Thursday, October 31, 2013

120 ANOS DE UM INTEGRALISTA

Ontem o Avô fazia 120 anos e ninguém se parece ter lembrado, lamentou a minha Mãe há cerca de uma hora. De certeza que alguns dos seus muitos descendentes o fizeram. Eu, confesso, lembrei-me de raspão… e só por a Mãe me ter avisado.
No entanto, sou o seu bisneto mais velho, provavelmente o único que tenho uma muito ténue (e quase indefinida) memória da sua existência e o autor da biografia mais detalhada que até hoje se publicou sobre o Avô Caetano.
120 anos… é já bastante tempo. Há uma questão que nestas datas se coloca imediatamente a quem, como eu, gosta de história e genealogia: quais as recordações que ficaram da passagem do meu bisavô? Ou, americanizando um pouco a pergunta, qual foi o seu legado – no que a mim diz respeito? O que associo enquanto bisneto de Caetano Joaquim dos Reis àquele meu ascendente?
Ainda que sem pensar profundamente sobre o tema, algumas ideias acorrem imediatamente.
Em primeiro lugar (não sejamos hipócritas), uma certa vaidade. Acho imensa graça ao facto de este meu antepassado ter sido um dos mais ativos intervenientes das falanges do integralismo lusitano. É certo que grande parte das teses que o Avô Caetano e os seus camaradas políticos denodadamente sustentavam me parecem bastante obtusas – mas que legitimidade tenho eu para me pronunciar sobre as suas convicções? O integralismo marcou uma geração e deixou rasto na cena política nacional e eu gosto de espanejar as minhas vaidades ao dizer, em momentos em que tal me parece oportuno, com estudada leveza: Ah, sim… o integralismo… O meu bisavô foi um dos obreiros empenhados… Muito próximo de Sardinha e afins… ainda há um par de velhas edições do Afonso Lopes Vieira lá por casa, recuerdos da época. Era um grupo de rapazes bastante fanáticos, por vezes assinando sob pseudónimo. O meu bisavô também o fez, claro!... Mas tudo aquilo acabou sem grande glória, coitados. Quanto ao pseudónimo do meu bisavô, voltei a “redescobri-lo” quase setenta anos depois… coincidências! Também me recordo bem do momento em que a minha progenitora perguntou à sua: A Mãe sabe quem é o Sílvio Luso? A Avó depressa escondeu a surpresa (traduzida apenas num brevíssimo segundo de hesitação) e admitiu, obviamente, que se tratava do seu pai. Mas talvez tenha lamentado a conjunção de leituras dos trabalhos de Cecília Barreira[1] e do Bigotte Chorão que levaram ao despertar da curiosidade do neto. Do integralismo e dos integralistas ficou na memória oral da família uma mão-cheia de episódios políticos bastante divertidos.
Em segundo lugar, há sempre alguns objetos que se associam à memória de alguém. Com a do meu bisavô – para além das óbvias fotografias, desde os tempos da sua juventude à velhice – relaciono desde logo um galo que mudava de cor conforme o clima. Eu sei, eu sei… poderia ter começado por algo muito mais requintado, mais digno do rapaz de fraque que nos olha desde a mesa de jogo da sala e que vibrava com o sonho do regresso da monarquia. Mas estaria a mentir. O galo – partido como está, bizarro como sempre foi – fazia (contam, eu não me lembro) as minhas delícias quando era miúdo. E foi por essa razão que mo deram depois do bisavô ter morrido. Por tal, é justo que seja aqui relembrado. Mas ainda hoje encontro outros vestígios do Avô Caetano em casa dos meus Pais. Designadamente algumas cartas e postais curiosos, bem como livros que lhe pertenceram. Ou, no fundo de uma das fundas gavetas da cómoda da entrada, as luvas brancas que usou no dia do casamento (e que me parecem TÃO pequenas!!). Ou ainda uma escassa meia dúzia de belos desenhos (a tinta-da-china?) com vistas de Lisboa que um amigo do bisavô fez e lhe ofereceu. O tal pintor chamava-se José Videira e os seus desenhos com vistas pitorescas da capital serviam quase invariavelmente para ilustrar a capa da revista Olisipo, dos Amigos de Lisboa, agremiação à qual o Avô Caetano pertencia[2]. Gosto sobretudo de uma vista das traseiras da igreja de S. Roque… que espero que os meus Pais generosamente me “emprestem” se e quando tiver o T1 que almejo nas avenidas novas.
Por outro lado, também sobreviveu um set de fotos – num impecável e vintage preto e branco – que o Avô Caetano me tirou. Para quem não sabe, são fotos de um miúdo louro e gorducho a destruir uma revista, a mexer numa pilha de brinquedos, a bocejar encostado a um cadeirão e a brincar com os puxadores de uma escrivaninha (ou papeleira, como preferirem). Mas eu gosto bastante delas: o miúdo sou eu, os cadeirões gobelins de casa dos Avós ainda hoje são bem confortáveis para nos sentarmos e lermos descansadamente um livro e a escrivaninha da Avó, mesmo que um tanto mutilada por gerações de netos pouco complacentes com os seus puxadores, não é uma papeleira qualquer.
Finalmente, devo indiretamente ao meu bisavô um dos meus prazeres. Todos os que me conhecem sabem o quanto gosto de rabiscar. Lembro-me de desenhar desde sempre e ainda hoje fico mal-humorado quando estou muito tempo sem pegar num lápis. Quando estou angustiado, desenho. Quando estou satisfeito, desenho (desenhos grandiosos, exagerados). Quando tenho insónias, desenho (enormes cidades em miniatura, para me perder nos pormenores e assim me cansar e reencontrar o sonho). Quando quero impressionar alguém, muitas vezes… desenho. Afinal, desenhar faz bastante parte da minha maneira de ser. Ora, foi da família do Avô Caetano que nos (porque somos vários os que gostamos de o fazer) veio esta propensão para o desenho. Disse-me há uns tempos o meu Tio Miguel (outro bom desenhador) que o bisavô também o fazia. Contudo, nunca vi nenhuma das suas obras. Não obstante, sei que o seu irmão Filipe era tido por um excelente artista amador, apesar de ter morrido muito novo. E sobre todos nós paira a sombra grande do grande pintor (goste-se ou não se goste do estilo) Carlos Reis – parente muito próximo do bisavô.
Não é preciso dizer mais. Mesmo que este bisneto em particular não seja integralista nem se tenha recordado do dia de ontem motv proprio, é óbvio que alguma coisa deve a Caetano dos Reis.

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