Monday, December 10, 2012

TACHOS E PANELAS


Provenho de uma família onde se cozinha muito bem, o que certamente se deve ao facto de quase todos nós termos genuíno prazer em enfrentarmos uma boa mesa. Ou seja, cozinha-se com um mínimo de qualidade e prazer (creio eu) principalmente porque se gosta de comer decentemente. Não posso, no entanto, dizer algo que, parecendo similar, nada tem, no fundo, a ver com a frase com que principiei este post: é-me impossível, como certas pessoas (e muitos testemunhos que, não sei se com verdade ou não, agora por aí abundam), afirmar que descendo de uma longa linhagem de eméritos cozinheiros e cozinheiras, isto é, que disponho no meu código genético de uma natural propensão para encarar corajosamente tachos, panelas e comestíveis e, depois de uma salutar lida, conseguir extrair dessa conjunção pratos inventivos, saborosos e tidos por excelentes. Na verdade, na minha família, nunca ouvi dizer que a bisavó X cozinhava primorosamente, ou que o trisavô Y fazia um fricassé extraordinário; as memórias dos talentos culinários são, apesar de muito dignas e merecedoras, assaz recentes: acho mesmo que não ultrapassam as minhas avós, e creio bem que, até aos seus trinta e poucos anos, nenhuma delas sabia cozinhar grande coisa (o que não impediu que, com os anos e a falta da abundância do pessoal doméstico de outrora que foi marcando o século, não começassem a ensaiar notáveis incursões em domínios antes bastante desconhecidos). Todavia, antes desta mudança – forçada, também, pelo saudável rolar das décadas – eu, que gosto de ouvir e fixar historietas da parentela passada, não me consigo recordar de nenhuma que se relacione diretamente com as prendas culinárias de qualquer avoengo. Assim de repente, lembro-me de se dizer que a minha trisavó lisboeta tinha uma excelente cozinheira, e que a minha trisavó senense tinha uma criada (cujo nome não se perdeu na voragem dos tempos: era a Maria do Valverde, sendo que o tal Valverde era uma quinta da família, onde presumo que a dita senhora deve ter nascido) apenas para fazer (porque tinha de o fazer verdadeiramente, da forma tradicional, porque não havia maneira de o obter doutra forma, como é natural) esparguete. Convém acrescentar que esta trisavó teve nove filhos – e, calculo, todos lá em casa deviam gostar muito de pratos com massa – pelo que se compreende ter bastante pessoal afeto exclusivamente à cozinha. Esta antepassada deixou a fama de ser muito bonita e de gostar de descansar ao sol retemperador da Figueira, alimentando-se certamente de iguarias confecionadas por mãos que não as suas. Da minha trisavó de Vila Nova de Tazem, acho que também nunca enfrentou um fogão: apenas se sabe que gostava imenso de comer doces. O mesmo se pode dizer da minha trisavó celoricense – ou das suas várias irmãs solteiras, todas tão pouco conhecedoras dos segredos da cozinha que consideravam algo de quase fantástico fazer-se uma simples açorda! E da minha trisavó de Poiares, senhora piedosa e austera, que não tolerava gastos nem roubos na sua cozinha mas que não se esquecia de distribuir víveres pelos mais carenciados da região. Víveres crus ou decerto cozinhados por outrem, calculo eu. Desta antepassada permaneceu a memória do seu amor pela escolaridade (não casou aos treze anos porque não queria deixar de andar “na mestra”) e a fama dos seus bordados. Quanto a talentos para doces e salgados, nunca ouvi dizer nada. Na geração anterior, sei que a minha tetravó brasileira se dedicava a ensinar as crianças e os adultos do engenho familiar a ler e a escrever – e calculo que (e bem, a meu ver) essas atividades lhe parecessem bem fascinantes do que assados e cozidos. E no engenho não faltariam decerto braços para ajudar na cozinha da casa grande. Já a tetravó Maria Carlota Joaquina, alma política e cacique eleitoral em Seia, fazia ocasionais incursões nas suas cozinhas… mas apenas durante os períodos das neurastenias que ciclicamente a fustigavam, alturas em que lançava tudo o que aí encontrava pelas janelas. Outra tetravó (cunhada da anterior – a minha família não é fácil, está cheia de parentescos cruzados, que por vezes desembocaram em gente mais ou menos tontinha) terá trazido da sua Viseu natal uma receita de umas ótimas filhós com que nos deliciamos no Natal, e às quais chamamos filhós Motta-Veiga. Bom, a tetravó terá trazido a receita, mas depressa confiou a sua execução a mãos mais experientes do que as suas. Na mesma época, em casa do Tio Joaquim Borges, também em Vila Nova de Tazem, as cozinhas estavam até separadas do edifício principal, que se desdobrava numa longa sequência de salas, saletas e salões e quartos. No quintal, erguia-se uma segunda casa, onde se instalava o pessoal doméstico e as cozinhas que deveriam produzir pratos em quantidade suficiente para alimentar os muitos parentes e afilhados daquele médico rico que substituía os filhos que não tinha por largo número de sobrinhos. As bisavós faziam bolinhos, pratos escolhidos, doces especiais e coisas assim, mas nada de mais. Isto porque havia sempre alguém especialmente contratado para cozinhar, e eram essas almas dedicadas quem se encarregava da alimentação da família. Na Risca-Silva, por exemplo, uma velha já cega, a senhora Carolina, cegava couves para o caldo verde e alface para saladas literalmente “às escuras”, e era essa a sua ocupação principal. E a minha bisavó, quando ali chegou, trouxe consigo, da casa materna, duas criadas, uma delas com bons dotes culinários. Por isso, quando, ainda hoje, nos referimos a iguarias que vêm sendo apreciadas geração após geração, e mesmo que falemos em receitas da família, estamos, na verdade, a perpetuar modos de confeção de alimentos que (mesmo que as receitas lhes tenham sido passadas por antepassadas pouco interessadas na prática mas herdeiras de alguns conhecimentos teóricos de culinária – o que não sei se é possível em cozinha) foram sobretudo mantidos, até há umas décadas atrás, por cozinheiras diligentes. Basta um par de exemplos: em minha casa faz-se uma empada de frango e ervilhas de que gosto muito – e que é uma simplificação (idealizada pela minha Avó materna) de uma receita que a cozinheira da sua Avó fazia. O mesmo se passa com o perú de Natal. Por outro lado, na família paterna corre a receita de uns bifes que o meu Pai cozinha primorosamente: são os bifes à Tidadinha, sendo que a dita Tidadinha (diminutivo carinhoso de Natividade, alegadamente dado pela minha bisavó quando era criança, portanto, há para aí um século atrás) foi a última das governantas dos Mello Motta-Veiga, antes que os ventos da história e a péssima gestão dos capitais familiares tornassem absolutamente inviável a continuidade da manutenção de tal lugar). E era também a Tidadinha quem conservava a receita das tetas de manjar – nome pouco próprio, é certo, para um doce fantástico (manjar branco em montículos), de que a minha família se ufana muito, mas do qual, se não fosse aquela senhora (que a deu à minha Avó), ninguém teria a receita. É certamente por isso que quase sempre nunca ouço dizer que alguém da família (repito, para trás da geração das minhas avós) cozinhava exemplarmente, ou que um prato está “igual ao que fazia a bisavó”: o que geralmente se exclama é “oh! É exactamente como em casa da bisavó Y”, ou “Este prato lembra-me Celorico” e coisas assim. A culinária associa-se a uma casa, quanto muito a uma cozinheira talentosa cuja memória permaneceu, não a uma avoenga.
Mas aonde quero eu chegar com tudo isto? Demonstrar que descendo de uma longa linhagem de gente inepta e ignorante na arte de bem cozinhar? Poderia ser esse o meu fito (mas, admitamos, tal não deixaria de constituir uma prova de mau gosto face aos meus maiores, sendo bem certo que eu prefiro de longe ter bisavós com amor pela educação e pela política do que por tachos e panelas), contudo, o propósito que persigo é bem diverso. É que, talvez recorrendo a este precedente histórico, consiga justificar a minha pouca habilidade culinária – ou, melhor ainda, a minha bem escassa vontade em testar os meus talentos na cozinha. Cozinhar não é coisa que, assim à partida, me atraia sobremaneira, pelo que me dedico pouco e com limitado entusiasmo a tal prática. O que, naturalmente, redunda em asneira, pois da falta de treino decorrem pequenas catástrofes na banca da cozinha. E não me refiro a exaustores queimados ou inundações dramáticas (felizmente, nada disso me aconteceu… ainda!), mas sim a banhos-maria frustrados, purés cheios de grumos, bifes tostados, e coisas do género. Isto é, banalidades para quem cozinha regularmente que se tornam problemas difíceis de resolver – desde logo por não possuirmos o tão útil saber de experiência feito – para novatos inexperientes.



Desta forma, talvez funcione se invocar, quando tiver de enfrentar mais uma maçã cozida que teime em permanecer meia dura, ou um esparguete que se recuse a passar ao estado ideal de al dente, uma espécie de precedente genético. Olhem… há gente que tem uma propensão genética para bem cozinhar…Outros, como eu, terão herdado alguns talentos dos seus maiores, mas noutros domínios. Assim, teremos de, enquanto pomos, gostosamente, esses mesmos talentos (que não culinários) em prática, e não nos rendemos (como Avós e Pais) às evidências (sim, é FUNDAMENTAL aprender a cozinhar, e aquilo até pode ser, em determinadas circunstâncias, interessante), nos contentar com umas banais sandochas de atum e sopa de legumes.
O que, afinal, também não é assim tão terrível, sobretudo para quem, como eu, adora sandes de atum e sopa! ;)

1 Comments:

At 9:29 AM, Blogger Sãozinha said...

Se fosse lá em casa diriam logo "sais ao teu avô", que é o que dizem sempre quando algo faço alguma coisa mal, como cozinhar. E eu já peguei fogo a uma cozinha!

 

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