“NÃO SE PODE FALAR DE ARTES PLÁSTICAS NO IKEA”
Li, há poucos dias, um
romance do qual gostei muitíssimo – e que superou as (já altas mesmo antes de lhe
pegar, desde logo devido a uma entrevista com a autora no “Câmara Clara” a que
tinha, por mero acaso, assistido numa noite leirense) minhas melhores
expetativas. Falo de “A Cidade de Ulisses”. Ofereceu-mo em Maio a minha tia T
(a tal tia cinéfila de que falei dois posts atrás), e desde o momento em que
abri o embrulho fiquei cheio de vontade de o “devorar”. Pois bem: chegado o
momento, degluti-o, de facto, rápida e prazenteiramente.
Este novo romance de
Teolinda Gersão, que já vai pelo menos na segunda edição, parecia reunir, a meu
ver, algumas características que o tornavam especialmente aliciante: por um
lado, era passado em Lisboa (10 pontos!); por outro, os seus personagens
oscilavam entre (sobretudo) o mundo das artes e o do direito (outros tantos
pontos!). Em paralelo, assentava numa história de amor que… acabava bem (e já
são 30 pontos!). Em nada me defraudou, e se é certo que tenho fama –
justificada ou não, essa não é questão para ser aqui debatida – de ser um prof.
“agarrado” às notas, é também verdade que não sinto qualquer pejo em atribuir,
na qualidade de leitor satisfeito, tão alta pontuação a “A Cidade de Ulisses”.
Poder-se-á argumentar
que a escrita de Teolinda é, por vezes, talvez um bocadinho conservadora de
mais, o que pode comprometer uma certa fluidez da narrativa. No entanto,
existem tantas passagens (a meu ver) bem sucedidas na obra, tantas cenas em que
é fácil uma pessoa rever-se, tanta empatia criada com os personagens, que tais
pecadilhos (a serem-no) se perdoam com ligeireza. Para além das referências ao
casal Paulo/Cecília, que de alguma forma confirmam a minha tese que uma relação
com alguém que seja da mesma área do que nós constitui sempre um desafio
suplementar (há que procurar afastar o espírito de competição, o que não sei se
será sempre fácil), bem como das tentativas de “desmistificação” de alguns
lugares comuns em torno de Pessoa e de Vieira/Arpad, houve certos excertos do
livro dos quais gostei particularmente, e que não resisto a reproduzir.
Um deles é a frase que
escolhi para título deste post. Note-se: a frase em questão NÃO diz diretamente
mal do IKEA, ou, pelo menos, eu não a entendi nesse sentido. Não tenho nada
contra o IKEA (cujo fundador é da mesma terra que um dos heróis da minha
infância, o Emílio, essa genial criação de Astrid Lindgreen), acho que todos os
que têm muito mais livros do que estantes (como é “mal” da minha família e meu)
defendem que o criador das baratérrimas billy
tem direito a um lugar confortável no céu, e os personagens do livro – que são
gente das artes – vão ao IKEA. O que eu DETESTO (e eis a razão de ter apreciado
tanto aquele excerto) são aqueles e aquelas (e há muitos aqueles e aquelas
deste género, na minha geração) que, não tendo um pingo de imaginação, mobilam
as suas casas “à IKEA”, criando uma repetição incompreensível e nauseante de
cenários ao longo de todo o país. Quem vê uma daquelas salas ou quartos, vê-os
todos! Contudo, aos que recorrem ao IKEA para, com os produtos que lá se
encontram, criarem situações giras e originais (e não muito caras,
acrescente-se), tiro o chapéu. Eu sei que poucos são os que têm um gosto
parecido com o meu, que aprecio cadeiras de pregos à mistura com quadros
abstratos, e escrivaninhas do século XVIII cheias de post-its e papelada,
candeeiros modernos coloridos ao lado de vetustas jarras mandarim, e tudo isto
densamente regado por livros de todos os tamanhos e feitios e muitos rabiscos e
esboços. Eu sei… e ainda bem! Mas aquelas divisões sem alma, sem vivências,
reproduzidas até à exaustão… são um tanto “hospitalares”, não concordam?
Outra frase de que
gostei muito (e acho que posso acrescentar que muitos daqueles que apreciam
desenhar a compreendem bem) foi:
“Pintar,
descobri, nunca acabava. Apenas era interrompido por tarefas desprezíveis e
inúteis como comer, lavar as mãos, tomar banho, ir para a cama, dormir. Mas no
dia seguinte recomeçava, como se não tivesse sido interrompido. Cada dia era
novo e trazia novas coisas, o jogo de pintar nunca se gastava” (pp
79 e 80)
Eu apenas
acrescentaria: pintar é o melhor anti-stress do mundo! J
Também me identifiquei
totalmente (mas não digo com qual das versões apresentadas, até porque caminho
mais no sentido de uma terceira visão, mesclando características das outras
duas) com esta descrição, que, creio, nos assalta a todos, investigadores com
trabalho entre mãos:
“Eram
dias produtivos, tranquilos, em que a minha inquietação de modo algum
sossegava. O meu medo de não levar o trabalho até ao fim, de não encontrar a
solução, de perder o fio condutor e de ficar de repente perdido no vazio e no
escuro. Que eram a outra febre de criar, que também por vezes me invadia.
Quando me esquecia das horas e não tinha fome nem sono, não queria ser
interrompido e trabalhava de modo obstinado, numa espécie de desespero, euforia
ou delírio (…)
Trabalhavas
de um modo muito diferente do meu. Reunias pacientemente toda a informação que
procuravas, tirando notas em pequenos cadernos. Ao contrário de mim, que tomava
apontamentos em folhas soltas que depois perdia, e nunca tive cadernos, os teus
andavam contigo para todo o lado. Aparentemente encontravas sempre alguma coisa
a guardar – a salvar – em qualquer lugar improvável.
Mas
por outro lado não parecias ter pressa. Paravas muitas vezes no meio de um
trabalho e podias levar muito tempo a recomeçar. O que não te angustiava, criar
nunca era para ti agressivo. Como se tivesses uma capacidade infindável e todo
o tempo do mundo pela frente” (pp 113)
Ou a descrição dos
receios (de uma das partes, pelo menos) de se viver uma relação a dois,
efetivamente comprometida (pp 176, sobretudo, 177).
O livro acaba, a meu
ver, da melhor forma: bem e rumo ao Brasil, ao nordeste que, apesar de nunca lá
ter ido, ainda me (nos) diz alguma coisa através das brumas dos Cavalcantis, de
uma trisavô que se chamou Joaninha, de engenhos e fazendas e de um parente historiador
com o nome impossível de Capistrano. Ou seja, tem um final lusófono e tudo!
Inês Pedrosa, na LER,
terá comentado “A Cidade de Ulisses” nos seguintes termos: “uma história de amor que acaba bem. Um escândalo, por conseguinte,
segundo as normas do romance contemporâneo”.
Ora, quem não gosta, de
vez em quando, de contemplar ou participar num destes “escândalos” pouco
ofensivos? Fica o convite e a sugestão: escandalizem-se com o novo livro de
Teolinda. Saber-vos-á, seguramente, bem!