Monday, December 17, 2012

UMA SUAVE BRISA DO MANDOVY


O dia 17 de dezembro é uma data em que – pelas mais diversas razões – todos nós que gostamos de Goa nos lembramos com particular intensidade daquele estado da União Indiana que tanta tinta e tantas paixões faz correr há tantos séculos. Lembramo-nos do que nos apraz e desagrada naquelas paragens, onde o caos urbanístico convive com recantos encantadores, onde a miséria (relativa, contudo, em comparação com outros pontos do gigantesco subcontinente) contrasta com o esplendor das talhas das igrejas da Velha Cidade, onde o português se ouve ainda quando se passa à frente de uma escola primária urdu. Eu, pessoalmente, lembro-me – sobretudo em tempos de rigorosa invernia, como os que vivemos na europa – do calor (para mim) vivificante, das gralhas que começam a crocitar, como que movidas por um incrível dispositivo coletivo, todas ao mesmo tempo, lá para as seis da manhã, do ferry que une as duas margens do Mandovy e do bem que me sabe um bhaji puri e uma coca-cola fresca no Café Tató. Vêm-me à mente, também, cheiros, alguns não especialmente agradáveis: o odor de peixe (típico das aldeias piscatórios) que me acompanhava no caminho à borda do rio, até chegar a Betim, do aroma agradável de calor, sol e papéis amarelecidos pelo tempo da sala dos reservados da velha Central Library, com a Maria de Lourdes a aparecer de vez em quando para dizer um “olá” amável, do cheiro da sala de estudo do Xavier Centre que (não sei como!) me lembrava tanto o da Venda do Porco! Lembro-me do ajudante do cartório arquiepiscopal escalar as estantes imensas, sem escadas nem apoios, em busca dos processos de ordenação que pedia, e que depois eu consultava na imensa mesa da Relação Eclesiástica, lembro-me da papelaria onde gosto de comprar os meus cadernos (mais compridos do que aqueles a que estamos habituados, com umas historietas e factos curiosos no final). Lembro-me dos passeios à noite nas Fontainhas, depois de jantar no “meu” Pangin Inn e antes de recolher aos Afonsos (e como me recordo bem das fantásticas saladas de batata que lá comi, na “mesa do português”!). Recordo-me das ventoinhas a não funcionarem em condições, dos cortes de electricidade, das camionetas desconfortáveis em que, ao chegar às vilas e cidades, os condutores e revisores vestem, “para não dar mau aspeto”, os casacos sebentos dos seus uniformes acastanhados, das vacas a deitarem-se, plácida e comodamente, ao meu lado na praia, olhando-me como que a dizer “oh, és o Luís, e não gostas de misturas? Too bad!”, dos enjoos terríveis quando não tomava o “neutralizador” dos efeitos secundários dos comprimidos contra a malária, da bruta gripe que apanhei (e como o Miguel Lume e a Patrícia Vieira me “salvaram”, esta informando-me de umas vitaminas que tinha de tomar, e não sabia; aquele levando-me a almoçar a um restaurante impecável, o que me soube particularmente bem). Lembro-me das missas em português, de muitos começarem a, devagarinho, falar nessa língua comigo, muitas vezes percebendo tudo o que eu dizia, mas fingindo, movidos pela bem característica prudência e reserva daquelas gentes, que não o faziam. Lembro-me de Velha Goa, meu refrigério para dias de mau humor, cenário para os de boa disposição e tema inesgotável para rabiscos, bem como das excursões, por vezes intrépidas, com a Giulia, minha super-afoita companheira de viagens. E lembro-me, claro está das pessoas. Não só das que estão lá, mas também das que, desde cá, tudo fizeram para que, naquela terra (onde os primeiros momentos foram de choque, por cair, ruidosamente, por terra o meu ideal de uma Lisboa oriental, toda dourados, contadores indo-portugueses e coqueiros dispostos à beira mar), me sentisse o mais em casa possível, ou seja, Maria de Jesus e Pedro (os apelidos são desnecessários; eles sabem quem são). Quando penso em Goa, penso em Percival, no Gustavo, em Maria de Lourdes, na Céuzinha e no Luís, em Maria de Lourdes Figueiredo, no Jason (que tenho o prazer de encontrar em Lisboa, demonstrando que, tal como sucede há séculos, um goês católico se sente tão à vontade na capital de Portugal como na de Goa), PVG e Patrícia, e Miguel Lume (e, mais para o final, o Delfim), entre muitos outros, mais ou menos importantes no meu quotidiano (o rapaz da fruta, o mainato, o taxista Chrisna, o rapaz do telefone, os funcionários dos cafés, da papelaria e do supermercado, o empregado do Clube Vasco da Gama, onde, por recomendação paterna, ia semanalmente comer um bife, o antiquário Ferrão, a funcionária dos correios que me odiava, os empregados do arquivo, o Luís Abreu dos pacotes e embrulhos, o pessoal da FO, etc, etc). E lembro-me, naturalmente, da família que me acolheu em Britona: a Anita, o Diogo e os seus três filhos – aos quais associo a Nati (que arrendava uma casinha no quintal deles, e que contratei como colaboradora na limpeza do meu apartamento depois de um “ataque” de baratas que me arrepiou bastante) e o filho desta, o pequeno Frassad.


Ontem recebi deles um pacote. Sim, ontem… domingo. Apareceu na caixa de correio um saco de papel de uma loja de Goa, com o meu nome e a inscrição, entre parêntesis “Por cortesia do sr. Bernardo”. Não sei quem é este Bernardo, que, simpaticamente e sem tarifas de correio, me trouxe recuerdos, fotos e novas das margens do Mandovy, dos portais de Britona. Fico-lhe grato por me fazer chegar a mãos, numa época que já cheira a Natal, lembranças de uma Goa que, embora distante fisicamente, continua a ser rememorada.
E penso, efetivamente, que (embora nunca os descartando, claro está!) mais do que os móveis de teca rendilhada e os Meninos Jesus Bons Pastores, mais do que os calvários em marfim e as colchas sumptuosas, mais do que as bebincas e os vindalhos, é nestes pequenos gestos – uma foto com uma dedicatória simpática, num português perfeito, por exemplo – que a relação entre Goa e Portugal se mantém e, creio, também se deverá manter. Já sem complexos nem prepotências, já sem dramas nem imperialismos: como dois velhos amigos, ainda aparentados, que mantêm uma longa relação repleta de altos e baixos (como sucede em muitas relações), mas que ainda sentem algo forte quando se miram mutuamente.
Saudosismo? Talvez. Idealismo tonto? Quiçá. Mas a verdade é que quando chegou o pacote de Goa a casa dos meus Pais, no centro de Coimbra, no dia chuvoso e feio de ontem (ainda que temperado pelos preparativos alegres das decorações de Natal em torno das quais nos entretínhamos) correu uma suave brisa tropical, trazendo boas memórias de outro ponto do mundo. Uma brisa do Mandovy, certamente. 

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