120 ANOS DE UM INTEGRALISTA
Ontem o Avô fazia 120
anos e ninguém se parece ter lembrado, lamentou a minha Mãe
há cerca de uma hora. De certeza que alguns dos seus muitos descendentes o
fizeram. Eu, confesso, lembrei-me de raspão… e só por a Mãe me ter avisado.
No
entanto, sou o seu bisneto mais velho, provavelmente o único que tenho uma
muito ténue (e quase indefinida) memória da sua existência e o autor da
biografia mais detalhada que até hoje se publicou sobre o Avô Caetano.
120
anos… é já bastante tempo. Há uma questão que nestas datas se coloca imediatamente
a quem, como eu, gosta de história e genealogia: quais as recordações que ficaram
da passagem do meu bisavô? Ou, americanizando
um pouco a pergunta, qual foi o seu legado – no que a mim diz respeito? O
que associo enquanto bisneto de Caetano Joaquim dos Reis àquele meu ascendente?
Ainda
que sem pensar profundamente sobre o tema, algumas ideias acorrem imediatamente.
Em
primeiro lugar (não sejamos hipócritas), uma certa vaidade. Acho imensa graça
ao facto de este meu antepassado ter sido um dos mais ativos intervenientes das
falanges do integralismo lusitano. É
certo que grande parte das teses que o Avô Caetano e os seus camaradas
políticos denodadamente sustentavam me parecem bastante obtusas – mas que
legitimidade tenho eu para me pronunciar sobre as suas convicções? O integralismo marcou uma geração e deixou
rasto na cena política nacional e eu gosto de espanejar as minhas vaidades ao
dizer, em momentos em que tal me parece oportuno, com estudada leveza: Ah, sim… o integralismo… O meu bisavô foi um
dos obreiros empenhados… Muito próximo de Sardinha e afins… ainda há um par de
velhas edições do Afonso Lopes Vieira lá por casa, recuerdos da época. Era um grupo de rapazes bastante
fanáticos, por vezes assinando sob pseudónimo. O meu bisavô também o fez,
claro!... Mas tudo aquilo acabou sem grande glória, coitados. Quanto ao
pseudónimo do meu bisavô, voltei a “redescobri-lo” quase setenta anos depois…
coincidências! Também me recordo bem do momento em que a minha progenitora
perguntou à sua: A Mãe sabe quem é o
Sílvio Luso? A Avó depressa escondeu a surpresa (traduzida apenas num
brevíssimo segundo de hesitação) e admitiu, obviamente, que se tratava do seu
pai. Mas talvez tenha lamentado a conjunção de leituras dos trabalhos de
Cecília Barreira[1]
e do Bigotte Chorão que levaram ao despertar da curiosidade do neto. Do integralismo e dos integralistas ficou na memória oral da família uma mão-cheia de
episódios políticos bastante divertidos.
Em
segundo lugar, há sempre alguns objetos que se associam à memória de alguém. Com
a do meu bisavô – para além das óbvias fotografias, desde os tempos da sua
juventude à velhice – relaciono desde logo um galo que mudava de cor conforme o
clima. Eu sei, eu sei… poderia ter começado por algo muito mais requintado,
mais digno do rapaz de fraque que nos olha desde a mesa de jogo da sala e que
vibrava com o sonho do regresso da monarquia. Mas estaria a mentir. O galo –
partido como está, bizarro como sempre foi – fazia (contam, eu não me lembro)
as minhas delícias quando era miúdo. E foi por essa razão que mo deram depois
do bisavô ter morrido. Por tal, é justo que seja aqui relembrado. Mas ainda
hoje encontro outros vestígios do Avô Caetano em casa dos meus Pais.
Designadamente algumas cartas e postais curiosos, bem como livros que lhe
pertenceram. Ou, no fundo de uma das fundas gavetas da cómoda da entrada, as
luvas brancas que usou no dia do casamento (e que me parecem TÃO pequenas!!).
Ou ainda uma escassa meia dúzia de belos desenhos (a tinta-da-china?) com
vistas de Lisboa que um amigo do bisavô fez e lhe ofereceu. O tal pintor
chamava-se José Videira e os seus desenhos com vistas pitorescas da capital
serviam quase invariavelmente para ilustrar a capa da revista Olisipo, dos Amigos de Lisboa, agremiação à qual o Avô Caetano pertencia[2]. Gosto
sobretudo de uma vista das traseiras da igreja de S. Roque… que espero que os
meus Pais generosamente me “emprestem” se e quando tiver o T1 que almejo nas
avenidas novas.
Por
outro lado, também sobreviveu um set de
fotos – num impecável e vintage preto
e branco – que o Avô Caetano me tirou. Para quem não sabe, são fotos de um
miúdo louro e gorducho a destruir uma revista, a mexer numa pilha de
brinquedos, a bocejar encostado a um cadeirão e a brincar com os puxadores de
uma escrivaninha (ou papeleira, como preferirem). Mas eu gosto bastante delas:
o miúdo sou eu, os cadeirões gobelins de
casa dos Avós ainda hoje são bem confortáveis para nos sentarmos e lermos
descansadamente um livro e a escrivaninha da Avó, mesmo que um tanto mutilada
por gerações de netos pouco complacentes com os seus puxadores, não é uma
papeleira qualquer.
Finalmente,
devo indiretamente ao meu bisavô um dos meus prazeres. Todos os que me conhecem
sabem o quanto gosto de rabiscar. Lembro-me de desenhar desde sempre e ainda
hoje fico mal-humorado quando estou muito tempo sem pegar num lápis. Quando
estou angustiado, desenho. Quando estou satisfeito, desenho (desenhos
grandiosos, exagerados). Quando tenho insónias, desenho (enormes cidades em
miniatura, para me perder nos pormenores e assim me cansar e reencontrar o
sonho). Quando quero impressionar alguém, muitas vezes… desenho. Afinal,
desenhar faz bastante parte da minha maneira de ser. Ora, foi da família do Avô
Caetano que nos (porque somos vários os que gostamos de o fazer) veio esta
propensão para o desenho. Disse-me há uns tempos o meu Tio Miguel (outro bom
desenhador) que o bisavô também o fazia. Contudo, nunca vi nenhuma das suas obras.
Não obstante, sei que o seu irmão Filipe era tido por um excelente artista
amador, apesar de ter morrido muito novo. E sobre todos nós paira a sombra
grande do grande pintor (goste-se ou não se goste do estilo) Carlos Reis –
parente muito próximo do bisavô.
Não
é preciso dizer mais. Mesmo que este bisneto em particular não seja integralista nem se tenha recordado do
dia de ontem motv proprio, é óbvio
que alguma coisa deve a Caetano dos Reis.
[2] http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/Olisipo/Olisipo_guiao.pdf
(veja-se sobretudo as imagens 9b a 9f).