ORIENTALISMOS BEIRÕES
Para
mim, por mais anos que viva e mais toneladas de documentos que estude, Macau
será sempre uma sala da Beira. Uma sala que, cada vez mais, já só existe no meu
subconsciente e que, de ano para ano, se vai fisicamente eclipsando. Por assim
ser, para mim, por muito que aprenda sobre o que aquela cidade realmente foi, Macau
permanecerá eternamente um lugar agradável onde paira o doce cheiro a cânfora. Os seus
interiores são afáveis, cheios de móveis de pau-preto com incrustações de
madrepérola que contarão histórias dos dias em que foram comprados nos tintins do Bairro Chinês (a mesa que
estava tão suja que nem o vendedor se apercebera dos seus fantásticos
embutidos, os ecrãs envolvendo os quadros de seda que quase formam uma história,
as peças adquiridas só depois de regateadas durante meses a par das que foram
compradas por tuta-e-meia a viciados no jogo desesperados por ir gastar umas patacas
no fan-tan). Sobre eles, estão jarras
e potes de vários tipos, feitios e decorações: o jarrão da guerra, com os seus
combatentes vestidos de modo bizarro e brandindo armas de formatos inesperados,
contorcendo-se em cima de estranhas montadas; a jarra dos cavaleiros, em que
cada homem se equilibrava sobre um animal diferente, qual deles mais
estapafúrdio; as jarras dos dragões, nas quais estes trepavam em torno de
estreitos gargalos de latão; potes mil-flores; as jarras “dos buracos”,
representando jardins bastante utópicos; e os vários jarrões mandarim –
dispostos pelo chão, como vim a descobrir que também se fazia em Goa – onde cenas
galantes e garridas de cruzam, num xadrez sempre parecido mas nunca igual, com
molhos de flores e pássaros pintados mais ou menos delicadamente. Num canto,
com os dedos das mãos (de uma cor ligeiramente diferente do corpo) já partidos,
a deusa Kuan-yn vigia duas bailarinas
de porcelana que dançam sobre uma velha mesa de sacrifícios atulhada com um
perfumador, uma taça, castiçais vetustos (com velas vermelhas com mais dragões dourados
espiralados, a combinar com as almofadas que se espalham sobre os cadeirões
desconfortáveis mas solenes) e dentes de elefante cheios de cobras enroscadas e
passarada emboscada entre folhedo. E bailam permanentemente mirando-se no
espelho de cânfora que lhes resguarda as costas, meneando-se para os dois budas
(“um indiano, outro chinês, um magrinho,
outro goooordo”) que estão do lado oposto da sala, para além da mesa
central com pedras embrechadas que mais parecem rebuçados coloridos. Pelas
paredes, entre fotografias, há compridas tábuas com carateres que ninguém sabe
decifrar mas que todos acreditamos serem benfazejos (não lhes chamamos, afinal,
tábuas da felicidade?), rolinhos
frágeis de papel onde se lê, aos cantos, numa tinta esmaecida, “Macau, 1938” e uma longa, longuíssima,
peça de pano, vermelhona, bordada a dourado (“é fio de ouro, mas isto só se diz para impressionar: não vale grande
coisa”) com velhos barbados, leões enormes, incompreensíveis galos e uma
fénix ao centro, para além dos inevitáveis carateres enigmáticos e garrafais –
tudo isto envolto em franjas multicolores. A porta está resguardada por um
largo pano do mesmo género, mas este cheio de figurinhas a subir e a descer,
como atores numa peça de teatro (“se
olhares com atenção, vês que eles contam uma história!”, mais dois leões de
cabeleira verde e carateres, sempre carateres). Também há peças estranhas: um
espelho de mão de metal tão velho que oxidou por completo e mais parece uma
raquete insólita, uma miniatura de um túmulo chinês, estatuetas de velhos
fazendo estranhos esgares empoleiradas em prateleiras em forma de dragão, um cachimbo
de ópio – tudo isto alumiado por dois candeeiros chineses (um, ao centro, TÃO
parecido com os do Lótus Azul do Tintim, e o outro, na parede, que é uma bola
de latão cuspida por um dragão!). Nas prateleiras das mesinhas, álbuns meios
desfeitos guardam fotos de uma China distante, à mistura com ementas, “cromos”
de papel de arroz, “instantâneos” de monumentos e de cenas de rua.
Eu
sei que a Macau de outrora não é isto, e cada vez mais vou percebendo que os
fundamentos daquela terra são pouco adocicados. Casas de jogo clandestinas,
tráfico de ópio e de mulheres, desobediência constante, joguinhos ardilosos com
os mandarins, funcionários civis e judiciais pouco escrupulosos, tudo
aproveitando-se de uma população bastante miserável. Ruas sujas, habitações na
sua maioria estreitas, interiores sem luxo nem conforto. Eu sei… e não me
esqueço disso. No entanto, meus caros, como sabe bem, ao sair desse lodaçal, penetrar
nesta minha revigorante Macau pessoal – certamente idealizada, naturalmente kitsch, erguida de acordo com um gosto
orientalizante da primeira metade do século passado numa casa perdida entre
pinhais!
Sei, por outro lado, que, à semelhança da Macau que pretendeu representar,
também a sala de que falo já não existe a não ser na minha memória. A passagem do
tempo tem destas coisas: se há sítios que permanecem, há outros que não resistem,
e cuja recordação se vai esboroando aos poucos, lenta mas inexoravelmente. Isso
não é bom nem é mau: é o que é. Não vou dizer que este continuado processo de
desmantelamento não me custa um bocadinho – acho que me custará sempre – mas a
verdade é que, enquanto me lembrar daquela sala (e acho que jamais a
esquecerei) terei forças para estudar, sem esmorecer, o “oriente português” (designação
provavelmente tão disparatada como, se analisada fria e logicamente, o era
aquela divisão) de que comecei a gostar verdadeiramente entre as suas quatros
paredes.
Se
o mundo fosse apenas um espaço aberto a análises frias e sensatas, seria
certamente um lugar muuuito aborrecido! ;)
1 Comments:
bom, ao ler este post não posso deixar de me sentir um pouco responsabilizada pelo desmantelar uma memória, mas para mim tem mais significado manter uma casa, reabilitando-a e garantindo que não se desmorona, do que reabilitar um recheio.
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