Monday, November 19, 2012

UMA GRANDE MENTIRA


Anda por aí a palmilhar as redes sociais e os centros turísticos deste nosso país um vídeo promocional que, confesso, não sei classificar se ridículo, se desprezível, se perigoso. A peça, que dá pelo insonsíssimo nome de A Beleza da Simplicidade (sem comentários…) pretende vender-nos ao mercado estrangeiro que tenha capital para investir em incursões turísticas a uma terra que, admito, não consigo reconhecer. Pode ser incapacidade minha, é certo, mas eu não alcanço identificar aquela monotonia sem fim de searas alentejanas e pedras escalavradas intercaladas (felizmente, há algo interessante para contrabalançar!) com algumas boas imagens de praia e mar, aquele enjoo de horríveis aldeias paradas no tempo, sem raça nem graça nas suas casinhas brancas janela-porta-janela, aquela sensaboria de sequências de campos de golfe entre cidades e vilórias onde os nativos são afáveis, engraçados e, coitados, simples, tão simples… e sorridentes, e hospitaleiros, como em qualquer país do 3º mundo que se preze…
É verdade que também se vislumbram alguns dos clichés do costume: os Jerónimos, a Batalha, a Pena. Mas vêem-se de fora, ao longe, com medo e à distância – como que pedindo desculpa por aqueles excessos que os pacatos e simples habitantes deste país cometeram já lá vão muitos anos, nos intervalos em que se esqueciam de que a sua essência era precisamente o inverso, era a simplicidade. Descomedimentos esses que, hoje, já redimidos por uma forte (mas sempre suave) atitude de singeleza coletiva, até acabam por constituir apontamentos curiosos: afinal, entre os campos de trigo louro e os campos de golfe, a caminho da praia ou da casinha tenebrosa na aldeola da lezíria, os turistas sempre poderão por lá passar, apear-se, tirar meia dúzia de fotos.
Tenho vergonha em que alguém procure vender esta imagem da minha terra e sinto um profundo desdém por todos aqueles que, como os realizadores do vídeo em questão, nos procuram reduzir a um povo amorfo e hospitaleiro, que vive há centenas de anos em casebres brancos alimentando-se de pão, pouco trabalhador (já viram que no vídeo ninguém aparece a fazer nada?!), pouco culto (não são manifestações isoladas de pseudo-cultura que nos mostram como gente que usa a cabeça: que ridículo, aquele violoncelista solitário; que patética, a menina a fingir que lê nas escadas da Lello, bonitas mas desconfortáveis!) e pouco ambicioso, desejoso de servir de caddy dos golfers que nos quiserem presentear com a sua presença e o seu óbolo para continuarmos a comer o fruto das nossas searas e a comprar cal para manter as nossas casinhas “catitas”. Discursos que, inapelavelmente, lembram momentos menos bons do marketing de outras épocas, que creio poucos desejarem que voltem…
O meu país não é aquela realidade morna e básica. É certo que tem vários pontos em comum com o dito vídeo: um sol rutilante que nos dá energia e boa disposição, um mar tentador em que quase sempre apetece mergulhar, serras de pedras escuras e lagoas frias que são engraçadas de visitar de vez em quando. Mas pouco mais… No meu país, não se fazem elogios nem da simplicidade, nem da uniformidade, nem da mandriice. As pessoas aplicam-se, estudam e trabalham e, quando gostam, jogam golfe (ou outra coisa qualquer). Não passam o tempo a repousar e a servir quem vem de fora. Podemos jogar com eles – e espero sinceramente que sempre o façamos – mas não somos caddies de ninguém. No meu país – esse que, lamento, é tudo menos um elogio à simplicidade –, e seguindo por alto a ordem do vídeo, acordo numa cama de estilo (D. João V, D. Maria, de bilros, é uma questão de gosto), mergulho cedinho nas águas da Silveira, à vista dos vetustos casarões de S. Carlos (onde não se cultiva a simplicidade), contemplo o horizonte do alto da delirante e barroca escadaria do Bom-Jesus, leio e estudo entre os devaneios chinoiserie da biblioteca joanina, vejo adestrarem um cavalo no pátio da Ínsua, rescendendo a memórias de um Brasil de outrora, não vivo entre searas, mas entre uma multiplicidade (por vezes incongruente e desordenada) de plantas e bem escassa agricultura (mas muitos pinheiros), repouso numa cadeira de braços vinda de Goa, enquanto bebo um gin. Almoço no terraço do Bussaco, e termino a minha refeição com uma sobremesa super doce, acompanhada de água fresca (a velha e infalível receita lisboeta), tudo seguido de um café forte. Vou ao Piódão pela graça, mas a Beira, para mim, são também outros ambientes. Sabem que no interior nem toda a gente foi sempre alegre e humilde agricultor? Se não sabem, é melhor começar a abrir o olho! Namoro nos miradouros lisboetas, tendo por horizonte o rio e a massa imponente de S. Vicente de Fora. Não moro – desculpem, não moro mesmo, nem creio que conheça alguém que more – numa pitoresca casinha branca coberta de cal perdida numa aldeiazinha moribunda. Não sou agricultor, e tanto bebo chá em canecas normais como em chávenas mandarim (em Portugal há muitas, sabem, srs organizadores do vídeo? Talvez por termos mantido durante séculos relações próximas com o Oriente, em vez de passarmos o tempo a adubar searas monótonas). Não miro a Pena de fora, a medo: entro, percorro os seus ambientes, sinto que muito daquilo me diz algo. Ah! E, nesse meu país, também há azulejos. Só que não são todos desses reles padrões oitocentistas de forrar paredes exteriores que filmaram. Também os há magníficos, verdadeiras e caprichosas obras-primas, enchendo salões e igrejas, jocosos e moralistas, pios e profanos, bizarros e elegantes.
O meu país é assim, barroco e tropical, europeu e mediterrânico. Foi a sua especificidade que o tornou atraente aos olhos de tantos que o conhecem,  é a sua especificidade que também contribui para nos tornar a nós especiais, é a essa mesma especificidade que me faz gostar dele. 



Por isso, se tiver de voltar a ver aquele vídeo promocional, espero levantar os olhos do livro que estiver a folhear, tatear entre os papéis até encontrar um pisa-papéis chinês bem arrebicado e pesado, e arremessá-lo contra a televisão.
Depois, poderei voltar a sentar-me numa cadeira de couro lavrado e preguinhos que esteja por aí… pois, uma das cadeiras em todo o mundo chamadas portuguesas. E que, tal como nós, são tudo menos… simples!

Friday, November 09, 2012

ORIENTALISMOS BEIRÕES


Para mim, por mais anos que viva e mais toneladas de documentos que estude, Macau será sempre uma sala da Beira. Uma sala que, cada vez mais, já só existe no meu subconsciente e que, de ano para ano, se vai fisicamente eclipsando. Por assim ser, para mim, por muito que aprenda sobre o que aquela cidade realmente foi, Macau permanecerá eternamente um lugar agradável onde paira o doce cheiro a cânfora. Os seus interiores são afáveis, cheios de móveis de pau-preto com incrustações de madrepérola que contarão histórias dos dias em que foram comprados nos tintins do Bairro Chinês (a mesa que estava tão suja que nem o vendedor se apercebera dos seus fantásticos embutidos, os ecrãs envolvendo os quadros de seda que quase formam uma história, as peças adquiridas só depois de regateadas durante meses a par das que foram compradas por tuta-e-meia a viciados no jogo desesperados por ir gastar umas patacas no fan-tan). Sobre eles, estão jarras e potes de vários tipos, feitios e decorações: o jarrão da guerra, com os seus combatentes vestidos de modo bizarro e brandindo armas de formatos inesperados, contorcendo-se em cima de estranhas montadas; a jarra dos cavaleiros, em que cada homem se equilibrava sobre um animal diferente, qual deles mais estapafúrdio; as jarras dos dragões, nas quais estes trepavam em torno de estreitos gargalos de latão; potes mil-flores; as jarras “dos buracos”, representando jardins bastante utópicos; e os vários jarrões mandarim – dispostos pelo chão, como vim a descobrir que também se fazia em Goa – onde cenas galantes e garridas de cruzam, num xadrez sempre parecido mas nunca igual, com molhos de flores e pássaros pintados mais ou menos delicadamente. Num canto, com os dedos das mãos (de uma cor ligeiramente diferente do corpo) já partidos, a deusa Kuan-yn vigia duas bailarinas de porcelana que dançam sobre uma velha mesa de sacrifícios atulhada com um perfumador, uma taça, castiçais vetustos (com velas vermelhas com mais dragões dourados espiralados, a combinar com as almofadas que se espalham sobre os cadeirões desconfortáveis mas solenes) e dentes de elefante cheios de cobras enroscadas e passarada emboscada entre folhedo. E bailam permanentemente mirando-se no espelho de cânfora que lhes resguarda as costas, meneando-se para os dois budas (“um indiano, outro chinês, um magrinho, outro goooordo”) que estão do lado oposto da sala, para além da mesa central com pedras embrechadas que mais parecem rebuçados coloridos. Pelas paredes, entre fotografias, há compridas tábuas com carateres que ninguém sabe decifrar mas que todos acreditamos serem benfazejos (não lhes chamamos, afinal, tábuas da felicidade?), rolinhos frágeis de papel onde se lê, aos cantos, numa tinta esmaecida, “Macau, 1938” e uma longa, longuíssima, peça de pano, vermelhona, bordada a dourado (“é fio de ouro, mas isto só se diz para impressionar: não vale grande coisa”) com velhos barbados, leões enormes, incompreensíveis galos e uma fénix ao centro, para além dos inevitáveis carateres enigmáticos e garrafais – tudo isto envolto em franjas multicolores. A porta está resguardada por um largo pano do mesmo género, mas este cheio de figurinhas a subir e a descer, como atores numa peça de teatro (“se olhares com atenção, vês que eles contam uma história!”, mais dois leões de cabeleira verde e carateres, sempre carateres). Também há peças estranhas: um espelho de mão de metal tão velho que oxidou por completo e mais parece uma raquete insólita, uma miniatura de um túmulo chinês, estatuetas de velhos fazendo estranhos esgares empoleiradas em prateleiras em forma de dragão, um cachimbo de ópio – tudo isto alumiado por dois candeeiros chineses (um, ao centro, TÃO parecido com os do Lótus Azul do Tintim, e o outro, na parede, que é uma bola de latão cuspida por um dragão!). Nas prateleiras das mesinhas, álbuns meios desfeitos guardam fotos de uma China distante, à mistura com ementas, “cromos” de papel de arroz, “instantâneos” de monumentos e de cenas de rua.
Eu sei que a Macau de outrora não é isto, e cada vez mais vou percebendo que os fundamentos daquela terra são pouco adocicados. Casas de jogo clandestinas, tráfico de ópio e de mulheres, desobediência constante, joguinhos ardilosos com os mandarins, funcionários civis e judiciais pouco escrupulosos, tudo aproveitando-se de uma população bastante miserável. Ruas sujas, habitações na sua maioria estreitas, interiores sem luxo nem conforto. Eu sei… e não me esqueço disso. No entanto, meus caros, como sabe bem, ao sair desse lodaçal, penetrar nesta minha revigorante Macau pessoal – certamente idealizada, naturalmente kitsch, erguida de acordo com um gosto orientalizante da primeira metade do século passado numa casa perdida entre pinhais!
Sei, por outro lado, que, à semelhança da Macau que pretendeu representar, também a sala de que falo já não existe a não ser na minha memória. A passagem do tempo tem destas coisas: se há sítios que permanecem, há outros que não resistem, e cuja recordação se vai esboroando aos poucos, lenta mas inexoravelmente. Isso não é bom nem é mau: é o que é. Não vou dizer que este continuado processo de desmantelamento não me custa um bocadinho – acho que me custará sempre – mas a verdade é que, enquanto me lembrar daquela sala (e acho que jamais a esquecerei) terei forças para estudar, sem esmorecer, o “oriente português” (designação provavelmente tão disparatada como, se analisada fria e logicamente, o era aquela divisão) de que comecei a gostar verdadeiramente entre as suas quatros paredes.
Se o mundo fosse apenas um espaço aberto a análises frias e sensatas, seria certamente um lugar muuuito aborrecido! ;) 


Tuesday, November 06, 2012

(A)NORMALIDADE(S)


Contra o que tem vindo a ser meu hábito – ou seja, contra o que se pode considerar “normal” – quebro hoje a “regra” (que não o é verdadeiramente… trata-se mais de um uso, juridicamente falando) de me limitar a contribuir semanalmente para a alimentação destes prazos serrazinescos. Tal quebra de rotinas – tal ato anormal, afinal – torna-se contudo muito mais compreensível se tivermos em conta o título do presente post.
Todos nós (quero crer, uma vez que a falta de tais interlocutores deve tornar a vida de qualquer um muito menos interessante) dispomos de alguns amigos com os quais debatemos, regularmente, uma miríade de questões, desde simples questiúnculas profissionais a entusiasmantes debates políticos, tudo à mistura com a análise crítica de um par de livros e filmes e, talvez, até de umas questões mais desportivas. Pessoas com as quais podemos falar de temas sérios e, em paralelo, soltar umas boas gargalhadas (o que é, de acordo com a minha experiência, sempre um procedimento aconselhado na sequência da discussão dos tais assuntos mais sisudos). Eu tenho a ventura de contar com uns tantos, e, de entre eles, quero hoje destacar dois, tendo em conta uma coincidência curiosa a que em breve aludirei: a Filipa e o Manel. Estes, apesar de não se conhecerem, têm bastantes coisas em comum: ambos são meus colegas (os juristas são assim, uns chatos que têm a tendência a juntar-se entre si), mas em áreas diferentes – a Filipa, na ESTG, o Manel, num dos projetos de investigação que integro –; ambos são (como hei-de eu dizer isto, sem parecer ofensivo…) “juristas atípicos”, no sentido de que falam e pensam em muitos mais assuntos do que meros assuntos processuais (qualquer um deles tem fortíssimas convicções políticas, religiosas, sociais, ideológicas, culturais, etc, etc); ambos são companhias tudo menos entediantes, com quem se pode conversar durante horas sobre os mais diferentes assuntos; e os dois apreciam, felizmente! diálogos suficientemente temperados de humor cáustico. Isto no que toca a semelhanças, pois também há diferenças que os apartam. A Filipa é, de certa maneira, a minha consciência sindicalista, que me faz cair, com a exasperação que sente perante o estado atual do mundo em que nos movemos, dos confortos (cada vez menos) burgueses a que gosto de me recostar. Dá-me notícias dramáticas, em tom catastrófico mas combativo, durante o jantar, para, dois segundos depois, digerida a bomba, já estarmos a falar de qualquer coisa completamente diferente e muito mais hilariante. E, por vezes, serve de preciosa intermediária entre um Luís sempre demasiado despistado e “nas nuvens” os mil e um pormenores do quotidiano (não falo de aspetos burocráticos, que facilmente vou controlando, mas das, sempre mais complicadas do que formulários e sumários, pessoas) que nos rodeia. O Manel, pelo contrário – apesar de também adotar uma postura de descontentamento face ao mundo, e, assim, me fazer por vezes “descer à terra” – é uma alma muito mais revolucionária, e (talvez faça parte da definição de “alma revolucionária”, ainda não percebi muito bem…), quiçá por isso, amargurada. Por vezes, a Filipa fica impressionada como eu não reparo em quem casou, descasou, se juntou e se separou (e como estou sempre desatualizadíssimo nesses domínios, fundamentais para quem, como eu, gosta muito de viver em sociedade). Por vezes, o Manel exaspera-se com o que eu creio que ele acha ser a minha atitude “neo-tropicalista”, dançando valsas e mandós (a “valsa goesa”) com as elites “naturais” católicas nos salões da Sociedade de Geografia, isolados numa bolha enquanto o mundo em nosso redor se decompõe. Ambos terão, certamente – até certo ponto, pelo menos – alguma razão.
Ora, porquê falar nestes dois personagens? Por um interessante sincronismo: ontem, depois do jantar, eu e a Filipa gastámos uma agradável vintena de minutos a discutir animadamente o que pode ser entendido como diferentes variantes daquilo a que chamamos “normalidade” (nos relacionamentos, na nossa vida profissional, nos espaços em que vivemos, na opinião que temos dos outros e que os outros têm de nós, na forma como o governo é visto, etc, etc). Hoje de manhã, o Manel, no seu blog (a Filipa ainda não aderiu ao mundo dos blogues, o que é uma pena!), publicou um post atormentado sobre o que se pode definir, a meu ver, como a impossibilidade de sensatamente se fugir à anormalidade.
Assim, de tanto ouvir e ler e debater sobre o assunto, era praticamente impossível não pensar, a caminho do ténis e a caminho da ESTG, a par com o caso prático que hoje queria dar aos alunos, nisto que gostamos de chamar normal. Eu, diferentemente do Manel, considero que, acima de tudo, a normalidade pode ser um excelente meio para conservarmos (numa vida em sociedade), todos, as nossas (pequenas ou grandes) anormalidades. Claro está que quando falo de “todos”, falo de pessoas que gostam de por os seus talentos a render, têm capacidade crítica, e não se contentam com um triste anonimato. Felizmente, creio que a maioria das pessoas que conheço (ou seja, aquelas que conheço porque quero efetivamente conhecer) se inserem neste grupo. Ou seja, sem a rede da normalidade, as nossas anormalidades – isto é, as idiossincrasias dos muitos Luíses, Filipas e Manéis que há por esse mundo fora – tornar-se-iam de tal forma autónomas que poderíamos correr o risco de sermos sufocados por elas. E (acho que a Filipa e o Manel jamais contrariariam tal raciocínio) não nos podemos tornar escravos das nossas particularidades. Quanto muito, podemos tentar escravizá-las a ELAS em nosso favor (e aqui já os ouço aos dois a gritar IMPERIALISTA!!). Falando por mim: eu sou (também) uma pessoa cheia de características complicadíssimas. É verdade que creio ter um mínimo de jeito para meia dúzia de coisas, mas, por outro lado, sou um tipo que tão depressa se sente um monarca imperante como uma miserável alma angustiada, não consigo trabalhar sob pressão, odeio o crepúsculo de forma irracional, sou obsessivamente combativo e intrínseca e doentiamente ambicioso, tenho tendências capitalísticas entranhadas no meu mais profundo âmago (só pode ser resultado de alguma herança genética: eu tenho enorme prazer em acumular por acumular, em ter mais, fazer mais, juntar mais; vejo uma videira, e, em vez de começar a lacrimejar por não ter nenhuma, começo a cogitar como é que conseguirei uma para mim, e, depois de a obter, já sei que pensarei que “ora, quem tem uma tem duas”, e assim sucessivamente), sou por vezes chato nos meus relacionamentos (quer familiares, quer nos demais: a família tem de ter uma paciência evangélica para, em certas ocasiões, me aturar; e tenho uma tendência horrível para me fartar das contrapartes nos demais casos – “é porque ainda não encontraste a pessoa certa”), sou não raro excessivamente prudente, sou um bocadinho snob, sou muito convencido, sou muito mandão, sou extremamente rotineiro, só me interesso por pessoas que me parecem desafiantes, etc, etc. Assim sendo, se eu caísse no erro (ou na tentação) de garantir a qualquer um destes traços difíceis um domínio sobre a minha vida que nenhum deles pode ter – para bem da minha sanidade mental e da dos que me rodeiam – dar-me-ia certamente (se não a curto, a médio ou longo prazo) mal, bastante mal. E é aqui que entra a “normalidade”, com os seus ritmos relaxantes, que diluem as angulosidades mais agressivas e limam as arestas mais salientes. As balizas da “normalidade” são, creio bem, para todos nós condições básicas de sobrevivência – no sentido de (talvez…) uma “sobrevivência capitalística”, porque assente numa permanente e intensa (mas também sensata e sustentada) exploração dos nossos talentos, que são, afinal, os nossos recursos naturais.
Até aqui falei de “normalidade” naquele que, a meu ver, é o sentido positivo da mesma. E é neste ponto que me distancio, por exemplo, do Manel (mas a verdade é que as nossas conversas dão sempre nisto: se é certo que concordamos em vários pontos importantes, há sempre polémica em torno dos caminhos a seguir para lá chegar!).
Mas, sejamos francos, a “normalidade” também pode ser uma prisão horrível e castradora, sobretudo para aqueles que não podem (ou não querem) livrar-se dela, ou sequer ensaiar uma fuga. Agora, falo da “normalidade” no sentido da “vidinha comezinha”, em que todos se pautam (pelo menos, publicamente…) pelos mesmos padrões e perspetivas. Eu, feliz ou infelizmente, sei pouco o que isso é… os que me rodeiam (a começar pela família) sempre foram pouco dados a tais “carneirismos anónimos”, e sempre prezámos muitíssimo as nossas especificidades (que não nos apartam do resto do mundo, antes nos garantem um lugar lá). Quem está de acordo, é bem-vindo; quem não está, também, porque não há melhor do que um bom debate! ;-)  Aqui, eu concordo com a Filipa e o Manel: aplicarmos padrões e rótulos normalizados aos que nos rodeiam é não só sufocante como perigoso, no sentido de que mata muitos dos tais recursos de que todos individualmente dispomos e coletivamente potenciamos. Mais, pode até garantir frustrações, insatisfações mais ou menos permanentes, sentimentos de culpa por se fugir à norma. Isso, é insustentável, porque empobrecedor (lá está o capitalismo outra vez??).
No entanto, garantir que essas mesmas orientações gerais da vida em sociedade não só não nos amputam dolorosamente como, também, são suscetíveis de nos ajudar (e aos quer nos rodeiam) a viver com as nossas especificidades parece-me ser um desafio muito mais interessante. Parece-me ser um desafio para ser levado de forma sustentada, prudente, obsessiva e determinada, rumo a uma vitória que não pode faltar! Um desafio como eu gosto! ;-)
No fundo, a “normalidade” é semelhante ao IKEA (e eu não tenho especial simpatia por tal cadeia, como todos os que me conhecem sabem). Há dois tipos de consumidores dos produtos IKEA. Por um lado, os que compram aqueles móveis anódinos e com eles montam ambientes inofensivos e secantes que se repetem mundo fora e nos merecem nada mais do que um entediado bocejo. Por outro, os que, por terem muitos livros para arrumar, para dar uso efetivo a todos eles (se estiverem aos montes em caixas, de pouco servem) compram uns metros de estantes billy e enchem-nos com os seus volumes. As billy estão lá, e até são IKEA. Mas não estão lá nem por serem billy, nem por serem IKEA. Estão lá porque, sem elas, ninguém (a começar por nós) via os livros espetaculares e a biblioteca única que, afinal, temos! ;-)


Sunday, November 04, 2012

FEIRAS


Em época não só de crise (o que leva o cidadão comum a procurar soluções e espaços alternativos, no sentido de mais económicos, onde adquirir os bens a cujo consumo já se acostumou) mas também de um certo culto de alguma “memorabilia vintage” bastante escolhida, ouço cada vez mais falar de feiras e mercados de rua. Não me refiro somente aos vocacionados para a venda de couves, rabanetes e outras coisas comestíveis do género (a esses estou acostumado: o meu Pai sempre foi um devotado frequentador do mercado municipal de Coimbra, e em casa do meu Tio ZN – que acabam por ser, afinal, os locais familiares por onde mais paro – sempre se falou com toda a naturalidade dos vendedores paquistaneses do seu congénere de Alvalade), nem das mega-feiras do género da da Golegã, ou da de Santarém (durante as quais sei que os meus alunos originários de qualquer uma destas localidades tendem a descurar muito a sua assiduidade nas aulas), mas de todas as feirinhas de pendor urbano que surgem em qualquer esquina (não vejam nestas considerações a crítica que elas não comportam), ou, mesmo, a miríade de feiras temáticas que, de norte ao sul do país, se vão organizando ao longo do ano.
Ora, no que diz respeito a feiras, eu mantenho uma atitude que considero simultaneamente prática e prudente. Por um lado, prudente, pois (cautelosamente, lá está!) esforço-me por, salvo casos excecionais, ao visitar uma nova feira, partir com as expetativas mais baixas possível. A proliferação das ditas não é sempre acompanhada por uma aposta na sua qualidade, e muitas há que constituem verdadeiras deceções. Por assim ser, se entrar a esperar pouco, pode ser que tenha a sorte de ficar favoravelmente impressionado! De qualquer forma, e mesmo que tal não suceda, fica um patamar mínimo garantido: vim cá sem grandes ilusões, daqui saio tal como entrei!
Por outro lado, gosto de acreditar que adoto uma postura pragmática (ou redutora, dizem algumas vozes!). Há, para mim, três tipos de feiras: as NÃO, as SIM e as NIM.
As NÃO, está bom de ver, são aquelas das quais, à partida, sei que vou gostar pouco, ou mesmo nada. Em regra, porque têm tendência a provocar-me bocejos de aborrecimento ou porque sou tão ignorante nos produtos que vendem que estar lá ou não é praticamente a mesma coisa. Nesta categoria entram, desde logo, os mercados de peixe – e, a bem de verdade, as feiras de produtos comestíveis em geral. É certo que há algumas de que gosto verdadeiramente: aprecio uma feira de chocolates, gosto de mercados de enchidos e até acho alguma graça a mostras de doçaria. Mas, senhores, aquelas feiras em que se exibem dezenas e dezenas de espécies de peixe que parecem todos iguais (sim, eu assumo achar DIFÍCIL distinguir os malditos peixes na banca, por muito que isso provoque a ira paterna, que considera ser essa uma prova de iliteracia gastronómica imperdoável!), ou catorze tipos de repolho e doze de grelos não são lugar para mim! Ou as feiras de vinhos! Eu, nessa matéria, sou muito orientado, e sei claramente o tipo de vinhos de que gosto, os anos e os produtores (para mim, ainda nada bate o Duas Quintas de 96). No entanto, quando toca a comparar bouquets e analisar frutados, sou – admito, sem peias – bastante inepto! “Sente o aroma de carvalho velho?”, podem perguntar-me. Eu (tentando perceber a resposta pelo tom de voz ou pela expressão do interlocutor) posso até garantir que mim, mas não passa de uma mentira piedosa. “Mentiras por bem e amor agradam a Nosso Senhor”, segundo explicava a minha Avó. Por isso, não me sinto especialmente culpado por estas pequenas faltas! Outro caso típico são os mercados de marisco. O marisco e eu temos uma relação complicada, porque absolutamente indiferente. Na verdade, pode-se até dizer que não há relação. Quando as pessoas me perguntam qual é o meu marisco preferido, eu respondo “Lagosta. Já sei que me vai dizer que é muito seco, mas é mesmo por isso que gosto. E também aprecio as cracas da Terceira, uma vez por ano. De resto, não me parece necessário andar a palmilhar bancas malcheirosas. E confesso que, mesmo no que diz respeito à lagosta, o meu voto vai mesmo para a lagosta fingida” (um pudim frio de pescada e tomate, que se faz cá em casa e de que eu gosto IMENSO!!). Não é que não goste de marisco… apenas me esqueço que existe. Há muito boa gente que brada precisar de comer marisco uma vez por mês, ou qualquer coisa do género. Eu creio que posso estar sem sequer o ver a vida inteira (e eu adoro praia e o mar, pelo que isso é difícil) e nem me lembrar da sua existência.
Outras das feiras NÃO são aquelas terríveis mostras de roupa (seja ela étnica – se bem que ache graça à de Anjuna, em Goa – ou mais barata, etc) em que tendas e tendas parecem vender milhares de peças todas terrivelmente parecidas umas com as outras, ou, ainda, as feiras de material de bricolage. Nestas últimas, eu olho para aquelas ferramentas, as ditas olham para mim, concluímos que jamais nos compreenderemos verdadeiramente, e cada um parte feliz e sem remorsos para seu lado.
Depois, temos as feiras NIM. Estas, que constituem (felizmente!) a maioria, são um campo aberto, um desafio a seguir. Parte-se sem saber o que se vai encontrar, e espera-se pelo menos achar algo que desperte o nosso interesse. Por vezes, as expetativas saem totalmente frustradas, noutras até acaba por se achar alguma graça àquilo.
Finalmente, as SIM. Estas são, então, as feiras de que sei que, à partida, vou gostar. E, para mim, há dois grandes tipos deste género: as feiras e mostras de velharias e antiguidades e as feiras do livro. Ah! E – eis talvez um toque de algum “exotismo beirão” – qualquer feira onde se possam comer boas febras no pão (a dos Santos, em Mangualde, é das melhor pontuadas neste ranking).
A mim, relaxa-me sempre uma boa feira de velharias! Ou mesmo uma loja repleta de peças de melhor qualidade. Pode ser um amontoado de tralha velha e inútil, mas desperta sempre em mim uma trindade de instintos: o prazer de investigar por entre aquelas pilhas de bricabraque e falsas velharias, na mira de encontrar algo de jeito (e o bem que me sabe quando me deparo com uma peça que me interesse!); o prazer de negociar e regatear (eu admito que gosto de o fazer, e sou bastante chato, pois posso estar a pechinchar uma coisa qualquer, desde que antiga, que me chame a atenção, durante meses, ou mesmo anos – sou a praga de qualquer vendedor); e o gosto de comparar. O mundo das antiguidades é, digam o que disserem, um mundo de padrões, e só se aprofunda o nosso know-how na matéria vendo muito, comparando muito e (no meu caso) desenhando repetidamente os pormenores. É tudo uma questão de detalhes, de toques, de repetições, de – no fundo – treinar muito “o olho”. Claro que isso por vezes me traz dissabores: continuo a achar que um dos momentos mais bizarros da minha vida foi quando fui (literalmente!) expulso de um antiquário em S. Bento por o dono da loja estar plenamente convencido de que eu era um “olheiro” dos Cabral de Moncada Leiloeiros. Eu bem expliquei ao homenzinho que, apesar de também me chamar Cabral, não tinha NADA a ver com os Moncadas. Mas ele mostrou-se irredutível. Enfim… também ninguém me mandou dizer-lhe que, umas portas acima, havia um armário indo-português quase idêntico a um que ele tinha na loja, mas por 2/3 do preço que pedia. E que não era ele quem pedia o valor acertado. E também é certo que, na semana seguinte, ia eu a subir a rua, o homenzinho saiu disparado da loja apresentando-me as mais compungidas desculpas. As justificações apresentadas foram aceites, mas na verdade nunca mais voltei a pôr os pés naquela loja. Outro dos momentos estranhos nos périplos de Luís pelo mundo das antiguidades foi quando me deparei, numa montra conimbricense, com uma pilha de fotos antigas da minha família à venda. A loja estava fechada, mas telefonei, a espumar de fúria ao dono. A resposta ainda me transtornou mais “As grandes são a 40 euros, as médias a 20, as pequeninas a 15. Também tenho vária documentação. Os preços são altos porque é uma família ilustre da cidade, os PL”. Não interessam os detalhes, mas a verdade é que assustei o senhor: uns dias depois, o mesmo depositava toda aquela papelada e fotos nas minhas mãos, a custo zero (bom, houve uma que tive de pagar, porque a imbecil da mulher do dono “gostava muito dela”).



Restam, assim, as feiras do livro. Quão repousantes e proveitosas podem ser, sobretudo agora, quando temos de contar os tostões! A par dos alfarrabistas (um dia destes também lhes dedico um post), são, não raro, a solução possível nestes tempos de vacas magras e carteiras escalavradas. Sejam velhos ou novos, por abrir ou usados, em português ou noutros idiomas, ajudam sempre a recuperar energias e a multiplicar ideias – sendo que, umas e outras, como é bem sabido, nunca são demais! ;-)