MEIO VAZIO... OU MEIO CHEIO?!?
Ontem,
pela hora do jantar, troquei meia dúzia de argumentos em torno de um artigo
(que abordava uma matéria fraturante) sobre a realidade portuguesa publicado
numa revista francesa. O tema era tratado de uma forma bastante intensa, sendo
que o articulista (talvez também por esse motivo, mas certamente, e sobretudo,
devido à ignorância que, para além-fronteiras, grassa sobre o nosso país)
traçava, a pinceladas largas, um retrato de Portugal que, em determinados
aspetos, estava longe de corresponder à realidade. Foi este, mais do que o
assunto abordado na publicação, o motor da divergência. Tudo girava, afinal, em
torno de uma velha questão: por definição, o que vale mais? Falar-se no assunto
(no caso, na experiência portuguesa) ainda que se corra o risco de se
veicularem informações e dados menos corretos, ou pura e simplesmente não se
abordar a temática por não termos elementos suficientes disponíveis nem a
necessária segurança para aferir da sua bondade (isto é, não se recorrer sequer
ao nosso país a título de objeto de estudo)? Eu sustentava a primeira
abordagem: importa falar, ainda que proclamando algumas burrices (ancorado na
convicção de que é mais fácil, nestes domínios, corrigir um erro relativamente
a um cenário preexistente do que explicar ex
novo toda uma realidade a leitores franceses, em regra pouco inclinados à
análise do caso nacional); a contraparte, suspeito bem, encarava este
raciocínio com muitas (e porventura justificadas) reservas.
Na
verdade – concluo eu, tendo reservado dois minutos adicionais ao tema, enquanto
fazia a barba, hoje de manhã – também nestes domínios se tem de aplicar o velho
método de Hespanha. AMH ensina-nos
que “nunca podemos avaliar um instituto
jurídico descontextualizado do seu âmbito sociocultural e económico de
aplicação” e o que se refere especificamente ao direito também se aplica
(como é evidente…) a grande parte das situações do nosso quotidiano. À clássica
hesitação entre saber se o copo está meio vazio ou meio cheio, mais do que uma
postura otimista ou pessimista (ou de um otimismo realista, como advoga o meu
Pai ser a sua maneira de ver o mundo), mais do que fatalismos e ditames
políticos e religiosos, mais do que constrangimentos sociais e culturais, interessa,
creio bem, a situação concreta em análise. Vale, também aqui, o estudo de caso
que quer os juristas, quer os devotos da micro-história (quer ainda os juristas
devotos da micro-história, como o cultivador destes prazos!) tanto apreciam. E tal
aplica-se a inúmeras situações da nossa vida. Eu, enquanto a gillette (que na verdade é Wilkinson, mas who cares) subia e descia pelo pescoço e bochechas, lembrei-me logo
de meia dúzia delas. E muitas mais, certamente, haverá. Por exemplo, no
trabalho intelectual. Tipos obsessivos, como eu, acham que o que se faz está
sempre bastante mau e/ou incompleto e tendemos a fazer sucessivas revisões
sobre revisões. Quando um artigo está praticamente pronto, parece-nos sempre
ainda cheio de imperfeições, de arestas a limar: uma referência legal em falta
aqui, um documento que não citámos acolá, o autor que inadvertidamente
esquecemos, a nota de rodapé que se revelou desnecessária, a conclusão que
parece coxa… É verdade que está praticamente pronto para seguir (o copo parece
meio cheio), mas, a nosso ver, ainda falta muita e muita água para o
locupletar. Ou, por outro lado, nas nossas crenças – sejam elas políticas,
religiosas, culturais. Ou se é ou não se é (o que não significa, obviamente,
que tenhamos de concordar com todas as linhas de ação dos grupos e correntes a
que pertencemos). Se alguém me vem dizer que é profundamente ecologista e se
acha muito empenhado na construção de um mundo mais “verde” mas, depois,
acrescenta que jamais participou numa atividade conjunta ou desenvolveu
qualquer esforço individual em prol da causa, eu pensarei ato imediato “Ecologista uma ova; o que és é um mandrião
com mania”. Para ele, o copo está meio cheio; para mim, inapelavelmente
meio vazio – e a tender para se esvaziar de todo muito rapidamente. Outra
hipótese – esta um pouco menos profunda – são aquelas pessoas que afirmam
desempenhar determinadas funções, ou viver em certos sítios, ou conhecer este e
aquele e, posteriormente, vêm esclarecer-nos “não ser bem, bem assim”. “Eu
afinal não moro bem, bem em Lisboa… mas sim na zona de Cascais… enfim, é mesmo
em Alcabideche. Por isso não posso chegar ao Saldanha em 7 minutos…”; “eu disse-te que conhecia muito bem o Prof.
X, mas não é bem, bem assim… vi-o uma vez, na cantina da faculdade. Ah! E a
minha prima conhece a filha da secretária dele. É um bom contacto, não achas? (na
verdade, o que eu acho é… GRRRRR!!). A meu ver, o copo, aqui, está a resvalar
para o precipício… parte-se e depois jamais se voltará sequer a equacionar a
possibilidade de se encher. Ou mesmo nos compromissos profissionais (“Eu vou, mas só fico até às 11, porque estou
contratado a tempo parcial. Precisam da minha ajuda? Contratem-me! Se não,
paciência!...). Esta alma achará que o líquido contido no copo já
ultrapassou generosamente a fasquia dos 50%; eu, pelo contrário, diviso com
dificuldade a existência de qualquer gotinha remanescente no seu fundo. Finalmente,
algo de idêntico se passa nas relações entre as pessoas – sejam elas
profissionais (“Eu trabalho com ele, mas
não me peçam para o defender em público! Já chega o que faço!” – ai, ai,
ai… não ter orgulho em “vestir a camisola” é, para mim, equivalente a cacos de
copo vazios espalhados por toda a sala), de amizade (“Não me peças para a convidar. Eu tomar um cafezinho a meio da manhã
com ela ainda tomo, agora desafia-la para vir jantar connosco?!”) e
amorosas. No que toca a estas últimas, a imagem do copo, no meu caso, atrapalha
logo nos domínios do (para mim, insondável e pouco apetecível) conceito de
“relação aberta”, em que por vezes se está junto e noutras (quer seja em
público – “porque, afinal, é embaraçoso
ser visto com tal pessoa” ou “enfim,
ela não pertence ao nosso mundo, jamais se iria integrar; é até um favor que
lhe faço” – quer em privado) não. Este é um dos casos em que, para mim, o
estudo da situação em concreto conta pouco: ou se está, ou não se está.
Relações a meio gás são uma coisa estranha, do género de um avião sem uma asa,
ou de um cantor com soluços crónicos, ou de um professor com terror de
multidões: têm tudo para não funcionar. E quem é que gosta de apoiar causas
perdidas e se meter em desafios condenados à partida? Eu não! Comprometimentos
deste jaez têm de ser assumidos pelas partes envolvidas; caso contrário, o copo
está praticamente seco… e não há, ali, o que se possa chamar relação. Amizade
(colorida ou não), empatia, sistema-anti-aborrecimento, o que quiserem… tudo é
possível, menos relação (porque uma relação implica compromisso, e os
compromissos exigem copos bem cheios, a transbordar). Mas, ainda sulcando estas
águas negras e fundas dos relacionamentos humanos, já tenho menos certezas
noutras situações… Conheço casos em que se afirma haver uma relação mas uma das
partes está 4/5 do tempo numa parte do mundo e a outra a milhares de
quilómetros de distância; outros em que cada um mora no seu país, e pretendem
continuar assim durante muitos e bons anos; outros ainda (e estes talvez sejam
os mais complicados) em que os anos se sucedem e nada de concreto se diz, entre
os interessados, no sentido de se dar um passo à frente: há sempre uma “tensão
pré-relação”, que se arrasta durante larguíssimas dezenas de meses, mas nenhum
ensaia sequer um avanço para outro patamar. Nestas situações, por onde andará o
nível da água do copo? Eu – rogando aos céus para jamais cair numa espiral
deste género – respondo com toda a humildade:
-
Não sei! E não me peçam para olhar para o copo e ver se está meio vazio ou
meio cheio. Nestes casos, o breu é tão profundo que eu nem o copo vejo.
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