Monday, January 14, 2013

CASAS


Uf! O dia acabou, por fim – jornada longa, de início da época das frequências, com os alunos frenéticos com dúvidas de última hora, cansados e irritadiços pelas horas suplementares de estudo e as noites mal dormidas em virtude do trabalho acumulado que é preciso despachar o melhor e o mais rapidamente possível – e, como sempre me acontece nestas alturas (em que a terrível enxaqueca acena, como que a dizer “Abusa, abusa, e amanhã terás notícias sérias a meu respeito”), não me apetece fazer nada de especial. Por isso, depois do jantar, e antes de retornar à base, andei a deambular um bocado pelo facebook (divertimento barato e inofensivo para quem quer torrar, em actividades pouco exigentes, um quarto de hora generoso). Por vezes, naquele espaço, encontram-se fotos, posts e comments que, possivelmente graças a uma conjunção de atividade cerebral descompassada, descompressão e coincidência, nos fazem pensar mais do que três minutos em determinado assunto. Desta feita, o que me despertou a atenção – pasmem – foi uma longa série de fotos de uma casa para arrendar. A casa está totalmente mobilada, com todos os pertences de quem a habita e foi – acho que um tanto despudoradamente (não fosse ela tão anódina a ponto de motivar a composição desta prosa) – ferozmente fotografada para ser anunciada a eventuais interessados em lá morar durante um período relativamente curto, provavelmente durante a ausência dos seus proprietários.
Há, aqui chegados, que fazer duas clarificações: por um lado, não é estranho que eu tenha reparado numa sequência de fotos deste género (eu gosto efetivamente de casas, de ver como são construídas e divididas); por outro, enquanto amante confesso e impenitente de velharias, não resisto a “cheirar” (da forma mais discreta possível, naturalmente) os interiores que se me deparam, na mira de por lá encontrar qualquer peça curiosa (quem gosta de antiguidades e afins sabe que metade do saber acumulado resulta de ver e padronizar o mais possível). Portanto, era quase inevitável que, deparando-me com as mesmas, fosse ver as fotos – não por querer arrendar o imóvel, mas para perceber como ele era.
No entanto, o que me impressionou, no caso desta casa (o jogo barato de palavras indicia que estou verdadeiramente cansado! :p) não foram as suas divisões e vistas desafogadas mas feiosas, mas o pouco carisma que delas exalava. Eu (por motivos absolutamente alheios à minha pessoa: as coisas já eram mais ou menos assim quando apareci) estou habituado a casas a transpirar personalidade e negligenciando o que é “clean”, ou regulamentar, ou insípido, ou (não me lembro de outra palavra, desculpem a franqueza), mesmo, banal. Não falo de interiores luxuosos, nada disso!, nem de habitações esplendorosas, mas apenas de espaços muito vividos, repletos de objetos também eles muito vividos e carregados de historietas, escorados em livros e, acima de tudo, brutalmente personalizados. Pensemos num par de exemplos.
Na casa das fotos, vê-se a secretária do dono do imóvel – que, tal como eu, é jurista e dedica-se sobretudo à investigação e à docência. O móvel é anonimamente correto e frio, hirto na sua regimental cor de faia, sem  mais objetos pessoais que uma foto, uma jarra (acho eu…) e meia dúzia de canetas e livros. Que diferença da minha velha escrivaninha – vasta mas já bastante surrada depois de anos de uso intenso, herdada do meu Pai. Está locupletada de lápis e material de escritório, as suas gavetas e escaninhos repletos com fragmentos da minha vida desde sempre (e também alguns da vida dos meus familiares e amigos mais próximos). Por todo o móvel acumulam-se pequenas insignificâncias que o personalizam: aqui um barco numa garrafa, peça rudimentar feita há que tempos pela minha Tia T. segundo as instruções da Perlin. Ficou perfeito? Não. Mas a minha tia tinha na altura para aí uns 14 anos, e eu 7, e adorei aquele barco parecido com as histórias de piratas. Ali um desenho do meu Tio ZN, acolá um outro, da minha Tia I. Ao lado, um barco que o meu Pai me trouxe há centúrias de uma viagem à Madeira e o globo que tenho desde que me lembro, ao qual está encostada uma fotografia de uma família goesa de oitocentos. Atrás de tudo, uma representação barata dos meus queridos painéis de S. Vicente, que refletem uma antiga caixa de rapé que pertenceu a um antepassado qualquer. Dentro de uma caixa de laca lascada, vinda da Covilhã, milhares de pequenos nadas sem interesse nenhum, mas importantíssimos para mim. E isto entre muitas e muitas outras coisas!
Na casa das fotos, dá-se destaque a uma estante com livros, que me pareceu magra e pouco mexida. Em minha casa, e na maioria das casas dos que me são próximos, os livros são sempre mais do que as prateleiras e jamais permanecem imóveis e intocados durante muito tempo, para além de se acotovelarem, freneticamente, em todos os espaços disponíveis. Mas não se limitam a isso: à frente dos livros há fotos e algumas outras peças – mas nunca em quantidades suficientes para nos impedirem de acedermos com toda a liberdade aos volumes. Os livros mudam de posição, de divisão, de estante e prateleira com bastante frequência; perdemo-los, encontramo-los e voltamos a perdê-los. Na foto da casa, todos têm as lombadas imaculadas e cara de serem lidos com quase reverência; em minha casa, muitos estão já parcialmente gastos pelo uso e pelas muitas mãos pelas quais já passaram.
Na casa das fotos, os móveis da sala são iguais aos de mil outras salas, e quase parecem viver enclausurados na obsessão de não saírem um milímetro dessa normalidade. Por cima da mesa cor-de-faia há uma taça cor-de-faia. No sofá desmaiado não há uma almofada. O aparador estilo-sem-estilo tem meia dúzia de louças de estilo-sem-estilo. Talvez tudo tenha sido caríssimo, talvez tudo seja design, mas o que é que distingue aquelas peças das demais? Em minha casa, a mesa está gasta e usada, e as cadeiras também, mas estão-no saudavelmente, pelos muitos que por lá passaram. Nos louceiros da zona de jantar há pilhas de pratos e chávenas e copos que contam pilhas de histórias e historietas. São todos diferentes uns dos outros, e cada um representa uma faceta dos que lá habitam. As nossas refeições são espiadas por damas chinesas em galanteios de porcelana mandarim, por cavaleiros agressivos de olhos em bico, por senhoras japonesas passeando em jardins, por chávenas que ecoam o bruaahh dos salões senenses de princípios do século passado, por compoteiras que lembram doces, por pratos que só de os vermos nos fazem recordar sobremesas especiais, por uma lamparina pequenina que os Avós trouxeram da sua primeira ida a Roma, no ano santo, em 1950, por um gato de Delft, etc., etc. Os sofás estão cobertos de almofadas às riscas, onde apetece sentar e preguiçar. E muito do que lá está, quer seja antiguidade vetusta, quer seja inovação tecnológica de ontem, é personalizado. Creio que deve ser uma das consequências de fazer parte de uma família grande e assaz criativa. Assim de repente, lembro-me da cadeira da minha Mana. É uma cadeira velha, que já existia muito antes de ela existir, e só lá em casa há quatro iguais. Mas há uma que é dela, e todos sabemos que é aquela (tem um dos “arrebiques” do espaldar ligeirissimamente partido), e é lá que a minha irmã costuma deixar o seu casaco e carteira. Ou da mesinha da Mãe: uma velha mesa gate leg (ou holandesa), com uma gavetinha onde a minha progenitora, na infância, guardava os seus pertences. Hoje, a minha Mãe tem dezenas de gavetas, e não precisa daquela para nada, mas, mesmo assim, ela mantém o seu estatuto. Ou, no hall, a gaveta do Pai, estreita e profunda, na enorme cómoda que lá está. Acho que jamais a abri sem o Pai me mandar ir lá buscar alguma coisa. Ou a almofada do Luís, que os Pais me trouxeram de Paris. E a mania – ou o hábito, porque estas coisas vão acontecendo, sem pressões – vai-se prolongando à medida que as gerações se renovam. Até mesmo a minha sobrinha pequenina já tem a porta da Zabi (uma porta exatamente ao seu nível, de um velho móvel faqueiro Henrique VIII agora adaptado a outros fins, onde a Zabi gosta de esconder alguns dos seus “tesouros” e que tem gravado um dragão a que ela acha graça), e a tacinha da Zabi com os peixinhos de plástico da Zabi. E os exemplos podiam multiplicar-se.
Na casa das fotos, os quadros são todos bastante anónimos (serigrafias banais, um mapa do século XVIII repetido até à exaustão pelas paredes de muitas outras casas) ou, então, fotografias dos donos, desde a sua infância até à atualidade. Em minha casa, as paredes estão pejadas de quadros feitos pelos membros da família que gostam de rabiscar, ou então por outras telas e aguarelas que contam alguma história: ofertas de amigos dos Pais, velhos salvados de outras moradas da família, coisas assim. Existem muitas fotos – o que se justifica por sermos muitos – e estão longe de se limitar a uma geração. Na sala, por exemplo, percorrem-se laaaargas décadas, de forma um tanto desordenada, desde os meus trisavós até à Zabi. E as molduras estão longe de ser todas uniformes. Algumas, pobres delas!, estão já meias desconjuntadas, e quase nenhuma combina com as que estão ao lado. Velhas molduras orientais emparceiram com caixilhos contemporâneos, fotografias tiradas em modernas máquinas digitais ombreiam com velhos daguerreótipos.
Na casa das fotos, tudo é correto, arrumado, bonitinho, exatamente como deve ser. Na casa das fotos, na verdade, tudo é aborrecidíssimo! Eu, quando vejo uma casa assim, penso que os seus donos devem ser um tédio; e imagino o desconfortável que me sentiria se, ao regressar depois de um dia intenso de trabalho, me deparasse com aquele ambiente tão inofensivo quão politicamente correto. Se vivesse numa casa destas, não teria uma almofada minha ao lado do meu candeeiro (o tal que compraram expressamente para que eu lesse melhor encostado ao meu canto do sofá) nem o cantinho da mesa que também é “meu”, onde repousa a revista e o livro que estou a ler na altura. Atrás de mim não se levantariam, até quase ao teto, estantes repletas de livros (onde ruge um velho leão da China – chorando a morte de uma Macau que se desvaneceu ou urrando de prazer por se encontrar num ambiente amável?) – basta esticar a mão e puxar um! À minha frente, na velha de mesa de jogo, vários pares de olhos de várias épocas e gerações não me fitariam e, em cima, o quadro do Hipólito Andrade representando uma viela da baixinha não teria qualquer significado.



Provavelmente, se os donos da casa das fotos vissem a minha, morriam: achá-la-iam, decerto, “demasiado personalizada”. Eu, se tivesse de viver na deles, sufocava com tanto anonimato.
Dizem que viver num ambiente inócuo só tem vantagens. Acredito… mas, assim de repente, não me lembro de nenhuma!

2 Comments:

At 5:13 PM, Blogger Teresa said...

Gostei :-)

 
At 11:05 AM, Anonymous Joana said...

ahhh...eu só reconhecia a "minha" cadeira pelo local onde ela estava colocada! que pontaria...tinha logo de escolher a que já está estragada :P

 

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