TACHOS E PANELAS
Provenho
de uma família onde se cozinha muito bem, o que certamente se deve ao facto de
quase todos nós termos genuíno prazer em enfrentarmos uma boa mesa. Ou seja,
cozinha-se com um mínimo de qualidade e prazer (creio eu) principalmente porque
se gosta de comer decentemente. Não posso, no entanto, dizer algo que,
parecendo similar, nada tem, no fundo, a ver com a frase com que principiei
este post: é-me impossível, como
certas pessoas (e muitos testemunhos que, não sei se com verdade ou não, agora
por aí abundam), afirmar que descendo de uma longa linhagem de eméritos
cozinheiros e cozinheiras, isto é, que disponho no meu código genético de uma
natural propensão para encarar corajosamente tachos, panelas e comestíveis e,
depois de uma salutar lida, conseguir extrair dessa conjunção pratos
inventivos, saborosos e tidos por excelentes. Na verdade, na minha família,
nunca ouvi dizer que a bisavó X cozinhava primorosamente, ou que o trisavô Y
fazia um fricassé extraordinário; as memórias dos talentos culinários são,
apesar de muito dignas e merecedoras, assaz recentes: acho mesmo que não
ultrapassam as minhas avós, e creio bem que, até aos seus trinta e poucos anos,
nenhuma delas sabia cozinhar grande coisa (o que não impediu que, com os anos e
a falta da abundância do pessoal doméstico de outrora que foi marcando o
século, não começassem a ensaiar notáveis incursões em domínios antes bastante
desconhecidos). Todavia, antes desta mudança – forçada, também, pelo saudável
rolar das décadas – eu, que gosto de ouvir e fixar historietas da parentela
passada, não me consigo recordar de nenhuma que se relacione diretamente com as
prendas culinárias de qualquer avoengo. Assim de repente, lembro-me de se dizer
que a minha trisavó lisboeta tinha uma excelente cozinheira, e que a minha
trisavó senense tinha uma criada (cujo nome não se perdeu na voragem dos
tempos: era a Maria do Valverde, sendo que o tal Valverde era uma quinta da
família, onde presumo que a dita senhora deve ter nascido) apenas para fazer
(porque tinha de o fazer
verdadeiramente, da forma tradicional, porque não havia maneira de o obter
doutra forma, como é natural) esparguete. Convém acrescentar que esta trisavó
teve nove filhos – e, calculo, todos lá em casa deviam gostar muito de pratos
com massa – pelo que se compreende ter bastante pessoal afeto exclusivamente à
cozinha. Esta antepassada deixou a fama de ser muito bonita e de gostar de
descansar ao sol retemperador da Figueira, alimentando-se certamente de
iguarias confecionadas por mãos que não as suas. Da minha trisavó de Vila Nova
de Tazem, acho que também nunca enfrentou um fogão: apenas se sabe que gostava
imenso de comer doces. O mesmo se pode dizer da minha trisavó celoricense – ou
das suas várias irmãs solteiras, todas tão pouco conhecedoras dos segredos da
cozinha que consideravam algo de quase fantástico fazer-se uma simples açorda!
E da minha trisavó de Poiares, senhora piedosa e austera, que não tolerava
gastos nem roubos na sua cozinha mas que não se esquecia de distribuir víveres
pelos mais carenciados da região. Víveres crus ou decerto cozinhados por
outrem, calculo eu. Desta antepassada permaneceu a memória do seu amor pela
escolaridade (não casou aos treze anos porque não queria deixar de andar “na mestra”) e a fama dos seus bordados.
Quanto a talentos para doces e salgados, nunca ouvi dizer nada. Na geração
anterior, sei que a minha tetravó brasileira se dedicava a ensinar as crianças
e os adultos do engenho familiar a ler e a escrever – e calculo que (e bem, a
meu ver) essas atividades lhe parecessem bem fascinantes do que assados e
cozidos. E no engenho não faltariam decerto braços para ajudar na cozinha da casa grande. Já a tetravó Maria Carlota
Joaquina, alma política e cacique eleitoral
em Seia, fazia ocasionais incursões nas suas cozinhas… mas apenas durante os
períodos das neurastenias que ciclicamente a fustigavam, alturas em que lançava
tudo o que aí encontrava pelas janelas. Outra tetravó (cunhada da anterior – a minha
família não é fácil, está cheia de parentescos cruzados, que por vezes
desembocaram em gente mais ou menos tontinha) terá trazido da sua Viseu natal
uma receita de umas ótimas filhós com que nos deliciamos no Natal, e às quais
chamamos filhós Motta-Veiga. Bom, a
tetravó terá trazido a receita, mas depressa confiou a sua execução a mãos mais
experientes do que as suas. Na mesma época, em casa do Tio Joaquim Borges,
também em Vila Nova de Tazem, as cozinhas estavam até separadas do edifício
principal, que se desdobrava numa longa sequência de salas, saletas e salões e
quartos. No quintal, erguia-se uma segunda casa, onde se instalava o pessoal
doméstico e as cozinhas que deveriam produzir pratos em quantidade suficiente
para alimentar os muitos parentes e afilhados daquele médico rico que
substituía os filhos que não tinha por largo número de sobrinhos. As bisavós
faziam bolinhos, pratos escolhidos, doces especiais e coisas assim, mas nada de
mais. Isto porque havia sempre alguém especialmente contratado para cozinhar, e
eram essas almas dedicadas quem se encarregava da alimentação da família. Na
Risca-Silva, por exemplo, uma velha já cega, a senhora Carolina, cegava couves
para o caldo verde e alface para saladas literalmente “às escuras”, e era essa
a sua ocupação principal. E a minha bisavó, quando ali chegou, trouxe consigo,
da casa materna, duas criadas, uma delas com bons dotes culinários. Por isso,
quando, ainda hoje, nos referimos a iguarias que vêm sendo apreciadas geração
após geração, e mesmo que falemos em receitas da família, estamos, na verdade,
a perpetuar modos de confeção de alimentos que (mesmo que as receitas lhes
tenham sido passadas por antepassadas pouco interessadas na prática mas
herdeiras de alguns conhecimentos teóricos de culinária – o que não sei se é
possível em cozinha) foram sobretudo mantidos, até há umas décadas atrás, por
cozinheiras diligentes. Basta um par de exemplos: em minha casa faz-se uma
empada de frango e ervilhas de que gosto muito – e que é uma simplificação
(idealizada pela minha Avó materna) de uma receita que a cozinheira da sua Avó
fazia. O mesmo se passa com o perú de Natal. Por outro lado, na família paterna
corre a receita de uns bifes que o meu Pai cozinha primorosamente: são os bifes à Tidadinha, sendo que a dita
Tidadinha (diminutivo carinhoso de Natividade, alegadamente dado pela minha
bisavó quando era criança, portanto, há para aí um século atrás) foi a última
das governantas dos Mello Motta-Veiga, antes que os ventos da história e a
péssima gestão dos capitais familiares tornassem absolutamente inviável a
continuidade da manutenção de tal lugar). E era também a Tidadinha quem
conservava a receita das tetas de manjar –
nome pouco próprio, é certo, para um doce fantástico (manjar branco em
montículos), de que a minha família se ufana muito, mas do qual, se não fosse
aquela senhora (que a deu à minha Avó), ninguém teria a receita. É certamente
por isso que quase sempre nunca ouço dizer que alguém da família (repito, para
trás da geração das minhas avós) cozinhava exemplarmente, ou que um prato está “igual ao que fazia a bisavó”: o que
geralmente se exclama é “oh! É exactamente
como em casa da bisavó Y”, ou “Este
prato lembra-me Celorico” e coisas assim. A culinária associa-se a uma
casa, quanto muito a uma cozinheira talentosa cuja memória permaneceu, não a
uma avoenga.
Mas
aonde quero eu chegar com tudo isto? Demonstrar que descendo de uma longa
linhagem de gente inepta e ignorante na arte de bem cozinhar? Poderia ser esse
o meu fito (mas, admitamos, tal não deixaria de constituir uma prova de mau
gosto face aos meus maiores, sendo bem certo que eu prefiro de longe ter
bisavós com amor pela educação e pela política do que por tachos e panelas),
contudo, o propósito que persigo é bem diverso. É que, talvez recorrendo a este
precedente histórico, consiga justificar a minha pouca habilidade culinária –
ou, melhor ainda, a minha bem escassa vontade em testar os meus talentos na
cozinha. Cozinhar não é coisa que, assim à partida, me atraia sobremaneira,
pelo que me dedico pouco e com limitado entusiasmo a tal prática. O que,
naturalmente, redunda em asneira, pois da falta de treino decorrem pequenas
catástrofes na banca da cozinha. E não me refiro a exaustores queimados ou
inundações dramáticas (felizmente, nada disso me aconteceu… ainda!), mas sim a
banhos-maria frustrados, purés cheios de grumos, bifes tostados, e coisas do
género. Isto é, banalidades para quem cozinha regularmente que se tornam problemas
difíceis de resolver – desde logo por não possuirmos o tão útil saber de
experiência feito – para novatos inexperientes.
Desta
forma, talvez funcione se invocar, quando tiver de enfrentar mais uma maçã
cozida que teime em permanecer meia dura, ou um esparguete que se recuse a
passar ao estado ideal de al dente,
uma espécie de precedente genético. Olhem… há gente que tem uma propensão
genética para bem cozinhar…Outros, como eu, terão herdado alguns talentos dos
seus maiores, mas noutros domínios. Assim, teremos de, enquanto pomos,
gostosamente, esses mesmos talentos (que não culinários) em prática, e não nos
rendemos (como Avós e Pais) às evidências (sim, é FUNDAMENTAL aprender a
cozinhar, e aquilo até pode ser, em determinadas circunstâncias, interessante),
nos contentar com umas banais sandochas de atum e sopa de legumes.
O
que, afinal, também não é assim tão terrível, sobretudo para quem, como eu,
adora sandes de atum e sopa! ;)
1 Comments:
Se fosse lá em casa diriam logo "sais ao teu avô", que é o que dizem sempre quando algo faço alguma coisa mal, como cozinhar. E eu já peguei fogo a uma cozinha!
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