Janela Indiscreta
Nunca
fui – apesar dos esforços (por vezes desesperados) da minha tia T. – um
verdadeiro cinéfilo. Na verdade, sou, por um lado, demasiado ignorante em
matérias básicas para poder comentar, ainda que muito pela rama, ou, pelo
menos, tomar parte em qualquer debate entre aficionados; e permaneço, por
outro, demasiado preguiçoso para compreender alguns dos novos desafios que
certo cinema e certos filmes acarretam (e não, desta feita não estou a falar da
mítica colaboração luso-francesa da qual resultou o “inolvidável” Pandora!).
Isto para além de uma série de limitações parvas que me tolhem o juízo nestas
matérias: eu GOSTO efetivamente de filmes que acabam bem (e procuro manter-me
sempre fiel a esta regra), e detesto, com todo o coração, tudo o que tenha a
ver com doenças mentais, perturbações psíquicas e afins. O primeiro traço
resulta talvez de, pelo menos até ao presente, ter tido a sorte de, na vida, as
coisas – ainda que por vezes exigindo trabalho árduo – me terem corrido de
feição (ou seja, tudo tem vindo a “acabar bem”), pelo que estou convencido de
que, com algum esforço, essa é uma via sempre possível. O segundo pode advir da
minha veia genealógica. Gosto realmente muito de descender das famílias de que
descendo, mas o historial psíquico de algumas delas – devido a séculos e
séculos de casamentos consanguíneos, que terminaram apenas na aurora do século
XX – cobrou, durante gerações, a fatura pesada de um cortejo de tontinhos e
perturbados que são uma outra face (muito menos cintilante) da medalha
brilhante que se gosta de expor (e que é, geralmente, a que se expõe), e que me
torna especialmente sensível ao assunto.
Tudo
isto, no entanto, para dizer que, apesar de tudo, há filmes – clássicos,
digamos assim, recorrendo a uma designação um tanto estafada – que me marcaram,
e que ainda hoje revejo com imenso prazer (sendo certo que, ao contrário dos
livros, por regra não aprecio nada rever películas). Um deles, e essa é a razão
do título do presente post, é precisamente o Janela Indiscreta (ou, na versão
original, Rear Window), de Hitchcock. Muitos são os aspetos que contribuem para
gostar particularmente desta fita, da qual nunca me canso – sendo que a datada
Grace Kelly, com aquele extraordinário ar
de-loura-impecável-autónoma-apaixonada-que-tudo-planeia-mas-está-sempre-perfeita
não é um dos menos importantes. Mesmo que considere que o James Stewart (burro,
não sabendo a sorte que tem, e dando tudo por garantido) a trate de forma muito
pouco cuidadosa e adequada.
Ora,
nestes últimos dias lembrei-me particularmente do Janela Indiscreta, quer em
Leiria, quer em Coimbra. À semelhança de Stewart, tive de ficar por casa, não
por ter partido a perna, mas por ter sido atacado por uma gripe tenaz da qual
só na 6ª feira me senti verdadeiramente liberto (uf!). Em paralelo, também não
ando para aí de teleobjetiva em punho a espiar os vizinhos. No entanto, entre
os suores e os febrões típicos daquele triste estado de saúde, foi inevitável
que acompanhasse mais de perto o que se passava “do lado de lá”. Ou seja,
janelas fora. Os resultados foram curiosos, e ajudam-nos a perceber o quão
diferentes as pessoas podem ser. Em Leiria, a minha ampla janela dá para um
(também amplo) pátio, sendo que o pequeno apartamento que ocupo, na ala dos
profs, fica no 4º andar. Do outro lado, precisamente à minha frente, descobri
morar não uma Miss Torso, mas o Sr-Lavadeiro-Neurótico. Este personagem, depois
do jantar – e não compreendo, sinceramente, COMO, nem PORQUÊ – passa
quantidades loucas de tempo a lavar a louça. Lava, lava, lava, lava, lava,
lava… durante mais de 40 minutos! Ainda pensei: lavará a roupa também? (mesmo
que me parecesse estranhíssimo que o fizesse na cozinha). Mas não, os objetos que
saem, certamente imaculados, das suas mãos são pratos, copos e tachos. Mas a
verdade é que o Sr-Lavadeiro-Neurótico se dedica a estes afazeres com
verdadeira concentração. Mais, com verdadeira paixão! E lá vai, noite fora,
lavando meia dúzia de peças com tal esmero que, para o fazer, demora tanto
tempo como eu a lavar um serviço completo para 48 pessoas, com pratos rasos a
dobrar! Fica a questão: porque o fará? Afogará, na água e detergente, mágoas
amorosas? Imaginará, ao brandir o esfregão com persistência, que está a afastar
preocupações e inimigos? O manter as mãos em água ajudá-lo-á a rever a matéria
estudada durante o dia, nesta altura de exames? Sentir-se-á tão sozinho que
precisa de ocupar a cabeça desta forma (trata-se, na verdade, de um trabalho
manual, talvez sirva para desanuviar) para não cair num abismo de angústia? Fica
o mistério, tão bizarro quanto, por enquanto, irresolúvel!
Em
Coimbra, desde o meu quarto, presencio cenas bem diversas. No prédio à frente
do nosso, mora um jovem casal, com dois filhos relativamente pequenos. Ora,
esta parelha tem algo em comum com o Sr-Lavadeiro-Neurótico: uma verdadeira,
avassaladora, incontrolável, paixão por lavar… só que, desta feita, roupa. Dia
e noite, durante a semana, fins-de-semana e feriados, faça chuva ou faça sol,
há SEMPRE roupa a ser lavada, estendida, recolhida. Isto numa casa em que moram
quatro pessoas e, a meio tempo, uma empregada. Tudo é suscetível de ser
lavável, para esta dupla frenética: tapetes, lençóis, mosquiteiros, roupa,
roupa e mais roupa… basta ser de tecido, e ser passível de ser sujeito a uma
boa barrela! No entanto, o mais divertido desta (verdadeira) compulsão é ver
como aqueles dois se entendem bem no meio do pendurar roupa, apanhar roupa,
lavar roupa. É com molas na boca e 6 fronhas já secas na mão (ele) e três
camisolas molhadas prontas a pendurar (ela) que mantém longas conversas à
janela; é depois de confirmarem se a roupa pendurada ainda está húmida que ficam
uns momentos a olhar o céu; é a dobrarem roupa que os vejo manter longas e
animadas conversas. Pois… é estranho, mas é em torno do processo de pôr para
lavar um par de peúgas e passar uma colcha já impecavelmente limpa que o casal
em questão (casal verdadeiramente burocrático, com profissões tradicionais)
parece manter as suas rotinas. Parte dos seus momentos a dois parecem ser –
prazenteiramente, aparentemente – compartilhados naquela atividade constante de
lavadeiros modernos, que os parece aproximar e da qual ambos demonstram
genuinamente gostar. Será que começaram a namorar numa lavandaria? – é lícito
perguntar.
É
nisto que dá o tempo forçadamente ocioso que nos garante uma dura gripe entre duas
terras, duas camas e duas janelas e uma quarta constante: vizinhos que adoram
dedicar-se a limpezas. No entanto, que diferença abissal entre ambos os casos!
Num deles, lavar (louça) compulsivamente é a forma de um rapaz gastar
(solitariamente, ao que parece) boa parte das suas noites; noutro, lavar
(roupa) ininterruptamente parece ser um dos modos prediletos de um jovem casal conviver.
Num, recurso contra a solidão? Noutro, reflexo de companheirismo e proximidade?
Em
Janela Indiscreta, as negras suspeitas de Stewart revelaram-se acertadas. No
entanto, eu continuo a crer que as coisas acabam, tendencialmente, bem: por
isso, persisto firmemente convicto de que, um destes dias, o Sr-Lavadeiro-Neurótico
deixará de lado tachos e vasilhas (ou, mais saudavelmente, dedicar-lhes-á
apenas o tempo necessário a uma pessoa normal para os lavar convenientemente) e
gastará o resto da noite a dedicar-se a tarefas mais prazenteiras (ou, pelo
menos, mais variadas, acreditando que lavar louça lhe agrada); bem como em
acreditar que – à semelhança dos meus vizinhos – todos os meios são bons para
se estar com quem se gosta. Mesmo que entre molas e cordas, pilhas de roupa
para pendurar e um cheiro forte a detergente!
1 Comments:
pelo menos as disfunções dos portugueses dão para um aumento de higiene! Podia ser bem pior :D
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