ESTRANHOS CRIOULISMOS
Durante algum tempo,
eu, como todos os que (não somos muito, creio) oscilamos entre as águas do
direito e os rápidos da história, hesitei, uma vez feito o curso: em qual delas
mergulhar? Continuar a aperfeiçoar a técnica jurídica ou aprender uns truques novos
na piscina dos vizinhos, que desde há muito me vinha chamando a atenção? – era este
o grande dilema que me atormentava.
Acabei, como seria de esperar, por me
decidir a ir dar um mergulho na dita piscina, deixando, porém, prudentemente, a
minha toalha estendida à beira da lagoa jurídica. Os proprietários do quintal do lado, sejamos francos, trataram-me bem (talvez não com todas as atenções de
que eu me considerava merecedor, mas de forma inegavelmente hospitaleira); no
entanto, no final de contas, e apesar de o splash
me ter sabido às mil maravilhas, havia ali algo que – pelo menos naquela
altura – me fazia sentir ligeiramente incomodado. Um friozinho como aquele que
nos sobe espinha acima quando saímos da água e a temperatura exterior não está
tão amena quanto imaginávamos ou desejávamos. O problema não residia, então,
nas águas – tépidas e mansas, fáceis de sulcar como velhas conhecidas que eram –,
mas sim nos nadadores-salvadores que as rodeavam, nos rapazes que, de boia à
cinta, pasmavam a olhar para elas, sempre hesitando em mergulhar mas criticando
quem o fazia, nas matronas que, recostadas na relva que as circundava,
comentavam os novatos. Para continuar ali, percebi, teria de andar de boia atrás,
criticar como as ditas senhoras e imitar as passadas dos nadadores salvadores.
Ora, eu não sou grande amante de flutuadores artificiais, a minha forma de
satirizar diferia muito da das veneráveis damas e sentia-me mal, artificial e desengonçado quando
reproduzia as coreografias dos salva-vidas. A água era fantástica, mas as
margens não me pareceram tão aprazíveis quanto eu as via à distância. Para
mais, comecei a reparar em pequenos detalhes que, apesar de insignificantes, me
aborreciam: a relva estava mal aparada, alguns azulejos da piscina ameaçavam
cair, os copos de onde as damas sorviam as suas bebidas tinham marcas de
dedadas e estavam lascados. Ora, eu sempre preferi um relvado impecável,
edifícios reluzentes espelhando abastança e cristais límpidos a vidro
maltratado, coisa que via do outro lado da cerca, onde tinha deixado a toalha
desenrolada, caso desejasse regressar. Particularidades, afinal, de que não
estava, nem estou, disposto a abdicar, e que faziam igualmente parte da minha
maneira de ser.
Poderia ter gasto o resto da minha vida nesta indecisão: ou permanecer nas águas afáveis mas de
margens hirsutas, onde seguramente me arranharia (e é inevitável não acorrer à
memória, quando aludimos a margens que oprimem, a velha e tão verdadeira frase
de BB!) e, hipocondríaco como sou, me sentiria infeliz; ou voltar à base,
tentar novamente imergir nas profundezas das águas do outro lado da cerca, que
por vezes talvez me parecessem frias, mas cujas bordas eram, garantidamente,
sempre esplendorosamente tropicais?Tudo parecia estar errado: a água morna
estava de um lado da cerca, e o cenário (para mim) correspondente do lado oposto! Por que
razão não poderia beber um gin à
beira da piscina de que gostava? Foi então que tive a ventura de ouvir dois
testemunhos que mudaram a minha maneira de ver as coisas. Por um lado, uma alma
avisada advertiu-me de que o muro entre as águas existia somente para haver
espaço para a entourage de ambas se
sentar mais comodamente, sem pisar os vizinhos – mas que os copos de gin passam bem sobre os muros, desde que
tenhamos cuidado para não se partirem. Por outro, outra alma – mais avisada
ainda – perguntou-me, disparando um tanto à queima-roupa: e o que é que nos impede ou de abrir um canal entre ambas, ou, mesmo,
de escavar uma terceira piscina, a meio das outras duas? Estás com medo? E eu, obviamente, sabia que, desde
que pudesse drenar um pouco das águas da piscina para a lagoa e vice-versa,
nada me assustaria. Mais: que tudo se revelaria verdadeiramente confortável.
Era, afinal, uma questão de engenharia, sendo que, felizmente!, outros já
tinham começado, há muito, a abrir esses utilíssimos canais!
Foi nessa altura que me apercebi de que, tal como em quase tudo, também no mundo da investigação a
mestiçagem é suscetível de se revelar uma mais-valia. Que, na verdade, ser-se “crioulo
de saberes” pode não só ser enriquecedor como (muito!) divertido. E que – ainda
bem para nós! – não há dois crioulos iguais pelo que, também graças a isso,
jamais nos confundiremos no cenário pardacento dos sangues intocados! Ergamos,
pois, os nossos gins e, depois de uma
golada, toca a mergulhar sem receios! Em ambas as piscinas, está claro!
2 Comments:
Concordo em pleno.
A mestiça.
Cláudia, eu acho que parte da graça (e do brilhantismo, está claro!) e da empatia do nosso pequeno "grupo" (ou o que lhe quisermos chamar) de gente que gosta de estudar e debater as mesmas coisas (ou seja, esses e essas lá da "rede indo"!) é precisamente o sermos todos orgulhosamente... crioulos! ;)
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