina fronteira, as Quelhas, e vice-versa. No regresso a Coimbra, trazíamos uma pinha ou uma pedra gira que encontrássemos nestas visitas, nas quais não raro apareciam caseiros chatíssimos que “torravam” a cabeça do Avô (e eu compreendo, hoje, um pouco o que o Avô tinha de aturar).


O Avô morreu há anos, mas muitos de nós (como eu) continuamos verdadeiramente a gostar de ir a Poiares. Ainda lá estive no passado dia 26, no meio de um nevoeiro incompreensível, com a minha Mana e o meu Tio ZN. Foram, não obstante aquela bruma espessa e por vezes incómoda, umas horas bem passadas! J Já não há, é certo, enormes listagens de propriedades, já não se percebem rendas de jeito, o casarão da Risca-Silva agoniza, mas ainda achamos graça a lá ir. A terra é bonita? Não, é uma vila desinteressante, para não dizer, mesmo, feiosa. Tem atrativos turísticos? Escassos… e os poucos que há resumem-se ao artesanato de madeira de choupo e a uns potes de barro preto. Tem uma culinária rica? Nem por isso… há chanfana (de que eu e a minha Mana gostamos muito), mas chanfana é, no final de contas, carne de cabra velha cozinhada em vinho. Nada disso, porém, interessa: é uma terra que ainda nos diz qualquer coisa. E enquanto permanecerem aqueles modestíssimos vestígios – quase pequenos enclaves, restos de um “império” grande que desapareceu (e que creio jamais tornará, mesmo que nos dediquemos a tentar readquirir algumas das antigas propriedades familiares) – permanecerá, julgo, uma ligação àquelas bandas. Uma ligação de 450 anos, que me permite associar a foto da Avó Clara Augusta (bem como as de todos os outros PL do passado) a algo que ainda é nosso: na verdade, os pequeninos pedaços que nos restaram vieram dela e do seu marido. Uma ligação tão velha não se deve, naturalmente, quebrar. E espero poder sempre, até morrer (daqui a larguíssimas décadas, naturalmente!),  repetir às gerações mais novas:

- Esta propriedade foi da minha trisavó, que se chamou Clara Augusta, e do seu marido, que de tostões fazia milhões. E, não sei se sabes, se estivéssemos a acenar com uma bandeira aqui no ponto mais alto do Serrazim, viam-nos do outro lado do vale do Pereiro, ali naquela colina mesmo à nossa frente, nas Quelhas.

Feliz 2013 para todos os leitores dos Prazos do Serrazim!!! J

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