QUERER
Creio já ter deixado escrito
algures por estes Prazos que, certo
dia, num momento de exasperação e aproveitando um jogo de palavras com o título
de uma obra de que gosto bastante, alguém me descreveu como pride & prudence. A tentativa de
ofensa não atingiu o resultado pretendido, pois eu revi-me perfeitamente no
retrato feito: não sou, de forma alguma, uma pessoa pouco orgulhosa – creio
mesmo que jamais me consideraram uma pessoa “chã” (o que pode até acabar por
acarretar alguns entraves: por exemplo, recentemente tomei contacto, entre o
divertido e o abismado, com uma série de clichés
que me colavam também um bocadinho por essa razão) – e sou, a todos os títulos,
uma pessoa prudente. No entanto (creio eu, e certificam-no o punhado dos que me
conhecem bem), essa prudência não se deve a qualquer assomo de inércia ou
vontade de protelar o que tem de ser feito, mas sim a uma ambição constante e
latente de ir permanentemente mais além, chegar sempre mais longe, alcançar continuamente
novos resultados que me move desde que me lembro (seja qual for a justificação
deste traço predominante da minha maneira de ser: educacional, genético, de
reação, provindo de um desconhecido sentimento de inferioridade, bla bla bla).
Ou seja, o aludido prudence
assemelha-se muito a uma perseverance que
sustenta e mascara uma característica muito minha: obsession. Não falo – fiquem descansados, prezados passantes por
estas veredas – de uma obsessão doentia e maníaca, que me faça perseguir por
vielas escuras e avenidas ensolaradas (sejam elas físicas, sejam cibernéticas)
quem ou o que me parece digno da minha atenção (e lá vem de novo o pride). Nada disso: a minha obsession reflete-se em regra no que a
mim concerne, isto é, basicamente, em tentar colocar em prática a velha máxima ir mais além. O facto de ter passado
parte da minha vida a ouvir incansavelmente se
fizeres o que sempre fizeste, terás o que sempre tiveste: isso chega-te? –
máxima velha mas cheia de significado – e o facto de uma das recordações da
minha mais tenra infância ser a explicação de que mais vale ser o último dos
melhores do que o primeiro dos piores, associados a constantes alusões a uma
parábola cheia de significados (a dos
talentos) fez-me perceber muito cedo a força do querer. Querer, contudo, não no sentido de se desejar vagamente uma
coisa ou alcançar um objetivo (por exemplo, eu queria um T1 na av. de Roma, e
era excelente que uma alma caritativa mo entregasse numa salva de prata; ou
durante bastante tempo quis saber jogar minimamente futebol, caso não desse
muito trabalho nem maçada aprender tal coisa), mas sim um querer no sentido de não largar o pé, de trabalhar afincadamente até alcançar o pretendido. Consciente do
meu valor e do valor do esforço desenvolvido, acreditando que lá chegarei, por
muito distante que pareça estar o tal fito almejado (e lá vêm inevitavelmente
mesclados o pride e a perseverance), cavalgando nos resultados
já obtidos e disposto a gozar os que vierem a ser conquistados. Ora, tudo isto
traduz-se em obsession.
É por estes motivos que
pequenas e grandes sucessos sabem sempre bem. Pequenos e grandes e, acrescento,
singulares e coletivos. E é fascinante como, por vezes, vários factores
aparentemente se entrelaçam para os alcançarmos (pois, não raro, o que parece
ser disperso ou descontinuado está
longe de o ser). Penso concretamente num desses pequeninos sucessos, ainda
fresco:
I)
No meu departamento, temos vindo a
trabalhar, desde há algum tempo, no sentido de organizar um modesto ciclo de
aulas abertas que espelhe uma vontade de colaboração Escola/município que desde
há muito é manifesta. Empenhei-me a fundo no processo, e, já se sabe, há sempre
alguns entraves (nomeadamente burocráticos) a ultrapassar. Uns não passam de
coisa pouca, mas muitas “coisas poucas” emparceiradas acabam por incomodar. Há
alturas em que apetece desistir, ou colocar o processo em stand by e juntarmo-nos ao coro dos que reclamam que, como no país
nada funciona, nada conseguimos pôr a funcionar.
II)
Há uns dias, foram-me pedidos 5
minutos para se fazer uma intervenção pública na minha aula: 5 minutos esses
que foram gostosamente cedidos, pois é sabido como gosto de ouvir opiniões
diversas das que professo, nem que seja para as rebater e, assim, fortalecer as
minhas convicções. Foi com espanto – para não dizer estupefação – que constatei
que parte desse período, que devia ser orientado para a captação de interesses,
foi empregado em afirmações em torno de uma única premissa (aliás,
erradíssima): o nosso departamento praticamente não existia, ninguém na cidade
nos conhecia e pouca representação tínhamos na associação de estudantes local
(da qual, desde que eu me lembro, mais de 50% dos membros são nossos alunos –
um erro de contagem, certamente…).
III)
Saio à rua e – filho e irmão de
gente que sublima o poder local – impressiona-me ouvir o perpétuo chorrilho de
queixumes do costume: tudo o que está mal (desde um prédio particular cujo
telhado ruiu à existência de cães abandonados pelas ruas da cidade, passando
pelas unhas partidas de uma transeunte que se enervou com a demora do sinal
passar a verde) é culpa da câmara. As
câmaras terão certamente muitos aspetos a melhorar: mas custa-me a crer que as
vozes mais críticas do municipalismo conseguissem subsistir sem os serviços que
as autarquias lhes vão (melhor ou pior, é verdade) prestando. Ninguém sabe o
que a autarquia tem para oferecer, porque ninguém procura sabê-lo. Para a
generalidade dos munícipes, a câmara mais não é do que um edifício – em regra
grande e monumental, implantado em sítio de destaque – que serve para dar
emprego a apaniguados e parasitas e perturbar a vida dos cidadãos. Este é um
dos casos em que se pode com propriedade afirmar que a ignorância mata.
IV)
Outro dos poderes mal-amados – mas
agora a um nível mais paroquial e académico – são as associações de estudantes.
Muitos consideram-nas de duvidosa utilidade (e há-as fazendo pouco ou nada para
contrariarem esta ideia, é verdade), repletas de gente que vai vivendo à conta
dos recursos que lhe são atribuídos em vez de estudar (e existem inúmeros casos
assim, não sou eu quem vai dizer o contrário) e que pura e simplesmente não se
interessam pelo que se passa em prol da dinamização do departamento, da escola,
etc.
V)
Há já cerca de uma dúzia de anos,
num vale das cercanias de Leiria chamado Lapedo, um rapaz que estudava
arqueologia e gostava do que fazia – para além de, acrescente-se, ser
suficientemente obstinado e seguro para lutar pelo que acreditava – tentou
convencer professores e autoridades de que descobrira indícios pré-históricos
de grande interesse. Enfrentou indiferenças e desconfianças, mas perseverou. E
em boa hora o fez, pois foi graças a isso que se descobriu o extraordinário menino de Lapedo, que revolucionou a
arqueologia no espaço ibérico e atraiu a atenção do mundo. Há já uma dezena de
anos que se luta pela classificação daquele vale, e o processo parece estar finalmente
a chegar a bom porto. O jovem estudante – agora já não tão jovem – ainda
acredita e combate em prol deste propósito.
Como se conjuga tudo
isto? É simplicíssimo: basta querer,
e querer a sério. Nós quisemos
efetivamente que as nossas aulas abertas ocorressem. E para isso mexemo-nos:
falámos com a câmara, que desde o primeiro momento (afinal, não são assim tão
inúteis e inoperativos) se prontificou a colaborar, e, mais, o quis fazer verdadeiramente; e entabulámos
conversações com a associação de estudantes, que se nos associou desde a
primeira hora. E quem deu a aula de hoje? Um dos chefes de divisão do município
– organismo que, apesar de tudo, não obstante a maledicência, parece saber
aproveitar os recursos da terra – que mais não é do que o outrora jovem
estudante que chamou, contra ventos e marés, a atenção para o Lapedo. Hoje, já
profissional graduado, explicou, com o entusiasmo com que há mais de uma década
procurou captar os olhares de professores e autoridades, aos nossos alunos (que
compareceram todos) a importância de perseverar – isto é, o fundamental que é querer. Na aula, e apesar de ser cedo
(enfim… depende das rotinas de cada um) e de muitos assegurarem que tal personagem
não apareceria sequer, encontrei o presidente da associação de estudantes,
prestável, interessado, querendo também
que aquela iniciativa corresse bem.
O primeiro desafio
correu, então, de feição: agora, é preciso perseverar
para garantir o sucesso dos dois que se lhe seguem. Estou convicto – ou seja, tudo
farei nesse sentido – que tal acontecerá. E que, assim, se matem vários coelhos
com uma cajadada só: afinal, é possível fazer coisas (sejam elas iniciativas
insignificantes como a nossa, sejam descobertas fantásticas como a do Lapedo,
seja integrar na equipa municipal quem as fez, como aconteceu em Leiria),
demonstrando que não raro os clichés
estão errados (afinal, a câmara aderiu, entusiástica; afinal, a associação de
estudantes está representada e bem representada; afinal, isto talvez seja um
modestíssimo indício de que só não vê o nosso departamento quem não o quer ver)
e, finalmente, que é bem verdade o que o meu Pai costuma dizer:
Quem
quer, vai; quem não quer, telefona.
Queira Deus que nunca
nenhum de nós ceda aos confortos de um telefone! A vida até poderia parecer,
numa primeira fase, mais cómoda, mas não nos enganemos: acabaria por nos passar
ao lado!
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