UMA SUAVE BRISA DO MANDOVY
O
dia 17 de dezembro é uma data em que – pelas mais diversas razões – todos nós
que gostamos de Goa nos lembramos com particular intensidade daquele estado da
União Indiana que tanta tinta e tantas paixões faz correr há tantos séculos.
Lembramo-nos do que nos apraz e desagrada naquelas paragens, onde o caos
urbanístico convive com recantos encantadores, onde a miséria (relativa,
contudo, em comparação com outros pontos do gigantesco subcontinente) contrasta
com o esplendor das talhas das igrejas da Velha Cidade, onde o português se
ouve ainda quando se passa à frente de uma escola primária urdu. Eu,
pessoalmente, lembro-me – sobretudo em tempos de rigorosa invernia, como os que
vivemos na europa – do calor (para mim) vivificante, das gralhas que começam a
crocitar, como que movidas por um incrível dispositivo coletivo, todas ao mesmo
tempo, lá para as seis da manhã, do ferry que une as duas margens do Mandovy e
do bem que me sabe um bhaji puri e
uma coca-cola fresca no Café Tató. Vêm-me à mente, também, cheiros, alguns não
especialmente agradáveis: o odor de peixe (típico das aldeias piscatórios) que
me acompanhava no caminho à borda do rio, até chegar a Betim, do aroma
agradável de calor, sol e papéis amarelecidos pelo tempo da sala dos reservados
da velha Central Library, com a Maria de Lourdes a aparecer de vez em quando
para dizer um “olá” amável, do cheiro da sala de estudo do Xavier Centre que
(não sei como!) me lembrava tanto o da Venda do Porco! Lembro-me do ajudante do
cartório arquiepiscopal escalar as estantes imensas, sem escadas nem apoios, em
busca dos processos de ordenação que pedia, e que depois eu consultava na
imensa mesa da Relação Eclesiástica, lembro-me da papelaria onde gosto de
comprar os meus cadernos (mais compridos do que aqueles a que estamos
habituados, com umas historietas e factos curiosos no final). Lembro-me dos
passeios à noite nas Fontainhas, depois de jantar no “meu” Pangin Inn e antes
de recolher aos Afonsos (e como me recordo bem das fantásticas saladas de
batata que lá comi, na “mesa do português”!). Recordo-me das ventoinhas a não
funcionarem em condições, dos cortes de electricidade, das camionetas
desconfortáveis em que, ao chegar às vilas e cidades, os condutores e revisores
vestem, “para não dar mau aspeto”, os casacos sebentos dos seus uniformes
acastanhados, das vacas a deitarem-se, plácida e comodamente, ao meu lado na
praia, olhando-me como que a dizer “oh,
és o Luís, e não gostas de misturas? Too bad!”, dos enjoos terríveis quando
não tomava o “neutralizador” dos efeitos secundários dos comprimidos contra a
malária, da bruta gripe que apanhei (e como o Miguel Lume e a Patrícia Vieira
me “salvaram”, esta informando-me de umas vitaminas que tinha de tomar, e não
sabia; aquele levando-me a almoçar a um restaurante impecável, o que me soube
particularmente bem). Lembro-me das missas em português, de muitos começarem a,
devagarinho, falar nessa língua comigo, muitas vezes percebendo tudo o que eu
dizia, mas fingindo, movidos pela bem característica prudência e reserva
daquelas gentes, que não o faziam. Lembro-me de Velha Goa, meu refrigério para
dias de mau humor, cenário para os de boa disposição e tema inesgotável para
rabiscos, bem como das excursões, por vezes intrépidas, com a Giulia, minha
super-afoita companheira de viagens. E lembro-me, claro está das pessoas. Não
só das que estão lá, mas também das que, desde cá, tudo fizeram para que, naquela
terra (onde os primeiros momentos foram de choque, por cair, ruidosamente, por
terra o meu ideal de uma Lisboa oriental, toda dourados, contadores
indo-portugueses e coqueiros dispostos à beira mar), me sentisse o mais em casa
possível, ou seja, Maria de Jesus e Pedro (os apelidos são desnecessários; eles
sabem quem são). Quando penso em Goa, penso em Percival, no Gustavo, em Maria
de Lourdes, na Céuzinha e no Luís, em Maria de Lourdes Figueiredo, no Jason (que tenho o prazer de encontrar em
Lisboa, demonstrando que, tal como sucede há séculos, um goês católico se sente
tão à vontade na capital de Portugal como na de Goa), PVG e Patrícia, e Miguel
Lume (e, mais para o final, o Delfim), entre muitos outros, mais ou menos
importantes no meu quotidiano (o rapaz da fruta, o mainato, o taxista Chrisna, o rapaz do telefone, os funcionários dos cafés, da
papelaria e do supermercado, o empregado do Clube Vasco da Gama, onde, por
recomendação paterna, ia semanalmente comer um bife, o antiquário Ferrão, a
funcionária dos correios que me odiava, os empregados do arquivo, o Luís Abreu
dos pacotes e embrulhos, o pessoal da FO, etc, etc). E lembro-me, naturalmente,
da família que me acolheu em Britona: a Anita, o Diogo e os seus três filhos –
aos quais associo a Nati (que arrendava uma casinha no quintal deles, e que
contratei como colaboradora na limpeza do meu apartamento depois de um
“ataque” de baratas que me arrepiou bastante) e o filho desta, o pequeno
Frassad.
Ontem
recebi deles um pacote. Sim, ontem… domingo. Apareceu na caixa de correio um
saco de papel de uma loja de Goa, com o meu nome e a inscrição, entre
parêntesis “Por cortesia do sr. Bernardo”.
Não sei quem é este Bernardo, que, simpaticamente e sem tarifas de correio, me
trouxe recuerdos, fotos e novas das
margens do Mandovy, dos portais de
Britona. Fico-lhe grato por me fazer chegar a mãos, numa época que já
cheira a Natal, lembranças de uma Goa que, embora distante fisicamente,
continua a ser rememorada.
E
penso, efetivamente, que (embora nunca os descartando, claro está!) mais do que
os móveis de teca rendilhada e os Meninos Jesus Bons Pastores, mais do que os
calvários em marfim e as colchas sumptuosas, mais do que as bebincas e os vindalhos, é nestes pequenos gestos –
uma foto com uma dedicatória simpática, num português perfeito, por exemplo –
que a relação entre Goa e Portugal se mantém e, creio, também se deverá manter.
Já sem complexos nem prepotências, já sem dramas nem imperialismos: como dois
velhos amigos, ainda aparentados, que mantêm uma longa relação repleta de altos
e baixos (como sucede em muitas relações), mas que ainda sentem algo forte
quando se miram mutuamente.
Saudosismo?
Talvez. Idealismo tonto? Quiçá. Mas a verdade é que quando chegou o pacote de
Goa a casa dos meus Pais, no centro de Coimbra, no dia chuvoso e feio de ontem
(ainda que temperado pelos preparativos alegres das decorações de Natal em
torno das quais nos entretínhamos) correu uma suave brisa tropical, trazendo
boas memórias de outro ponto do mundo. Uma brisa do Mandovy, certamente.
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