(A)NORMALIDADE(S)
Contra
o que tem vindo a ser meu hábito – ou seja, contra o que se pode considerar “normal” – quebro hoje a “regra” (que não
o é verdadeiramente… trata-se mais de um uso,
juridicamente falando) de me limitar a contribuir semanalmente para a
alimentação destes prazos serrazinescos. Tal quebra de rotinas – tal ato anormal, afinal – torna-se contudo muito
mais compreensível se tivermos em conta o título do presente post.
Todos
nós (quero crer, uma vez que a falta de tais interlocutores deve tornar a vida
de qualquer um muito menos interessante) dispomos de alguns amigos com os quais
debatemos, regularmente, uma miríade de questões, desde simples questiúnculas
profissionais a entusiasmantes debates políticos, tudo à mistura com a análise
crítica de um par de livros e filmes e, talvez, até de umas questões mais
desportivas. Pessoas com as quais podemos falar de temas sérios e, em paralelo,
soltar umas boas gargalhadas (o que é, de acordo com a minha experiência,
sempre um procedimento aconselhado na sequência da discussão dos tais assuntos
mais sisudos). Eu tenho a ventura de contar com uns tantos, e, de entre eles,
quero hoje destacar dois, tendo em conta uma coincidência curiosa a que em
breve aludirei: a Filipa e o Manel. Estes, apesar de não se conhecerem, têm
bastantes coisas em comum: ambos são meus colegas (os juristas são assim, uns
chatos que têm a tendência a juntar-se entre si), mas em áreas diferentes – a Filipa,
na ESTG, o Manel, num dos projetos de investigação que integro –; ambos são
(como hei-de eu dizer isto, sem parecer ofensivo…) “juristas atípicos”, no
sentido de que falam e pensam em muitos mais assuntos do que meros assuntos
processuais (qualquer um deles tem fortíssimas convicções políticas,
religiosas, sociais, ideológicas, culturais, etc, etc); ambos são companhias
tudo menos entediantes, com quem se pode conversar durante horas sobre os mais
diferentes assuntos; e os dois apreciam, felizmente! diálogos suficientemente
temperados de humor cáustico. Isto no que toca a semelhanças, pois também há
diferenças que os apartam. A Filipa é, de certa maneira, a minha consciência
sindicalista, que me faz cair, com a exasperação que sente perante o estado atual
do mundo em que nos movemos, dos confortos (cada vez menos) burgueses a que
gosto de me recostar. Dá-me notícias dramáticas, em tom catastrófico mas
combativo, durante o jantar, para, dois segundos depois, digerida a bomba, já
estarmos a falar de qualquer coisa completamente diferente e muito mais
hilariante. E, por vezes, serve de preciosa intermediária entre um Luís sempre
demasiado despistado e “nas nuvens” os mil e um pormenores do quotidiano (não
falo de aspetos burocráticos, que facilmente vou controlando, mas das, sempre
mais complicadas do que formulários e sumários, pessoas) que nos rodeia. O
Manel, pelo contrário – apesar de também adotar uma postura de descontentamento
face ao mundo, e, assim, me fazer por vezes “descer à terra” – é uma alma muito
mais revolucionária, e (talvez faça parte da definição de “alma revolucionária”,
ainda não percebi muito bem…), quiçá por isso, amargurada. Por vezes, a Filipa
fica impressionada como eu não reparo em quem casou, descasou, se juntou e se
separou (e como estou sempre desatualizadíssimo nesses domínios, fundamentais
para quem, como eu, gosta muito de viver em sociedade). Por vezes, o Manel
exaspera-se com o que eu creio que ele acha ser a minha atitude “neo-tropicalista”,
dançando valsas e mandós (a “valsa
goesa”) com as elites “naturais” católicas nos salões da Sociedade de
Geografia, isolados numa bolha enquanto o mundo em nosso redor se decompõe.
Ambos terão, certamente – até certo ponto, pelo menos – alguma razão.
Ora,
porquê falar nestes dois personagens? Por um interessante sincronismo: ontem,
depois do jantar, eu e a Filipa gastámos uma agradável vintena de minutos a
discutir animadamente o que pode ser entendido como diferentes variantes
daquilo a que chamamos “normalidade” (nos relacionamentos, na nossa vida
profissional, nos espaços em que vivemos, na opinião que temos dos outros e que
os outros têm de nós, na forma como o governo é visto, etc, etc). Hoje de
manhã, o Manel, no seu blog (a Filipa ainda não aderiu ao mundo dos blogues, o
que é uma pena!), publicou um post atormentado
sobre o que se pode definir, a meu ver, como a impossibilidade de sensatamente se
fugir à anormalidade.
Assim,
de tanto ouvir e ler e debater sobre o assunto, era praticamente impossível não
pensar, a caminho do ténis e a caminho da ESTG, a par com o caso prático que
hoje queria dar aos alunos, nisto que gostamos de chamar normal. Eu, diferentemente do Manel, considero que, acima de tudo,
a normalidade pode ser um excelente meio para conservarmos (numa vida em
sociedade), todos, as nossas (pequenas ou grandes) anormalidades. Claro está
que quando falo de “todos”, falo de pessoas que gostam de por os seus talentos
a render, têm capacidade crítica, e não se contentam com um triste anonimato.
Felizmente, creio que a maioria das pessoas que conheço (ou seja, aquelas que
conheço porque quero efetivamente conhecer) se inserem neste grupo. Ou seja,
sem a rede da normalidade, as nossas anormalidades – isto é, as idiossincrasias
dos muitos Luíses, Filipas e Manéis que há por esse mundo fora – tornar-se-iam
de tal forma autónomas que poderíamos correr o risco de sermos sufocados por
elas. E (acho que a Filipa e o Manel jamais contrariariam tal raciocínio) não
nos podemos tornar escravos das nossas particularidades. Quanto muito, podemos
tentar escravizá-las a ELAS em nosso favor (e aqui já os ouço aos dois a gritar
IMPERIALISTA!!). Falando por mim: eu
sou (também) uma pessoa cheia de características complicadíssimas. É verdade
que creio ter um mínimo de jeito para meia dúzia de coisas, mas, por outro
lado, sou um tipo que tão depressa se sente um monarca imperante como uma
miserável alma angustiada, não consigo trabalhar sob pressão, odeio o
crepúsculo de forma irracional, sou obsessivamente combativo e intrínseca e
doentiamente ambicioso, tenho tendências capitalísticas entranhadas no meu mais
profundo âmago (só pode ser resultado de alguma herança genética: eu tenho
enorme prazer em acumular por acumular, em ter mais, fazer mais, juntar mais;
vejo uma videira, e, em vez de começar a lacrimejar por não ter nenhuma, começo
a cogitar como é que conseguirei uma para mim, e, depois de a obter, já sei que
pensarei que “ora, quem tem uma tem duas”,
e assim sucessivamente), sou por vezes chato nos meus relacionamentos (quer
familiares, quer nos demais: a família tem de ter uma paciência evangélica para,
em certas ocasiões, me aturar; e tenho uma tendência horrível para me fartar
das contrapartes nos demais casos – “é
porque ainda não encontraste a pessoa certa”), sou não raro excessivamente
prudente, sou um bocadinho snob, sou
muito convencido, sou muito mandão, sou extremamente rotineiro, só me interesso
por pessoas que me parecem desafiantes, etc, etc. Assim sendo, se eu caísse no
erro (ou na tentação) de garantir a qualquer um destes traços difíceis um
domínio sobre a minha vida que nenhum deles pode ter – para bem da minha
sanidade mental e da dos que me rodeiam – dar-me-ia certamente (se não a curto,
a médio ou longo prazo) mal, bastante mal. E é aqui que entra a “normalidade”,
com os seus ritmos relaxantes, que diluem as angulosidades mais agressivas e
limam as arestas mais salientes. As balizas da “normalidade” são, creio bem,
para todos nós condições básicas de sobrevivência – no sentido de (talvez…) uma
“sobrevivência capitalística”, porque assente numa permanente e intensa (mas
também sensata e sustentada) exploração dos nossos talentos, que são, afinal,
os nossos recursos naturais.
Até
aqui falei de “normalidade” naquele que, a meu ver, é o sentido positivo da
mesma. E é neste ponto que me distancio, por exemplo, do Manel (mas a verdade é
que as nossas conversas dão sempre nisto: se é certo que concordamos em vários
pontos importantes, há sempre polémica em torno dos caminhos a seguir para lá
chegar!).
Mas,
sejamos francos, a “normalidade” também pode ser uma prisão horrível e
castradora, sobretudo para aqueles que não podem (ou não querem) livrar-se
dela, ou sequer ensaiar uma fuga. Agora, falo da “normalidade” no sentido da “vidinha
comezinha”, em que todos se pautam (pelo menos, publicamente…) pelos mesmos
padrões e perspetivas. Eu, feliz ou infelizmente, sei pouco o que isso é… os que
me rodeiam (a começar pela família) sempre foram pouco dados a tais “carneirismos
anónimos”, e sempre prezámos muitíssimo as nossas especificidades (que não nos
apartam do resto do mundo, antes nos garantem um lugar lá). Quem está de
acordo, é bem-vindo; quem não está, também, porque não há melhor do que um bom
debate! ;-) Aqui, eu concordo com a
Filipa e o Manel: aplicarmos padrões e rótulos normalizados aos que nos rodeiam
é não só sufocante como perigoso, no sentido de que mata muitos dos tais
recursos de que todos individualmente dispomos e coletivamente potenciamos.
Mais, pode até garantir frustrações, insatisfações mais ou menos permanentes,
sentimentos de culpa por se fugir à norma. Isso, é insustentável, porque
empobrecedor (lá está o capitalismo outra vez??).
No
entanto, garantir que essas mesmas orientações gerais da vida em sociedade não
só não nos amputam dolorosamente como, também, são suscetíveis de nos ajudar
(e aos quer nos rodeiam) a viver com as nossas especificidades parece-me ser um
desafio muito mais interessante. Parece-me ser um desafio para ser levado de
forma sustentada, prudente, obsessiva e determinada, rumo a uma vitória que não
pode faltar! Um desafio como eu gosto! ;-)
No
fundo, a “normalidade” é semelhante ao IKEA (e eu não tenho especial simpatia
por tal cadeia, como todos os que me conhecem sabem). Há dois tipos de
consumidores dos produtos IKEA. Por um lado, os que compram aqueles móveis anódinos e com
eles montam ambientes inofensivos e secantes que se repetem mundo fora e nos
merecem nada mais do que um entediado bocejo. Por outro, os que, por terem muitos livros
para arrumar, para dar uso efetivo a todos eles (se estiverem aos montes em
caixas, de pouco servem) compram uns metros de estantes billy e enchem-nos com os seus volumes. As billy estão lá, e até são IKEA. Mas não estão lá nem por serem billy, nem por serem IKEA. Estão lá
porque, sem elas, ninguém (a começar por nós) via os livros espetaculares e a
biblioteca única que, afinal, temos! ;-)
1 Comments:
Luís, espero verdadeiramente que possamos continuar a ser atípicos (com a nossa falta de normalidade) a ver o mundo. E eu tenho um blogue (não sei é se vais gostar de ler as desgraças mais desgraçadas de uma moça dos trintas pelo mundo!) :)
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