Sunday, June 17, 2012

Janela Indiscreta


Nunca fui – apesar dos esforços (por vezes desesperados) da minha tia T. – um verdadeiro cinéfilo. Na verdade, sou, por um lado, demasiado ignorante em matérias básicas para poder comentar, ainda que muito pela rama, ou, pelo menos, tomar parte em qualquer debate entre aficionados; e permaneço, por outro, demasiado preguiçoso para compreender alguns dos novos desafios que certo cinema e certos filmes acarretam (e não, desta feita não estou a falar da mítica colaboração luso-francesa da qual resultou o “inolvidável” Pandora!). Isto para além de uma série de limitações parvas que me tolhem o juízo nestas matérias: eu GOSTO efetivamente de filmes que acabam bem (e procuro manter-me sempre fiel a esta regra), e detesto, com todo o coração, tudo o que tenha a ver com doenças mentais, perturbações psíquicas e afins. O primeiro traço resulta talvez de, pelo menos até ao presente, ter tido a sorte de, na vida, as coisas – ainda que por vezes exigindo trabalho árduo – me terem corrido de feição (ou seja, tudo tem vindo a “acabar bem”), pelo que estou convencido de que, com algum esforço, essa é uma via sempre possível. O segundo pode advir da minha veia genealógica. Gosto realmente muito de descender das famílias de que descendo, mas o historial psíquico de algumas delas – devido a séculos e séculos de casamentos consanguíneos, que terminaram apenas na aurora do século XX – cobrou, durante gerações, a fatura pesada de um cortejo de tontinhos e perturbados que são uma outra face (muito menos cintilante) da medalha brilhante que se gosta de expor (e que é, geralmente, a que se expõe), e que me torna especialmente sensível ao assunto.
Tudo isto, no entanto, para dizer que, apesar de tudo, há filmes – clássicos, digamos assim, recorrendo a uma designação um tanto estafada – que me marcaram, e que ainda hoje revejo com imenso prazer (sendo certo que, ao contrário dos livros, por regra não aprecio nada rever películas). Um deles, e essa é a razão do título do presente post, é precisamente o Janela Indiscreta (ou, na versão original, Rear Window), de Hitchcock. Muitos são os aspetos que contribuem para gostar particularmente desta fita, da qual nunca me canso – sendo que a datada Grace Kelly, com aquele extraordinário ar de-loura-impecável-autónoma-apaixonada-que-tudo-planeia-mas-está-sempre-perfeita não é um dos menos importantes. Mesmo que considere que o James Stewart (burro, não sabendo a sorte que tem, e dando tudo por garantido) a trate de forma muito pouco cuidadosa e adequada.
Ora, nestes últimos dias lembrei-me particularmente do Janela Indiscreta, quer em Leiria, quer em Coimbra. À semelhança de Stewart, tive de ficar por casa, não por ter partido a perna, mas por ter sido atacado por uma gripe tenaz da qual só na 6ª feira me senti verdadeiramente liberto (uf!). Em paralelo, também não ando para aí de teleobjetiva em punho a espiar os vizinhos. No entanto, entre os suores e os febrões típicos daquele triste estado de saúde, foi inevitável que acompanhasse mais de perto o que se passava “do lado de lá”. Ou seja, janelas fora. Os resultados foram curiosos, e ajudam-nos a perceber o quão diferentes as pessoas podem ser. Em Leiria, a minha ampla janela dá para um (também amplo) pátio, sendo que o pequeno apartamento que ocupo, na ala dos profs, fica no 4º andar. Do outro lado, precisamente à minha frente, descobri morar não uma Miss Torso, mas o Sr-Lavadeiro-Neurótico. Este personagem, depois do jantar – e não compreendo, sinceramente, COMO, nem PORQUÊ – passa quantidades loucas de tempo a lavar a louça. Lava, lava, lava, lava, lava, lava… durante mais de 40 minutos! Ainda pensei: lavará a roupa também? (mesmo que me parecesse estranhíssimo que o fizesse na cozinha). Mas não, os objetos que saem, certamente imaculados, das suas mãos são pratos, copos e tachos. Mas a verdade é que o Sr-Lavadeiro-Neurótico se dedica a estes afazeres com verdadeira concentração. Mais, com verdadeira paixão! E lá vai, noite fora, lavando meia dúzia de peças com tal esmero que, para o fazer, demora tanto tempo como eu a lavar um serviço completo para 48 pessoas, com pratos rasos a dobrar! Fica a questão: porque o fará? Afogará, na água e detergente, mágoas amorosas? Imaginará, ao brandir o esfregão com persistência, que está a afastar preocupações e inimigos? O manter as mãos em água ajudá-lo-á a rever a matéria estudada durante o dia, nesta altura de exames? Sentir-se-á tão sozinho que precisa de ocupar a cabeça desta forma (trata-se, na verdade, de um trabalho manual, talvez sirva para desanuviar) para não cair num abismo de angústia? Fica o mistério, tão bizarro quanto, por enquanto, irresolúvel!

Em Coimbra, desde o meu quarto, presencio cenas bem diversas. No prédio à frente do nosso, mora um jovem casal, com dois filhos relativamente pequenos. Ora, esta parelha tem algo em comum com o Sr-Lavadeiro-Neurótico: uma verdadeira, avassaladora, incontrolável, paixão por lavar… só que, desta feita, roupa. Dia e noite, durante a semana, fins-de-semana e feriados, faça chuva ou faça sol, há SEMPRE roupa a ser lavada, estendida, recolhida. Isto numa casa em que moram quatro pessoas e, a meio tempo, uma empregada. Tudo é suscetível de ser lavável, para esta dupla frenética: tapetes, lençóis, mosquiteiros, roupa, roupa e mais roupa… basta ser de tecido, e ser passível de ser sujeito a uma boa barrela! No entanto, o mais divertido desta (verdadeira) compulsão é ver como aqueles dois se entendem bem no meio do pendurar roupa, apanhar roupa, lavar roupa. É com molas na boca e 6 fronhas já secas na mão (ele) e três camisolas molhadas prontas a pendurar (ela) que mantém longas conversas à janela; é depois de confirmarem se a roupa pendurada ainda está húmida que ficam uns momentos a olhar o céu; é a dobrarem roupa que os vejo manter longas e animadas conversas. Pois… é estranho, mas é em torno do processo de pôr para lavar um par de peúgas e passar uma colcha já impecavelmente limpa que o casal em questão (casal verdadeiramente burocrático, com profissões tradicionais) parece manter as suas rotinas. Parte dos seus momentos a dois parecem ser – prazenteiramente, aparentemente – compartilhados naquela atividade constante de lavadeiros modernos, que os parece aproximar e da qual ambos demonstram genuinamente gostar. Será que começaram a namorar numa lavandaria? – é lícito perguntar.
É nisto que dá o tempo forçadamente ocioso que nos garante uma dura gripe entre duas terras, duas camas e duas janelas e uma quarta constante: vizinhos que adoram dedicar-se a limpezas. No entanto, que diferença abissal entre ambos os casos! Num deles, lavar (louça) compulsivamente é a forma de um rapaz gastar (solitariamente, ao que parece) boa parte das suas noites; noutro, lavar (roupa) ininterruptamente parece ser um dos modos prediletos de um jovem casal conviver. Num, recurso contra a solidão? Noutro, reflexo de companheirismo e proximidade?
Em Janela Indiscreta, as negras suspeitas de Stewart revelaram-se acertadas. No entanto, eu continuo a crer que as coisas acabam, tendencialmente, bem: por isso, persisto firmemente convicto de que, um destes dias, o Sr-Lavadeiro-Neurótico deixará de lado tachos e vasilhas (ou, mais saudavelmente, dedicar-lhes-á apenas o tempo necessário a uma pessoa normal para os lavar convenientemente) e gastará o resto da noite a dedicar-se a tarefas mais prazenteiras (ou, pelo menos, mais variadas, acreditando que lavar louça lhe agrada); bem como em acreditar que – à semelhança dos meus vizinhos – todos os meios são bons para se estar com quem se gosta. Mesmo que entre molas e cordas, pilhas de roupa para pendurar e um cheiro forte a detergente!

1 Comments:

At 4:48 AM, Blogger Joanight said...

pelo menos as disfunções dos portugueses dão para um aumento de higiene! Podia ser bem pior :D

 

Post a Comment

<< Home