UMA GRANDE MENTIRA
Anda
por aí a palmilhar as redes sociais e os centros turísticos deste nosso país um
vídeo promocional que, confesso, não sei classificar se ridículo, se
desprezível, se perigoso. A peça, que dá pelo insonsíssimo nome de A Beleza da Simplicidade (sem
comentários…) pretende vender-nos ao mercado estrangeiro que tenha capital para
investir em incursões turísticas a uma terra que, admito, não consigo
reconhecer. Pode ser incapacidade minha, é certo, mas eu não alcanço
identificar aquela monotonia sem fim de searas alentejanas e pedras
escalavradas intercaladas (felizmente, há algo interessante para
contrabalançar!) com algumas boas imagens de praia e mar, aquele enjoo de
horríveis aldeias paradas no tempo, sem raça nem graça nas suas casinhas
brancas janela-porta-janela, aquela sensaboria de sequências de campos de golfe
entre cidades e vilórias onde os nativos são afáveis, engraçados e, coitados,
simples, tão simples… e sorridentes, e hospitaleiros, como em qualquer país do
3º mundo que se preze…
É
verdade que também se vislumbram alguns dos clichés do costume: os Jerónimos, a
Batalha, a Pena. Mas vêem-se de fora, ao longe, com medo e à distância – como que
pedindo desculpa por aqueles excessos que os pacatos e simples habitantes deste
país cometeram já lá vão muitos anos, nos intervalos em que se esqueciam de que
a sua essência era precisamente o inverso, era a simplicidade. Descomedimentos
esses que, hoje, já redimidos por uma forte (mas sempre suave) atitude de singeleza
coletiva, até acabam por constituir apontamentos curiosos: afinal, entre os campos
de trigo louro e os campos de golfe, a caminho da praia ou da casinha tenebrosa
na aldeola da lezíria, os turistas sempre poderão por lá passar, apear-se,
tirar meia dúzia de fotos.
Tenho
vergonha em que alguém procure vender esta imagem da minha terra e sinto um
profundo desdém por todos aqueles que, como os realizadores do vídeo em
questão, nos procuram reduzir a um povo amorfo e hospitaleiro, que vive há
centenas de anos em casebres brancos alimentando-se de pão, pouco trabalhador
(já viram que no vídeo ninguém aparece a fazer nada?!), pouco culto (não são
manifestações isoladas de pseudo-cultura que nos mostram como gente que usa a
cabeça: que ridículo, aquele violoncelista solitário; que patética, a menina a
fingir que lê nas escadas da Lello, bonitas mas desconfortáveis!) e pouco
ambicioso, desejoso de servir de caddy
dos golfers que nos quiserem
presentear com a sua presença e o seu óbolo para continuarmos a comer o fruto
das nossas searas e a comprar cal para manter as nossas casinhas “catitas”.
Discursos que, inapelavelmente, lembram momentos menos bons do marketing de outras épocas, que creio
poucos desejarem que voltem…
O
meu país não é aquela realidade morna e básica. É certo que tem vários pontos
em comum com o dito vídeo: um sol rutilante que nos dá energia e boa
disposição, um mar tentador em que quase sempre apetece mergulhar, serras de
pedras escuras e lagoas frias que são engraçadas de visitar de vez em quando.
Mas pouco mais… No meu país, não se fazem elogios nem da simplicidade, nem da
uniformidade, nem da mandriice. As pessoas aplicam-se, estudam e trabalham e,
quando gostam, jogam golfe (ou outra coisa qualquer). Não passam o tempo a
repousar e a servir quem vem de fora. Podemos jogar com eles – e espero
sinceramente que sempre o façamos – mas não somos caddies de ninguém. No meu país – esse que, lamento, é tudo menos um
elogio à simplicidade –, e seguindo
por alto a ordem do vídeo, acordo numa cama de estilo (D. João V, D. Maria, de bilros, é uma questão de gosto),
mergulho cedinho nas águas da Silveira, à vista dos vetustos casarões de S.
Carlos (onde não se cultiva a simplicidade), contemplo o horizonte do alto da
delirante e barroca escadaria do Bom-Jesus, leio e estudo entre os devaneios chinoiserie da biblioteca joanina, vejo adestrarem
um cavalo no pátio da Ínsua, rescendendo a memórias de um Brasil de outrora,
não vivo entre searas, mas entre uma multiplicidade (por vezes incongruente e
desordenada) de plantas e bem escassa agricultura (mas muitos pinheiros), repouso
numa cadeira de braços vinda de Goa, enquanto bebo um gin. Almoço no terraço do Bussaco, e termino a minha refeição com
uma sobremesa super doce, acompanhada de água fresca (a velha e infalível receita
lisboeta), tudo seguido de um café forte. Vou ao Piódão pela graça, mas a Beira,
para mim, são também outros ambientes. Sabem que no interior nem toda a gente
foi sempre alegre e humilde agricultor? Se não sabem, é melhor começar a abrir
o olho! Namoro nos miradouros lisboetas, tendo por horizonte o rio e a massa imponente de S. Vicente
de Fora. Não moro – desculpem, não moro mesmo, nem creio que conheça alguém que
more – numa pitoresca casinha branca coberta de cal perdida numa aldeiazinha moribunda.
Não sou agricultor, e tanto bebo chá em canecas normais como em chávenas
mandarim (em Portugal há muitas, sabem, srs organizadores do vídeo? Talvez por
termos mantido durante séculos relações próximas com o Oriente, em vez de
passarmos o tempo a adubar searas monótonas). Não miro a Pena de fora, a medo: entro,
percorro os seus ambientes, sinto que muito daquilo me diz algo. Ah! E, nesse
meu país, também há azulejos. Só que não são todos desses reles padrões
oitocentistas de forrar paredes exteriores que filmaram. Também os há
magníficos, verdadeiras e caprichosas obras-primas, enchendo salões e igrejas,
jocosos e moralistas, pios e profanos, bizarros e elegantes.
O
meu país é assim, barroco e tropical, europeu e mediterrânico. Foi a sua especificidade
que o tornou atraente aos olhos de tantos que o conhecem, é a sua
especificidade que também contribui para nos tornar a nós especiais, é a essa mesma especificidade que me faz gostar dele.
Por
isso, se tiver de voltar a ver aquele vídeo promocional, espero levantar os
olhos do livro que estiver a folhear, tatear entre os papéis até encontrar um
pisa-papéis chinês bem arrebicado e pesado, e arremessá-lo contra a televisão.
Depois,
poderei voltar a sentar-me numa cadeira de couro lavrado e preguinhos que
esteja por aí… pois, uma das cadeiras em todo o mundo chamadas portuguesas. E que, tal como nós, são
tudo menos… simples!