Wednesday, June 20, 2012

“NÃO SE PODE FALAR DE ARTES PLÁSTICAS NO IKEA”


Li, há poucos dias, um romance do qual gostei muitíssimo – e que superou as (já altas mesmo antes de lhe pegar, desde logo devido a uma entrevista com a autora no “Câmara Clara” a que tinha, por mero acaso, assistido numa noite leirense) minhas melhores expetativas. Falo de “A Cidade de Ulisses”. Ofereceu-mo em Maio a minha tia T (a tal tia cinéfila de que falei dois posts atrás), e desde o momento em que abri o embrulho fiquei cheio de vontade de o “devorar”. Pois bem: chegado o momento, degluti-o, de facto, rápida e prazenteiramente.

Este novo romance de Teolinda Gersão, que já vai pelo menos na segunda edição, parecia reunir, a meu ver, algumas características que o tornavam especialmente aliciante: por um lado, era passado em Lisboa (10 pontos!); por outro, os seus personagens oscilavam entre (sobretudo) o mundo das artes e o do direito (outros tantos pontos!). Em paralelo, assentava numa história de amor que… acabava bem (e já são 30 pontos!). Em nada me defraudou, e se é certo que tenho fama – justificada ou não, essa não é questão para ser aqui debatida – de ser um prof. “agarrado” às notas, é também verdade que não sinto qualquer pejo em atribuir, na qualidade de leitor satisfeito, tão alta pontuação a “A Cidade de Ulisses”.

Poder-se-á argumentar que a escrita de Teolinda é, por vezes, talvez um bocadinho conservadora de mais, o que pode comprometer uma certa fluidez da narrativa. No entanto, existem tantas passagens (a meu ver) bem sucedidas na obra, tantas cenas em que é fácil uma pessoa rever-se, tanta empatia criada com os personagens, que tais pecadilhos (a serem-no) se perdoam com ligeireza. Para além das referências ao casal Paulo/Cecília, que de alguma forma confirmam a minha tese que uma relação com alguém que seja da mesma área do que nós constitui sempre um desafio suplementar (há que procurar afastar o espírito de competição, o que não sei se será sempre fácil), bem como das tentativas de “desmistificação” de alguns lugares comuns em torno de Pessoa e de Vieira/Arpad, houve certos excertos do livro dos quais gostei particularmente, e que não resisto a reproduzir.

Um deles é a frase que escolhi para título deste post. Note-se: a frase em questão NÃO diz diretamente mal do IKEA, ou, pelo menos, eu não a entendi nesse sentido. Não tenho nada contra o IKEA (cujo fundador é da mesma terra que um dos heróis da minha infância, o Emílio, essa genial criação de Astrid Lindgreen), acho que todos os que têm muito mais livros do que estantes (como é “mal” da minha família e meu) defendem que o criador das baratérrimas billy tem direito a um lugar confortável no céu, e os personagens do livro – que são gente das artes – vão ao IKEA. O que eu DETESTO (e eis a razão de ter apreciado tanto aquele excerto) são aqueles e aquelas (e há muitos aqueles e aquelas deste género, na minha geração) que, não tendo um pingo de imaginação, mobilam as suas casas “à IKEA”, criando uma repetição incompreensível e nauseante de cenários ao longo de todo o país. Quem vê uma daquelas salas ou quartos, vê-os todos! Contudo, aos que recorrem ao IKEA para, com os produtos que lá se encontram, criarem situações giras e originais (e não muito caras, acrescente-se), tiro o chapéu. Eu sei que poucos são os que têm um gosto parecido com o meu, que aprecio cadeiras de pregos à mistura com quadros abstratos, e escrivaninhas do século XVIII cheias de post-its e papelada, candeeiros modernos coloridos ao lado de vetustas jarras mandarim, e tudo isto densamente regado por livros de todos os tamanhos e feitios e muitos rabiscos e esboços. Eu sei… e ainda bem! Mas aquelas divisões sem alma, sem vivências, reproduzidas até à exaustão… são um tanto “hospitalares”, não concordam?

Outra frase de que gostei muito (e acho que posso acrescentar que muitos daqueles que apreciam desenhar a compreendem bem) foi:

“Pintar, descobri, nunca acabava. Apenas era interrompido por tarefas desprezíveis e inúteis como comer, lavar as mãos, tomar banho, ir para a cama, dormir. Mas no dia seguinte recomeçava, como se não tivesse sido interrompido. Cada dia era novo e trazia novas coisas, o jogo de pintar nunca se gastava” (pp 79 e 80)

Eu apenas acrescentaria: pintar é o melhor anti-stress do mundo! J

Também me identifiquei totalmente (mas não digo com qual das versões apresentadas, até porque caminho mais no sentido de uma terceira visão, mesclando características das outras duas) com esta descrição, que, creio, nos assalta a todos, investigadores com trabalho entre mãos:

“Eram dias produtivos, tranquilos, em que a minha inquietação de modo algum sossegava. O meu medo de não levar o trabalho até ao fim, de não encontrar a solução, de perder o fio condutor e de ficar de repente perdido no vazio e no escuro. Que eram a outra febre de criar, que também por vezes me invadia. Quando me esquecia das horas e não tinha fome nem sono, não queria ser interrompido e trabalhava de modo obstinado, numa espécie de desespero, euforia ou delírio (…)
Trabalhavas de um modo muito diferente do meu. Reunias pacientemente toda a informação que procuravas, tirando notas em pequenos cadernos. Ao contrário de mim, que tomava apontamentos em folhas soltas que depois perdia, e nunca tive cadernos, os teus andavam contigo para todo o lado. Aparentemente encontravas sempre alguma coisa a guardar – a salvar – em qualquer lugar improvável.
Mas por outro lado não parecias ter pressa. Paravas muitas vezes no meio de um trabalho e podias levar muito tempo a recomeçar. O que não te angustiava, criar nunca era para ti agressivo. Como se tivesses uma capacidade infindável e todo o tempo do mundo pela frente” (pp 113)

Ou a descrição dos receios (de uma das partes, pelo menos) de se viver uma relação a dois, efetivamente comprometida (pp 176, sobretudo, 177).

O livro acaba, a meu ver, da melhor forma: bem e rumo ao Brasil, ao nordeste que, apesar de nunca lá ter ido, ainda me (nos) diz alguma coisa através das brumas dos Cavalcantis, de uma trisavô que se chamou Joaninha, de engenhos e fazendas e de um parente historiador com o nome impossível de Capistrano. Ou seja, tem um final lusófono e tudo!

Inês Pedrosa, na LER, terá comentado “A Cidade de Ulisses” nos seguintes termos: “uma história de amor que acaba bem. Um escândalo, por conseguinte, segundo as normas do romance contemporâneo”.

Ora, quem não gosta, de vez em quando, de contemplar ou participar num destes “escândalos” pouco ofensivos? Fica o convite e a sugestão: escandalizem-se com o novo livro de Teolinda. Saber-vos-á, seguramente, bem!

1 Comments:

At 1:39 AM, Blogger coisasnumacaixa said...

que post inspirador. parece-me uma boa sugestão para levar na mala de férias. já me imagino na quinta, no terraço, de pés estendidos para o sol ou na praia a desfolhar as páginas deste tão promissor romance.
quanto ao ikea, concordo em absoluto contigo (o quê???!!!!).

 

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